2. UMA VIAGEM PELA(S) PALAVRA(S)
Ao saberem que dediquei os últimos dez anos da minha vida a caminhar pelo planeta, por vezes fazem-me a pergunta: “Como se vêem do terreno os grandes problemas do mundo?” Ou então: “Depois de tanto andares a pé, mudaste a maneira de avaliar os acontecimentos da actualidade?” Ou outra ainda mais simples, com frequência feita por crianças: “Tiveste algumas surpresas?”
Para algumas questões, tenho respostas imediatas: levo-as a trepidar nos meus ossos, como um metrónomo, ao longo dos últimos 25 milhões de passos que dei, ou mais de 19.000 quilómetros calcorreados pelo mundo.
Posso confirmar que o Homo sapiens modificou a ecologia do nosso planeta de forma tão radical que deveríamos todos padecer de insónias em massa, causadas não só por má consciência, mas por verdadeiro pavor. (Em mais de 3.500 dias de caminhada desde África até à Ásia Oriental, sou capaz de contar pelos dedos das mãos e dos pés, tristemente deprimido, o número de encontros significativos que tive com animais selvagens).
Qual foi a injustiça mais corrosiva que vi de perto em todas as culturas humanas com as quais me cruzei? É fácil: as grilhetas impostas pelos homens ao potencial das mulheres, de forma cruel e arbitrária. Quem é sempre mais mal pago? Quem possui níveis mais baixos de escolaridade? Quem acorda mais cedo para uma jornada penosa de trabalho? Quem é o último a descansar? De caminho, as preocupações climáticas assombram as conversas de beira da estrada com todos – dos avós agricultores no Cazaquistão aos guerrilheiros curdos de armas em punho.
Existe, porém, outro aspecto inesperado, mas não menos doloroso, da evolução humana, que constatei ao longo do projecto a que chamei Jornada pelo Mundo e que tem por objectivo reconstituir o percurso dos nossos antepassados à saída de África. Esse aspecto é a extinção, após milénios de continuidade, das paisagens construídas à mão pelo músculo da humanidade. Refiro-me aos recantos lentamente esmaecidos da Terra habitada que ainda não foram subjugados ou transformados pelas exigências das nossas máquinas. Chamemos-lhe o mundo artesanal.
Paradoxalmente, esta geografia humana é tão subtil, mesmo quando vista de muito perto, que só me apercebi da sua existência quando comecei a registar a sua ausência. Como espaço distinto, só me consciencializei dela ao dar os primeiros passos no território mais hiperindustrializado do planeta, a China, o 18.º país do meu itinerário e a chamada fábrica do mundo.
Nunca tinha estado na China. À semelhança de muitos visitantes, trazia a cabeça cheia de ideias feitas sobre megacidades hiperactivas, comboios-bala pontuais, centros comerciais excessivamente iluminados e portos robóticos: um país incansável, movido a máquinas, inteiramente dedicado a satisfazer os apetites gargantuescos da humanidade por telemóveis, brinquedos de plástico, painéis solares, vestuário e outros artigos de produção industrial em massa.
Boa parte deste estereótipo de uma colmeia de betão é merecido, evidentemente. A natureza e as pessoas que viviam perto dela foram os vencidos durante os anos de crescimento explosivo da China. E foi por essa razão que, ao entrar na província de Yunnan, no Sudoeste da China, de mochila às costas em Outubro de 2021, com as biqueiras das botas a apontar para norte, vindo de Myanmar, e preparando-me para percorrer os 5.950 quilómetros do Império do Meio até à fronteira com a Rússia, me senti intrigado ao atravessar paisagens que pareciam extraídas dos pergaminhos chineses medievais: cenas de vales desdobrados em campos agrícolas e escarpas íngremes, onde o corpo humano determinava a escala da imaginação e uma economia de funileiros, alfaiates e cirieiros ainda moldava modos de vida lentos.
“Está a começar pela melhor parte da China”, felicitara-me uma amiga montanhista da megacidade de Chengdu, ao saber que o meu ponto de partida era a bravia metade ocidental de Yunnan. “Dali em diante, tudo fica monótono.”
Ela estava a pensar nos picos selvagens gelados da região oriental dos Himalaia. E, contudo, não foi a altivez bravia que mais me impressionou na fronteiriça Yunnan. Foi quase o oposto: um compromisso invulgar entre as comunidades humanas e a paisagem e a quase esquecida possibilidade de os seres humanos e a natureza coexistirem numa harmonia virtuosa de proximidade.
UMA ESTRADA FEITA À MÃO
A primeira estrada que percorri em Yunnan foi feita à mão. Fora construída para a guerra. Perto da fronteira entre Yunnan e Myanmar, na aldeia de Yusan, passei por homens e mulheres com batas de plástico azuis. Faziam a colheita em vastos hectares de cravo-túnico, as flores utilizadas para o fabrico de óleos essenciais. Biliões de pétalas caídas forravam a ouro o leito da estrada. Este era o troço chinês do antigo atalho de Tengchong, um ramal da tristemente célebre Estrada da Birmânia, arrancada à terra por 200 mil homens, mulheres e crianças de Yunnan através dos campos de morte da Segunda Guerra Mundial.
Há 86 anos, trabalhando sete dias por semana, este exército civil abriu uma estrada para camiões com 1.154 quilómetros nos terrenos mais chuvosos, acidentados e infestados de malária do mundo para fazer chegar à China munições, alimentos e medicamentos de que o país precisava desesperadamente através da Birmânia, então governada pelos britânicos. A Estrada da Birmânia foi uma das maiores proezas de engenharia do conflito mais sangrento da história.
No seu livro de memórias, “The Building of the Burma Road”, o engenheiro Tan Pei-Ying descreveu a forma como uma passadeira de cascalho triturado à mão, com sete metros de largura e mais de 965 quilómetros de comprimento, foi construída apenas por dedos humanos, através das cordilheiras de Yunnan: “A imagem destes milhões de pedras assentes uma a uma” recordava Tan do “gigantesco esforço feito por milhares de operários anónimos que participaram na construção”.
A Estrada da Birmânia foi uma das maiores proezas de engenharia do conflito mais sangrento da história.
Numerosas equipas de trabalhadores arrastaram enormes rolos compressores pelas encostas lamacentas escorregadias do percurso da estrada. Por vezes, perdiam o controlo, deixando resvalar cilindros de 4,5 toneladas, que esmagavam os que estavam mais abaixo. Quando o Exército dos EUA surgiu, com bulldozzers para construir estradas secundárias, pelo menos 2.300 aldeãos já tinham morrido no projecto.
“Foi extremamente duro”, reconheceu Xu Ben Zhen, antigo professor da escola de uma aldeia nos arredores da cidade mercantil de Tengchong. Homem bem parecido, já centenário, tinha as maçãs do rosto bem esculpidas e os olhos cor-de-avelã aquosos. Xu, entretanto falecido, foi um dos últimos operários sobreviventes da famosa Estrada da Birmânia. Aos 17 anos, foi forçado a integrar as legiões de cidadãos que, armados com pouco mais do que pás e cestos de verga, permitiram contornar os bloqueios marítimos costeiros impostos pelas forças invasoras japonesas.
Actualmente, a Estrada da Birmânia está pavimentada na maior parte dos troços. O percurso construído durante a guerra desapareceu sob grandes autoestradas de betão cheias de trânsito. Porém, nos montes vulcânicos em redor de Tengchong, ainda serpenteia pelo território como uma bailarina, passando por aldeias pitorescas e arrozais verdes. Quem caminha pela berma até ao seu derradeiro término encontrará um beco sem saída, como acontece em toda a arquitectura vernacular em Yunnan. Não é muito diferente do que acontece com as linhas nas palmas das mãos enrugadas de um ser humano.
NOS CALOS DE UMA CAMPONESA
Sentado e hirto sob o sol no pátio da sua casa de campo centenária, o velho professor Xu mergulhava de vez em quando em silêncios. Olhava fixamente para baixo, contemplando as mãos poisadas no colo. Olhava para as veias salientes de um azul-pálido e para a pele crestada pelo sol, quase tão fina como lenço de papel. Era matéria suficiente para cartografar uma Yunnan que vai desaparecendo, com estradas antigas espiraladas na ponta dos dedos.
Vejam as mãos da camponesa. Espessas com calos. Fortes como martelos e tornos. Vejam a enxada dela subir e descer sobre uma alta crista montanhosa em Velha Dali. Com que frequência não terão estas mãos poderosas repetido esta tarefa? Dezenas de milhares de vezes? Centenas de milhares? E, contudo, cada movimento de Wang Liusui é único, impossível de repetir. Ela não é uma máquina. Ao longo de 50 anos, nunca se serviu dos seus utensílios duas vezes da mesma maneira. A sua agricultura de subsistência foi imperfeita, a olho, improvisada, original, artesanal.
“Compramos o nosso baijiu na cidade”, disse Wang, fazendo uma careta debaixo do gorro, referindo-se ao mais importante artigo de produção em massa consumido por si e pelo marido – uma zurrapa industrial que deixava os lábios dormentes, só de tocarem nela.
Wang era a obreira de um mundo que durara 11 mil anos, desde a alvorada da agricultura no vale do Jordão, durante o Neolítico, até mais ou menos à década de 1840, quando as máquinas a vapor começaram a substituir a força de trabalho humana e animal nos campos da Europa. Na acidentada região ocidental de Yunnan, vive-se o crepúsculo dessa longa era. Wang produzia o seu próprio adubo, misturando caruma de pinheiro com estrume de porco. Usava uma vara talhada para separar os grãos das maçarocas. Guardava as batatas em cestos de verga feitos à mão. A própria geometria da sua quinta desafiava as formas rectilíneas impostas pelos tractores: demasiado íngremes para serem trabalhados por máquinas, os seus campos pareciam escorrer pelas montanhas verdejantes abaixo.
PROFISSÕES DE ONTEM E DE HOJE
A razão pela qual estes modos de vida ainda sobrevivem em Yunnan é complexa. A geologia oferece uma explicação parcial. As placas tectónicas indiana e euroasiática colidem na região sudoeste da China. Desse choque resultaram barreiras montanhosas que abrandaram o maremoto da industrialização que transformou o resto do país. Da mesma maneira, a superfície enrugada da região ocidental de Yunnan promoveu a formação de um mosaico de culturas. Cerca de metade dos 56 grupos étnicos oficialmente reconhecidos da China ainda vive encurralada em Yunnan. Ao atravessar cada nova portela de montanha florestada, eu poderia descer até um abecedário de idiomas possíveis: Bai, Dai, Lisu, Mandarim, Naxi, Tibetano, Yi. Historicamente mais pobres do que a população han, maioritária na China, estes povos de montanha mantêm-se arreigados às suas tradições artesanais. (Wang pertence à etnia bai.)
Subi e desci, como um ioiô, durante mais de 950 quilómetros, ao longo do rebordo de Yunnan junto dos Himalaia. Comecei a elaborar uma lista de profissões de antigamente. Cruzei-me com reparadores de panelas itinerantes perto das montanhas de Gaoligong, lagareiros em tronco nu especializados na obtenção de óleo de noz no vale de Lujiang, destiladores de óleo de eucalipto de olhos semicerrados ao longo do rio Nu (utilizando alambiques de bambu), e trituradores de malaguetas de braços grossos, esmagando com pilões a sua matéria-prima picante, nos arredores de Velha Dali. Saudei cesteiros à jorna, condutores de mulas, apanhadores de cogumelos silvestres, tecelões trabalhando nas traseiras de suas casas e lenhadores especializados em cortar as colmeias instaladas em troncos de árvores ocos. O trabalho artesanal surgia por todo o lado ao longo do meu itinerário ziguezagueante.
No curso superior do rio Jinsha, ou “Areia Dourada”, as mãos grandes e musculadas dos assentadores de pedras (os pedreiros de aldeia) tinham construído moradias com pátios que eram autênticas esculturas habitáveis: todas as paredes e esquinas eram diferentes e nunca exactamente prumadas. As ferramentas dos pedreiros eram com frequência artesanais. Os caminhos entre casas tinham sido construídos para peões com a largura exacta da envergadura humana. Por razões que não consigo explicar, era muito confortável caminhar por essas ruas. As portas das casas eram frequentemente dimensionadas à proporção dos seus moradores. Ao transpor essas soleiras, encontrava as suas duilian, ou frases de boa sorte, gravadas sobre a moldura da porta: “Em inúmeros lares, um novo dia amanhece / Os velhos amuletos de madeira de pessegueiro são substituídos por amuletos novos”. Senti-os como uma dádiva de intimidade. Esta arquitectura revelava uma única vida humana e não uma demografia de milhões de pessoas.
Cesteiros, condutores de mulas, apanhadores de cogumelos, tecelões e lenhadores. O trabalho artesanal surgia por todo o lado ao longo do meu itinerário ziguezagueante.
A CHINA DO PROGRESSO?
Em Yunnan, também atravessei a pé cidades modernas, lá em baixo, nas planícies.
Era desta China que os burocratas se orgulhavam. Em Baoshan e Nova Dali, podíamos alugar bicicletas eléctricas deslizando o dedo sobre o ecrã do telemóvel. Cada caixa de levantamento automático demorava 14 segundos a extrair yuans da minha conta bancária no outro lado do planeta. Cheguei mesmo a sentar-me num Starbucks igualzinho aos outros até ao mais ínfimo grão de café. Mas este habitat homogeneizado das nossas cidades globalizadas, feito de vidro e aço, parecia estranhamente temporário depois de caminhar centenas de quilómetros nas terras altas da região ocidental de Yunnan. Sentia-me capaz de atravessar com a mão cada prédio feito à medida, como se fossem hologramas. O mundo construído por fábricas parecia-me assim tão transitório.
Isto era uma ilusão, naturalmente. Torres de rede móvel camufladas como pinheiros de plástico e casas prefabricadas cúbicas surgiam por todo o universo longínquo de aldeias improvisadas de Yunnan. Era o paraíso antigo e imperfeito de Yunnan que estava a desvanecer-se. Acompanhado por companheiros locais, tenho atravessado um mosaico de ambientes humanos ao longo da minha caminhada pelo mundo. Poucos desses ambientes ainda são artesanais.
Fugindo ao vazio das auto-estradas da Arábia Saudita, mergulhei como um estilete nos sulcos cómodos e irregulares dos trilhos de camelos, abertos na rocha maciça por 1.400 anos de caravanas que se encaminhavam para Meca. Qual a diferença quando comparados com Yunnan? Essas antigas paisagens sauditas já estavam mortas. São agora artefactos de museu.
O habitat homogeneizado das nossas cidades globalizadas, feito de vidro e aço, parecia estranhamente temporário depois de caminhar centenas de quilómetros nas terras altas da região ocidental de Yunnan
Na região sul do Cáucaso, entretanto, a pequena Geórgia enfeitiçou-me. As suas terras agrícolas pareciam uma pintura primitiva: penhascos exagerados e vales naïf. As estradas secundárias eram de terra batida e só por acidente seguiam em linha recta. Casas construídas ao acaso inclinavam-se para a direita ou para a esquerda. Os puxadores das portas eram feitos de arame de amarrar fardos. Numa fonte à beira da estrada, uma malga de madeira engenhosamente improvisada a partir da curva apertada de um ramo de árvore acrescentava prazer ao acto de beber.
Por contraste, do outro lado da fronteira, no Azerbaijão rico em petróleo, a paisagem rural apresentava-se arrumada, em forma de grelha e asfaltada. As portas das casas tinham puxadores produzidos em massa. As próprias portas fechavam-se com precisão nos seus caixilhos de fabrico industrial. Essa perfeição maquinal, marca de todas as superfícies de fabrico mecânico, tendia a entorpecer os sentidos humanos. Era como se estivéssemos a tocar na vida através de celofane. Seria a Geórgia melhor do que o Azerbaijão? Claro que não. Era provavelmente um capricho meu. A Geórgia fez-me lembrar as aldeias construídas à mão da minha infância, passada na região produtora de milho do centro do México. Mas posso dizer-vos algo: em memória, é o Azerbaijão que está a perder. E foi só na Geórgia que senti que poderia encostar a palma aberta da minha mão ao rosto de outro ser humano.
UM COFRE DE BIODIVERSIDADE
A natureza remodela à mão o planeta. Experimenta obsessivamente, recuperando antigos acidentes da evolução, reciclando ossos e moléculas. A sua oficina de Yunnan é particularmente volátil. A sua imprevisibilidade acrescenta um ingrediente raro às paisagens habitadas: a humildade humana.
Descendo através de bosques de nogueiras, caminhei por troços remanescentes da Estrada dos Cavalos e do Chá, um sistema de trilhos secular outrora percorrido por caravanas de mulas que transportavam jade, chá e seda desde Yunnan até ao Sul e Sudeste da Ásia, rumo à cidade destruída de Yangbi. Meses antes, um terramoto destroçara por completo as casas, partindo-as como se fossem cascas de ovo. Os habitantes ainda estavam a viver em tendas. Em Yunnan, os tremores de terra têm sido seguidos de saraivadas de granizo, do tamanho de bolas de pingue-pongue que se acumulam em mantos com 30 centímetros de espessura. As chuvas da monção podem precipitar-se como rajadas, destruindo estradas, pontes e campos. Devido em parte a esta indisciplina, Yunnan proporciona-nos um vislumbre do mundo como era antigamente: um cofre de biodiversidade.
Erguendo-se a uma altitude superior a 4.800 metros, adentrando o céu turbulento, como a proa de uma arca gigante, as florestadas montanhas Gaoligong abrigam um dos mais ricos acervos de DNA botânico que restam na Terra. Quase cinco mil espécies de plantas reinam sobre as encostas do maciço, apertadas como um acordeão. Na companhia de três amigos chineses, transpus lentamente a cordilheira.
Caminhámos sobre biliões de folhas húmidas: magnólias, loureiros, carvalhos, fetos e uma grande variedade de rododendros. Detivemo-nos e escutámos aves, quase sempre semas ver. Felosas. Bulbules. Papa-moscas. Rouxinóis. Todas as cigarras do mundo furavam-nos os tímpanos com tinidos metálicos. Chuvas torrenciais destruíam os nossos guarda-chuvas baratos. A reserva natural de Gaoligong era uma região bravia alfa.
“Certa vez, fiquei retido em Gaoligong”, contou-me Zhang Qing Hua, um dos meus parceiros de caminhada. “Não conseguia sair do mesmo sítio.” Naturalista amador, Zhang cerrou os olhos. “Eram as salamandras. Milhares delas. Dezenas de milhares. Se mexesse os pés, iria pisá-las. Revestiam por completo o chão da floresta, surgindo para acasalar.” Desceu em bicos dos pés os leitos cheios dos riachos, numa tentativa de não incomodar este tapete de vida.
Para que não restem dúvidas: os 47 milhões de habitantes da província de Yunnan devastaram o seu ambiente, tal como todos nós, com as pragas habituais do Antropocénico: poluição, degelo dos glaciares, marés estéreis de betão. Mas em Yunnan a natureza reage com força. Em Gaoligong, regista-se uma séria retirada dos seres humanos.
Descansando à sombra de uma árvore num velho pomar de marmeleiros, carregado de fruta por apanhar, era difícil não reflectir sobre os prós e os contras numa aldeia construída à mão e agora vazia. Mós de arenito e enormes potes para guardar cereais jaziam dispersos no mato que crescia. Telhados com telhas colocadas à mão estavam já a desmoronar-se, libertando um milhar de anos de memória. Perguntei a mim mesmo: alguém se lembraria, um dia, de como se subsiste tão perto da natureza? Enquanto escutava as moscas a zunir, foi fácil imaginar um mundo sem nós.
Não romantizes a pobreza. Não tentes tornar exótico o subdesenvolvimento. No entanto, a maior fantasia é acreditar que a economia voraz, explosiva e produzida em massa da humanidade, tal como hoje se perfila, se aproxima sequer da sustentabilidade. Ou que os sistemas de conhecimento muito antigos, feitos à mão, têm pouco valor numa era de colapso ambiental.
“Os povos indígenas têm muito para nos ensinar”, disse Liu Zhenhua, um antigo professor da megalópole de Guangzhou que vivia com a namorada numa antiga exploração agrícola étnica bai perto de Velha Dali. “Eles sabem cooperar com a natureza em vez de lutarem contra ela.”
Liu é um entre muitos da vaga de millennials que têm vindo a mudar-se para Yunnan em busca de alternativas à economia chinesa do “9-9-6” (trabalho das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana). Com novos restaurantes veganos e leituras de poesia, a “Dalifórnia”, como foi baptizada, era um destino emergente onde o abraço entre humanos e a paisagem alimentava uma euforia límbica. Porém, a maior parte da premecanizada região ocidental de Yunnan Ocidental nunca seria transformada em atracção turística.
“Os povos indígenas têm muito para nos ensinar. Eles sabem cooperar com a natureza em vez de lutarem contra ela.”, disse Liu Zhenhua, um antigo professor da megalópole de Guangzhou
Continuei a caminhar até Lijiang, onde as famílias de etnia naxi andavam a colher pêras vermelhas em pomares de flamejantes tons outonais. Subi aos pinhais tibetanos em Yongning, onde pastores envergando casacões protegiam as suas ovelhas dos ursos. E, na cordilheira de Diancang Shan, deixei que um condutor de mulas idoso carregasse a minha mochila à garupa de uma das suas lustrosas devoradoras de palha.
“Há dez anos, era dono de dez mulas, mas agora só tenho duas”, disse Luo Siming, encolhendo os ombros. As unhas das mãos pareciam sílex e, nas cicatrizes, era possível ler todas as lições aprendidas desde a domesticação dos animais.
Luo explicou-me como ganhara, recentemente, uma pequena fortuna a carregar martelos pneumáticos e sacas de cimento até ao seu outrora isolado recanto de Yunnan. Estes carregamentos destinavam-se a novas rodovias, que iriam dar-lhe cabo do negócio.