A obra do mais ocidental dos autores japoneses contemporâneos abre, de forma paradoxal, uma via directa para o Japão e, em especial, para Tóquio, cidade onde nasceu em 1949. Haruki Murakami, tão aplaudido como insultado, meme literário esgotado em cada mês de Outubro, é um pólo de atracção, um vórtice feroz no qual coincidem literatura e geografia.
O facto de ser o mais recente Prémio Princesa das Astúrias das Letras(conquistado no passado por nomes como Nélida Piñon, Leonardo Padura, Claudio Magris, Susan Sontag, Amos Oz e Margaret Atwood) é um bom pretexto para partir numa viagem com o autor de Tokio Blues, Kafka à Beira-Mar ou 1Q84, embora o leitor corra o perigo de enveredar por universos paralelos e, sem saber como, chegar “ao fim do mundo ou a um impiedoso país das maravilhas”.
estará O Japão presente na obra de MURAKAMI?
Foi a pergunta do escritor Carlos Rubio quando se decidiu a escrever um livro que traçasse as possíveis relações entre Murakami e o Japão. Seria o tema um disparate no homem que cheirava a manteiga?
No Japão, “batakusai” (que cheira a manteiga) é uma expressão depreciativa que se refere a todos os artistas e criadores “demasiado” ocidentalizados, sobretudo àqueles que têm uma influência marcadamente norte-americana, como é o caso de Murakami, cuja literatura se inspira directamente em autores como J.D. Salinger, Faulkner, Fitzgerald, Hemingway, Kurt Vonnegut e Richard Brautigan, para além do jazz, Beethoven, cerveja, basebol... Mas sim. Ali estava o Japão: em cada parágrafo e em cada página; estava nas palavras, nos gestos, nos valores e nos sentimentos de cada personagem”, afirma Carlos Rubio em El Japón de Murakami.
Basta remover a camada de verniz mais pop e ocidental que abrilhanta os seus romances para encontrar o Japão, desde a década de 1980 até os primeiros anos do século XXI. São mais de 30 anos reflectidos numa obra que soma quinze romances e uma boa quantidade de relatos, ensaios, memórias e outros artefactos metaliterários.
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Nos romances de Murakami há personagens sem nome, canções, túneis e pontes que conduzem a outros níveis de realidade, gatos, rãs gigantescas, solidão, espectros, sonhos, amor e desamor. No entanto, o tema subjacente é a dualidade entre a vida moderna e a tradicional no Japão. Murakami aborda a experiência da modernidade japonesa com todas as suas complexidades.
Basta encaixar as peças deste enorme puzzle para dar uma volta até Takamatsu, por exemplo, uma cidade situada na prefeitura de Kagawa, onde decorre a acção de Kafka à Beira-Mar, considerado o melhor romance de 2005 pelo The New York Times. Um lugar que, apesar de ser a porta de acesso para as muitas ilhas lindíssimas do mar interior de Seto, e onde se situa o jardim Ritsurin, um dos mais bonitos do país, não costuma ser um destino habitual para as pessoas que se aventuram no Japão.
a Tóquio DE MURAKAMI
A obra de Murakami decorre essencialmente no labirinto metropolitano de Tóquio, testemunha das transformações tecnológicas, sociais e culturais do país. A cidade é, ela própria, uma personagem.
“Lembro-me de que Yasuda estava a lançar para os Swallows...”, explica Murakami em Auto Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo (2007), recordando o som do bastão a bater na bola, a corrida até à segunda base… E é esse o momento crucial da biografia do autor: “E foi nesse preciso instante que fui assaltado por um pensamento: sabes que mais? Poderia tentar escrever um romance.” O cenário desta epifania foi o estádio de Jingu. É neste estádio, sede da equipa de basebol da qual Murakami é adepto, que ele decide tornar-se escritor.
Há mais sobreposições entre a obra do romancista e a biografia de Murakami. “Depois de alemão, apanhámos um autocarro para Shinjuku e fui a um bar underground chamado DUG, atrás da livraria Kinokuniya.” A música, sobretudo o jazz, a noite, as luzes de néon, a solidão do balcão do bar, o álcool que ajuda a dissipar o véu frágil que separa o onírico do real. Antes de ser escritor, Murakami era proprietário do seu próprio clube de jazz, o Peter Cat, um clube com um ambiente semelhante ao de qualquer microbar que se pode encontrar em Golden Gai, em Tóquio, onde, antes de ouvir Dexter Gordon, Miles Davis ou Chet Baker, é possível que um barman velho e coxo nos sirva uma bebida depois de nos passar a capa do disco que acaba de pôr a tocar no gira-discos.
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As obras de Murakami traçam uma topografia da cidade, bairro a bairro. É o caso de Ginza, a zona mais fashion de Tóquio, onde Murakami põe duas das personagens de Crónica do Pássaro de Corda a trabalhar em grandes armazéns retalhistas. Shibuya e a colina vizinha, onde se amontoam os “love hotels” e os solitários da cidade vão em busca de consolo, é outra das coordenadas incontornáveis. Os seus romances também exploram locais como o parque Inokashira e o bairro de Sangenjaya, onde o novo e o antigo se misturam. A cidade é um cenário que evoca a experiência da contemporaneidade com os seus atributos e contradições e o leitor é aconselhado a explorá-la tal como os protagonistas e amantes de Tokio Blues (Norwegian Wood): “caminhando e caminhando por Tóquio sem um destino em mente”.
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OuTROS LUGARES para além do JAPão
Em Tokio Blues (Norwegian Wood), Toru Watanabe chega a Hamburgo, onde ouve uma versão instrumental da canção “Norwegian Wood”, dos Beatles. A melodia desperta-lhe recordações dos seus tempos de faculdade, na década de 1960 em Tóquio, levando-o a reflectir sobre os encontros e desencontros da sua vida. Foi nestes anos que Murakami, apesar de pouco ir às aulas, estudou literatura e teatro grego na Universidade de Waseda (Soudai), onde conheceu a sua esposa, Yoko.
Ao longo da sua obra, abundam as referências à tragédia grega e a grandes dramaturgos como Sófocles, Eurípides e Ésquilo, que ele conhece profundamente. Não é por acaso que Minha Querida Sputnik é considerado o seu romance grego, já que grande parte da trama se desenrola numa ilha grega onde a protagonista tem tantas aventuras como pesadelos. A sua paixão pela Grécia não fica por aqui: Crónica do Pássaro de Corda também menciona a ilha grega de Creta.
A geografia literária global de Murakami até chega à Finlândia em A Peregrinação do Rapaz Sem Cor (2013). O protagonista, Tsukuru, procura locais tão distantes como Nagoya ou a Finlândia para sarar a ferida de um amor e uma amizade feridos. Com efeito, nas obras de Murakami, a realidade mistura-se frequentemente com o fantástico, como se pode ver nesta situação: “Enquanto reflectia sobre isso e ouvia a chuva tamborilar na janela, o quarto pareceu transformar-se. Não era o quarto de sempre e parecia ter vida própria. Nesse quarto, pouco a pouco, Tsukuru deixou de distinguir aquilo que era real daquilo que não era.” Como disse o próprio Murakami, todos os escritores, e talvez todos os viajantes, enfrentam o desafio de explorar o que jaz nas profundezas da sua consciência, pois “o trabalho de um romancista é sonhar acordado”.