Na Paisagem Cultural de Sintra, ergue-se uma gigantesca tela de pedra, testemunho duradouro de um temperamento artístico que faz parte do código genético da vila.

 “Wunderbar, das ist wunderbar!”, exclama um turista alemão no início da rampa de acesso à entrada do palácio. Apesar do ar frio que se sente no cimo da serra e da chuva miudinha, o turista alemão sente-se como em casa –  atestam-no os calções e a camisa de manga curta.

Com o telemóvel em riste, faz mira para cima, para os padrões amarelos, rosas e azuis do edifício. Clique após clique, confere cada fotografia no ecrã e solta um ar de satisfação: “Gleich wunderbar!”. Sim, o Palácio da Pena é mesmo maravilhoso, mesmo para quem vem da Baviera, a região germânica celebrizada pelos seus castelos. 

Ao fim de algumas horas, percorrendo salas, salões, dependências, escadarias e pátios, percebemos o que distingue a Pena de Neuschwanstein: além de ser anterior, tem alma e vida! O Palácio foi habitado, vários reis viveram aqui e é uma construção mais real do que a fértil imaginação de Luís II da Baviera poderia sonhar. Na Pena, há vida e não estamos a falar apenas do milhão de turistas que a visitam anualmente.

O Palácio de Monserrate é marcado pelo ambiente exótico e de tendências orientais, fruto da singularidade dos seus construtores: Gerard de Visme, William Beckford e, sobretudo, Francis Cook. Fotografia Alexandre Vaz.

 Os visitantes da Paisagem Cultural de Sintra, cenário distinguido pela UNESCO como Património Mundial em 1995, são a sua artéria de vitalidade e, em simultâneo, constituem um coágulo que dificulta a circulação perfeita. Na estação alta, o acesso pode ser penoso, motivo pelo qual a sociedade Parques de Sintra-Monte da Lua (PSML) imaginou o trajecto que agora percorremos a pé, desde o centro da vila até às imediações do Palácio da Pena e do Castelo dos Mouros. É um trilho pedestre romântico, que se introduz na sempre mágica floresta sintrense e que passa nas imediações de mais um tesouro cultural da vida – a enigmática Vila Sassetti, a primeira construção projectada pelo cenógrafo Luigi Manini para um industrial hoteleiro do século XIX.

Noutros pontos da serra, utiliza-se a bicicleta ou o novo Sintra Green Card, passe articulado com acesso a vários palácios nacionais e bilhetes de comboio e autocarro agregados em função da necessidade de afastar da serrania o mais agressivo dos invasores modernos – o automóvel.

REFÚGIO NA SERRA - O Terreiro das Cruzes, no Convento dos Capuchos, apresenta três cruzes em representação do Gólgota, onde Cristo foi crucificado. Fotografia Alexandre Vaz.

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, o romantismo vingava na Europa. O movimento artístico e literário visava enaltecer o idealismo, o sonho, a fantasia e um regresso ao ego nacionalista ainda que baseado em lendas e figuras heróicas.

Naturalmente, o movimento alastrou a Portugal e, no domínio arquitectónico, foi personificado por uma figura inigualável, Fernando de Saxe-Coburgo e Gotha, nascido em Viena, e que viria a tornar-se Dom Fernando II depois de desposar a rainha Dona Maria II. Sintra celebra este ano o bicentenário do nascimento do homem que implantou e consagrou a visão romântica na vila, deixando gravado na paisagem o ideário do movimento.

Dom Fernando II encontrou no monte sagrado os vestígios de uma pequena ermida dedicada a Nossa Senhora da Peña (de penha ou penhasco rochoso).

Dom Fernando II encontrou no monte sagrado os vestígios de uma pequena ermida dedicada a Nossa Senhora da Peña (de penha ou penhasco rochoso). O mosteiro manuelino implantado no século XVI fora abandonado com a extinção das ordens religiosas e o rei adquiriu o terreno, pensando nele como a tela para a sua mais espantosa pintura. Ao longo de quatro anos, a obra do palácio ganhou forma, sob a direcção do barão de Eschwege.

 Os anos seguintes foram de ocupação sazonal pela família real, que o foi dotando de diversos elementos decorativos e contemplativos e criou o magnífico parque envolvente, escolhendo criteriosamente as espécies vegetais e o arranjo paisagístico correspondentes à visão de Dom Fernando II. 

Com a morte de Dom Fernando, o espaço passou para a posse da condessa d’Edla, segunda mulher do rei.

Com a morte de Dom Fernando, o espaço passou para a posse da condessa d’Edla, segunda mulher do rei. No final do século XIX, após um longo processo judicial, a condessa concordou em vendê-lo ao Estado. Hoje, o Palácio da Pena continua a ser a jóia da coroa da serra de Sintra e um dos grandes postais-ilustrados de Portugal.

À saída, a maioria dos turistas ainda vem embriagada com o choque de história e riqueza da Pena, com as imagens do salão nobre, da sala de jantar e do claustro manuelino. Antes de nova incursão na bruma que envolve a serra, um último olhar à retaguarda devolve os tons amarelo, azul e rosa da fachada, moldados pelo nevoeiro. Há muito que contar no regresso à Baviera.


A LUZ DE QUELUZ - O Palácio de Queluz foi idealizado como palácio de Verão. Além da exuberância interior, o exterior vale também pelo jardim de influência francesa. Fotografia PSML/Wilson Pereira.

Umbilicalmente ligado ao Palácio Nacional da Pena, está o Chalet da Condessa d’Edla, que tem igualmente um pano de fundo romântico, como não podia deixar de ser. Após a morte de Dona Maria II, Dom Fernando viria a desposar Elise Hensler, cantora e actriz que participara na tournée da Companhia de Ópera de Laneuville. Dom Fernando assistiu ao espectáculo de Lisboa, conheceu-a… e apaixonou-se. Apesar da mordacidade da corte portuguesa, o casal dedicou-se afincadamente à construção de um chalet ao jeito alpino, mas com a homenagem sincera ao património e gosto português, bem expressa no recurso abundante à cortiça. O chalet foi utilizado para recepções, jantares ou curtas permanências, bem como residência da condessa depois da morte do rei. 

O visitante do Parque da Pena contempla uma cópia fiel do chalet original, após um aturado trabalho de restauro na sequência do incêndio de 1999, cujas chamas quase o devoraram integralmente. Restou--lhe a alma, a memória e um conjunto de fotografias que foram preciosos auxiliares para a sua reconstrução. A PSML iniciou recentemente a segunda fase do projecto, dotando aos poucos o chalet do mobiliário original do século XIX, adquirido aos descendentes da condessa ou recuperado das reservas do Palácio.

O tecto desta sala do Palácio Nacional de Sintra, com quase 140 metros de comprimento, ostenta as armas de Dom Manuel I, dos filhos e de 72 das mais importantes famílias da nobreza portuguesa – um dos mais importantes “documentos heráldicos” do país. Fotografia Alexandre Vaz.

Afastado destes dois pólos de atracção e embrenhado na vertente sudoeste da serra de Sintra, o  Convento dos Capuchos é um caso singular entre os monumentos da região. Foi fundado por Dom Álvaro de Castro, conselheiro de Dom Sebastião, cumprindo uma promessa do pai. Como o nome indica, o espaço era ocupado por frades franciscanos – oito no total –,  neste convento-irmão do da Arrábida. 

E se neste último a perspectiva é estonteante sobre o mar e pela serra que cai quase a pique, o seu congénere de Sintra tem uma perspectiva privilegiada do mar que irrompe entre o emaranhado de vegetação e os blocos graníticos que o compõem. 

A Ordem dos Franciscanos fizera votos pela pobreza e pela humildade, com o desejo de regresso aos primórdios do cristianismo. Em Sintra, essa vocação foi levada à letra. O despojamento expressa-se a cada passo e degrau. A cozinha, a igreja, o coro alto e as celas são “rudes” e de uma crueza granítica, mas, ao mesmo tempo, de uma singeleza cativante. Um espaço concentra  as atenções: o refeitório, onde apenas sete membros tomavam as refeições, pois o oitavo passava pelo período de jejum. Neste abrigo entalado na rocha mas em pleno contacto com a natureza bravia da serra, a vida dos frades decorria em intenso recolhimento.

PELAS VEREDAS DA SERRA - Uma das opções mais populares para o percurso entre o Vale dos Lagos e o chalet da Condessa d’Edla é a charrete. Os passeios podem ser acompanhados por um guia especializado. Fotografia Alexandre Vaz.

Não há maior contraste nesta paisagem cultural do que a transição do despojamento do Convento dos Capuchos para a opulência do Palácio e Jardins de Monserrate. Na quinta original, o rico comerciante inglês Gerard de Visme construiu uma mansão que, anos mais tarde, foi adquirida por Francis Cook, um milionário fascinado pelo exotismo da cultura e arte do Oriente, que a transformou radicalmente. 

A cúpula do átrio central domina toda a estrutura. A galeria, a sala da música, a sala de jantar e a sala indiana, restaurados nos últimos anos pela PSML, são agora um portal do tempo para a vida privada de um importante comerciante do século XIX. O parque envolvente resulta da adaptação de uma velha propriedade rural, de forma a criar condições para que nela convivam algumas das mais exóticas espécies vegetais que fazem parte de uma rica colecção botânica.

Por dentro e por fora, Monserrate remete para o imaginário de um palácio das mil e uma noites. 

Por dentro e por fora, Monserrate remete para o imaginário de um palácio das mil e uma noites. No Verão, os jardins são anfiteatros improvisados de espectáculos musicais. Fechando os olhos, o visitante é transportado para a vida sintrense oitocentista.

Regressando ao Percurso Pedestre da Vila Sassetti, é possível igualmente aceder ao Castelo dos Mouros. O pano de muralhas adapta-se aos ziguezagues do terreno, trepando pelos blocos rochosos e pelas planuras criadas pelos habitantes.
Os silos, os reservatórios, a torre de menagem e as ameias sugerem uma fortaleza imponente, mas, na verdade, o castelo nunca foi palco de batalhas: à data da conquista de Lisboa, foi simplesmente abandonado. Hoje, restam poucas estruturas originais e o monumento que ali se ergue é um reinterpretação romântica que confere recorte cénico à serra.   

Palácio Nacional destaca-se na paisagem, com as inconfundíveis chaminés que são o ex-líbris da localidade.

 No regresso à vila, novamente a pé ou num dos tuk-tuk sintrenses, o Palácio Nacional destaca-se na paisagem, com as inconfundíveis chaminés que são o ex-líbris da localidade. O palácio tem uma longa história, recuando até à ocupação árabe. Viveu uma fase pujante de construção nos séculos XV e XVI e acolheu, com frequência, a corte, mas nunca foi local de residência fixa. Isso nunca impediu a sua decoração luxuosa. O visitante não fica indiferente à Sala dos Cisnes, à Sala dos Brasões e à Capela, que evidenciam a fusão dos estilos muçulmano e cristão. 


CHALET ALPINO - O Chalet da Condessa d’Edla foi quase totalmente reconstruído após o incêndio de 1999. No restauro, mantiveram-se a cortiça e a alvenaria de pedra e cal. O reboco das fachadas foi pintado. Fotografia PSML/Emigus

Um dos espaços menos nobres do palácio é hoje um símbolo de majestade ímpar – a cozinha, devidamente apetrechada e coroada pelas grandiosas chaminés, desperta inevitavelmente a incredulidade dos visitantes modernos. 

Tomando partido do programa articulado de transportes públicos e desconto nos bilhetes, o visitante pode acabar (ou começar, consoante o programa delineado) no Palácio de Queluz, mais perto de Lisboa e implantado numa antiga zona de quintas. Queluz  foi cenário de festas, eventos e recepções: as suas inúmeras salas, quartos e dependências estão profusamente decorados, desde a espelhada Sala do Trono à graciosa Sala da Música, sem esquecer a ala privada da família real, os aposentos de Dona Francisca Benedita e de Dona Carlota Joaquina e a Sala Dom Quixote, onde nasceu e morreu Dom Pedro IV. O ciclo musical do Palácio Nacional de Queluz tem lugar  em Outubro e, uma vez mais, é através da música que o visitante é convidado a viajar no tempo.

A notável decoração de uma das salas do chalet da condessa d'Edla. Dali, avista-se o Palácio da Pena. Fotografia PSML/Wilson Pereira.

A luz de Queluz provém do exterior e dos magníficos jardins que estão a ser preparados para recuperar a exuberância de outrora, após décadas de algum desleixo. 

Nas últimas décadas do século XX, foram encontrados vestígios de azul por detrás de bustos em fachadas distintas, sugerindo que essa fora a cor original do reboco  do palácio. Análises posteriores detectaram grãos angulares de silício e cobalto, vestígios de um antigo pigmento com origem em vidro moído utilizado desde a Antiguidade Clássica. 

A viagem termina com um último olhar ao recorte da serra de Sintra, uma ideia admirável do rei-artista. Dom Fernando  II pintava com inegável habilidade e assinava as suas obras singelamente com a expressão latina: FC fecit (Feito por Fernando de Coburgo). Faltou gravar em Sintra essa assinatura monumental.

Ilustração Anyforms

CADERNO DE VIAGEM

Como se deslocar: O Sintra Green Card disponibiliza a visita mais económica aos três palácios nacionais.

Modalidades: Sintra Green Card
2 palácios (comboio Lisboa-Sintra, autocarro em Sintra, Pena e PN Sintra, visita a um museu) por 31 euros, ou Sintra Green Card 3 Palácios (igual ao anterior mas com extensão ao Palácio de Queluz) por 39,50 euros.


MÚSICA EM QUELUZ

Em 2014, a Parques de Sintra- Monte da Lua lançou as suas temporadas anuais de música que se realizam nos três Palácios Nacionais sob sua gestão – Queluz (imagem do ciclo Noites de Queluz – Tempestade e Galanterie, na Sala do Trono), Pena e Sintra.

Cada temporada é composta por três ciclos distintos. Cada ciclo é realizado num Palácio Nacional diferente. O respectivo tema pretende invocar a memória das vivências dos locais através da recriação dos ambientes sonoros associados aos contextos históricos de cada palácio. 

Em Março,de 2017, o Palácio da Pena recebe os Serões Musicais, que decorrerão no Salão Nobre, com um repertório baseado no período romântico e numa recriação do espírito dos saraus que ali decorreram durante a época de Dom Fernando II.

A temporada encerra em Junho no Palácio Nacional de Sintra, com o ciclo Reencontros – Memórias Musicais de um Palácio, em que se percorre, através da música, a história, lendas e personagens e o ambiente da corte real ao longo das épocas medievais e renascentistas. Fotografia PSML/Luís Duarte

Mais informações sobre programação cultural em parquesdesintra.pt

A ARTE EQUESTRE

A Escola Portuguesa de Arte Equestre está sediada nos jardins do Palácio Nacional de Queluz e é a afirmação de uma arte secular que se tenta manter conservada, através da promoção e incentivo do ensino e prática da arte equestre tradicional portuguesa. Para recriar esta tradição, procura-se que os mais ínfimos pormenores não sejam descurados, seguindo à risca a técnica (à esquerda), o equipamento e os trajes. O cavalo lusitano é a única raça utilizada na Escola Portuguesa de Raça Equestre. As exibições e os treinos decorrem habitualmente no Picadeiro Henrique Calado, na Calçada da Ajuda, em Lisboa. A cultura equestre faz parte do código genético sintrense e da habilitação dos cavaleiros e fidalgos setecentistas e oitocentistas, mantendo uma presença luminosa nas ruas da vila. Fotografia PSML/Pedro Yglesias.


 O PALÁCIO DA PENA

No topo do monte, destacando-se na paisagem, o Palácio Nacional da Pena constitui um belíssimo retrato do romantismo que caracteriza Sintra. Assim o imaginou Dom Fernando II que, numa visita à região em meados do século XIX, apaixonou-se pela paisagem e rapidamente adquiriu o antigo mosteiro que ali existia e os terrenos circundantes com o intuito de mandar erguer uma residência de Verão para a família real. A empreitada de criação foi entregue ao barão von Eschwege, amigo de longa data do rei. Do imaginário de ambos nasceu este palácio que reflecte a profusão de estilos arquitectónicos próprios do romantismo: neogótico, neomourisco, neomanuelino, neo-renascentista. O resultado final é uma obra requintada, repleta de pormenores que o visitante não poderá deixar de descobrir e que reflecte a fusão da arte do Oriente e do Ocidente. Ilustração: Anyforms. Fotografias: PSML/Emigus (entrada, tritão e claustro) e PSML/Luís Pavão (vitrais).

1 - ENTRADA - O arco monumental de acesso, que remete para a arquitectura portuguesa dos séculos XV e XVI, é encimado pelas armas de Bragança e de Saxe-Coburgo.

2 - SALA DOS VEADOS - O nome advém da presença de cabeças de veado nas paredes. Aqui figura também a impressionante colecção de vitrais de Dom Fernando II.

3 - TRITÃO - Uma figura alegórica, metade peixe, metade humana, encima o pórtico da Criação do Mundo.

4 - SALÃO NOBRE - É o centro do Palácio Novo. As paredes e o tecto são de estuque branco e o mobiliário, quase todo de nogueira, apresenta influências dos estilos gótico, renascentista e flamengo, embora muita da decoração remeta para a cultura oriental. Destacam-se as janelas com vitrais adquiridos por Dom Fernando II e que faziam parte da sua colecção privada.

5 - GABINETE DA RAINHA DONA AMÉLIA - Começou por ser a sala da condessa d’Edla e foi depois o gabinete de trabalho de Dona Amélia. Foi alvo de trabalhos de restauro, concluídos em 2016. Entre vários objectos originais, destacam-se as estantes de pau-santo e o estirador da rainha.