A configuração da ilha da Madeira faz lembrar um barco de papel lançado ao Atlântico em que a vela é constituída pelo triângulo entre Ponta Delgada, São Jorge e Santana e o casco por toda a costa sul. Nesta analogia, a região das levadas é o porão da embarcação, onde se guarda o bem mais precioso da ilha: a água, ponto de partida e chegada deste roteiro.
A Vereda da Lagoa do Vento é um percurso pedestre de fácil acessibilidade e aberto a todos os caminhantes. Apesar das vertigens provocadas por alguns declives acentuados e pela adrenalina gerada sempre que dois grupos de caminhantes se encontram nesta estreita vereda, é uma experiência deliciosa de caminhada e de contacto com alguns dos ex-líbris do Parque Natural da Madeira.
A flora endémica está bem representada ao longo do trilho, com manchas de uveira-da-serra e da subespécie madeirense de Erica scoparia. A 1.600 metros de altitude, o trilho tem o atractivo de se encontrar no limiar da transição entre o urzal de altitude e a floresta da laurissilva, abrangendo portanto uma diversidade de flora difícil de avistar noutros pontos da ilha.
Recomenda-se a partida no Rabaçal, onde há oportunidade de estacionar o automóvel e largar os confortos mais mundanos. Ao longo dos 1.800 metros seguintes, encontrará poucos vestígios de modernidade – apenas as impressionantes adaptações feitas por gerações de madeirenses na luta ingrata contra a água, procurando canalizá-la para abastecimento.
Como nas fábulas de La Fontaine, a caminhada irá conduzi-lo a uma encruzilhada, um ponto de confluência entre duas veredas, onde terá de fazer uma escolha. Por um lado, seguindo pela direita, esperam-no cerca de duas horas de caminhada pela Levada do Alecrim em direcção à nascente, na ribeira do Lageado. O prémio justo para essa opção é a lagoa da Dona Beija, uma formação incrivelmente bela, com dedo humano, pois resulta de um projecto de captação de águas das ribeiras para a câmara de água da central da Calheta.
Optando ao invés pela esquerda, não pode deixar de deleitar-se com a lagoa do Vento, uma bacia pluvial alimentada pela não menos impressionante Cascata do Risco. Os mais afoitos praticam canyoning nesta queda de água que parece extraída da imaginação de J.R.R. Tolkien. Uma caminhada na Madeira tem frequentemente dilemas desta natureza e quase apetece tomar a mesma opção do rei Salomão, evitando dividir o que é indivisível e alargando a estada para garantir que não perde nenhum recanto desta ilha mágica.