A serra da Estrela é local de todas as estações do ano. Propomos uma visita às vertentes oriental e sul. E ao seu coração – o da serra e do visitante.

Splash! Poucos segundos depois, o corpo emerge à superfície e grita “Isto é melhor do que a Caparica!” Estendidos em toalhas de praia sobre o relvado, os familiares riem-se do espalhafato do banhista. Em redor, além da relva e das margens amuradas, existem bares e esplanadas, um parque de campismo nas proximidades e, um pouco mais ao longe, árvores que dão sombra àqueles que a procuram.  

Estamos na praia fluvial de Valhelhas, onde o rio Zêzere se acalma – por força da represa que o estanca e alarga – depois da correria que o faz vir aos trambolhões bem perto dos Cântaros do cume da Estrela, onde nasce.

Afastamo-nos, mas ainda a tempo de vermos diversos banhistas a refrescarem-se e outros a sulcarem as águas ziguezagueando em colchões de ar, bóias ou canoas.

Valhelhas é só um dos muitos lugares de usufruto fluvial reconvertidos nos últimos anos. Subindo em direcção a Manteigas e antes de Sameiro, a vista abarca algo inusual: uma pista de esqui e snowboard… artificial. Também aqui, o Zêzere proporciona uma concorrida praia fluvial e respectivas estruturas de apoio.

Mais adiante encontra-se Manteigas, em pleno coração da serra. A vila é um chamariz pela sua localização geográfica e pelas especificidades que reúne. É a primeira povoação a ser visitada pelo Zêzere e, pelo facto de assentar na falha tectónica da Vilariça, que se encontra activa, proporciona que, mediante furos no solo, se encontre água a temperaturas entre 45 e 47ºC. 

Há mais de cem anos que visitantes rumam às termas de Manteigas para aproveitar as propriedades terapêuticas e medicinais da água captada a cem metros de profundidade. 

Nas imediações do Inatel de Manteigas, parte um trilho pedestre que permite ligar a pé um trecho do Zêzere após este descer das alturas da serra. É um lugar idílico, onde abundam pequenos lagos de água tão transparente que torna irresistível um mergulho. Depois do interregno, o Zêzere desliza no seu percurso secular com o maciço central da Estrela como pano de fundo. Em frente, espraia-se o extenso vale glaciar.

O vale glaciário do Zêzere é um dos mais grandiosos “postais ilustrados” da Estrela e é o maior do género em Portugal. Tem 13 quilómetros de extensão e a estrada que o percorre é uma das mais cénicas do país – um verdadeiro ziguezague panorâmico onde a dimensão esmagadora do relevo reduz o ser humano à escala dos fenómenos passageiros. É uma estrada que nunca cansa pelo enquadramento paisagístico e pela forma como as forças da natureza e o glaciar que o moldou esculpiram um vale em perfeita forma de U há milhares de anos. Para cima, ficam o planalto Central e a sua emblemática Torre, os Cântaros, a vastidão da Nave de Santo António, os covões Cimeiro, da Ametade e de Albergaria.

A estrada exige atenção, não só pela sua estreiteza a meia encosta, mas também para não perder de vista o desvio para o Poço do Inferno. Existem diversos “poços do Inferno” espalhados por Portugal, mas este é único, embora ainda mal conhecido.
Resulta de um metamorfismo de contacto entre xistos e granitos. Geologia à parte, trata-se de uma queda-dágua com dez metros de altura que, ao embater no solo, forma um lago com uma água tão cristalina que se torna irresistível para o mergulho, como se possuísse um íman.
A linha de água da ribeira de Leandres é o pretexto da Pequena Rota do Poço do Inferno, um trilho serpenteante, de dificuldade média, que contorna a cascata e permite, além da água, o contacto com uma das zonas mais verdejantes da serra. Das muitas formas possíveis de tomar contacto com a Estrela, a caminhada é de longe a experiência mais revigorante e pura.

São três os rios que nascem na Estrela: o Mondego, o Alva e o Zêzere. Mas a água está presente em todo o lado. No total, existem 25 lagoas de maiores e menores dimensões. No vale do Rossim, na estrada que liga Manteigas à aldeia do Sabugueiro e a curta distância das Penhas Douradas, a lagoa parece retirada de um postal dos Alpes Suíços.
A exploração proporciona surpresas adicionais: a praia em plena serra, numa cota elevada. As margens e os seus nichos arenosos com frequência coloridos pelos guarda-sóis dos visitantes. Obrigatória é também a Lagoa Comprida, um antigo covão agora delimitado por uma barragem, que marca o trajecto do glaciar que por aqui passou.

A serra da Estrela, com o estatuto de geoparque atribuído pela UNESCO, pelas suas formações geológicas ímpares e um território sucessivamente ocupado e domesticado por comunidades humanas. 

Na vertente nordeste da serra, o rio Mondego é desviado artificialmente, através de um canal, para a ribeira do Caldeirão, num registo inconfundível de modernidade e intervenção humana.
A dois passos, porém, mantém-se uma das actividades que marcam culturalmente a Estrela. A pastorícia foi indissociável da montanha. A época em que os pastores erravam pela serra, por vezes semanas a fio, conduzindo rebanhos e acompanhados pelos fiéis cães, perdura na memória. As aldeias de montanha foram sendo consumidas pela voracidade dos tempos, mas a pastorícia subsiste, honrando velhas tradições. 

As aldeias da Corujeira (onde se realiza o Festival da Lã), de Meios (onde existe a Fábrica de Tecelagem, activa e onde os antigos teares manuais ainda funcionam), Fernão Joanes (em cujo topo estão as choças e as eiras que serviam de abrigo aos pastores) e Famalicão da Serra são testemunhas da relação humana dos aldeãos com a montanha e exemplos (ainda) vivos da transumância. O tempo nunca voltará para trás e os pastores tenderão, um dia, a ser uma recordação grata da humanização suave da paisagem, mas não deixa de ser reconfortante encontrar, aqui e acolá, estes homens e mulheres decididos a não se vergar e fiéis ao estilo de vida de muitas gerações familiares.

Regresse-se ao mundo da água. Existem sete vales glaciares que deixam cicatrizes na serra e no território. Três impressionam pela imponência e dimensões: o vale do Zêzere, o de Loriga e o de Alforfa.

Loriga é uma bela aldeia encaixada no fundo do vale mas são as águas da ribeira que injectam vida na comunidade. As piscinas fluviais, distribuídas por socalcos, marcam a paisagem. Um pouco diferente é o vale de Alforfa: não tem a forma clássica de U, mas foi igualmente local de passagem de um glaciar. É mais íngreme do que o do Zêzere e desemboca em Unhais da Serra, no limite meridional da Estrela. À semelhança de Manteigas, também está assente numa falha tectónica activa e as termas de Unhais, associadas a um hotel recente, são agora procuradas para curas. Água, sempre água.


A serra da Estrela, parte integrante do território do Parque Natural homónimo e do Geopark Estrela, é um mundo que cativa seja em que época do ano for. De tons castanhos e acobreados no Outono; branco, quando a neve a visita no Inverno; florida de amarelos e lilases na Primavera; e colorida, com as cores quentes do Verão. 

Há muito que a serra deixou de ser o império exclusivo dos turistas de Inverno. Reinventando-se. Encontrando novas formas de usufruto sustentável. E reelaborando o elemento água, em todas as suas dimensões, a Estrela tem o condão de deixar qualquer visitante rendido ao longo do ano. 

serra da estrela

A nova vida dos chalés de montanha

A tuberculose foi sempre uma praga nas cidades e a industrialização agravou o problema de saúde. No final do século XIX, na sequência de um movimento europeu que procurava paliativos para amenizar o sofrimento dos doentes, foram propostas curas através do ar purificador das regiões de grandes altitudes. O médico Sousa Martins foi um dos paladinos deste movimento em Portugal, propondo a serra como destino de eleição para o efeito. Em breve nasceria o sanatório e iniciar-se-ia um movimento imparável de deslocações temporárias das vítimas da tuberculose para o território da serra da Estrela.

Para essas permanências na zona de montanha, mas também como casas de campo, construíram-se vários chalés de madeira que remetem arquitectonicamente para as paragens alpinas. 

Alguns ainda estão em bom estado de conservação e são ocupados sazonalmente ou alugados para fins turísticos, sobretudo nas Penhas Douradas e nas Penhas da Saúde.

Os territórios genuínos são aqueles que recusam delicadamente as tradições impostas de fora e mantêm-se fiéis aos produtos que sempre extraíram do solo. Estes são alguns dos ícones da Estrela.

Tradicionalmente vocacionados para as viagens de Inverno, têm conseguido encontrar novas vocações, dando resposta ao surto de turismo de Verão que vai chegando todos os anos ao território em busca de um contacto com a natureza, com vida selvagem ímpar e com um património geológico inigualável, capaz de contar em rocha a história das glaciações do planeta.

Das ovelhas e dos cães

Capas, cobertores e mantas são grandes amigos dos pastores. É com estas peças de roupa feitas de lã churra ou merina que conseguem enfrentar as más condições climáticas  que varrem a serra com frequência. Devido à proximidade de diversos cursos de água, surgiram algumas fábricas de fiação que transformam a lã “suja” em lã lavada e fiada. A sua utilização divulgou-se, mas mesmo os pastores que já abandonaram a serra continuam a utilizá-la.

Tal como as ovelhas bordaleiras, o cão da serra da Estrela é autóctone da região. É uma das raças mais antigas de Portugal e reúne as melhores aptidões para o pastoreio, acompanhando o pastor sem se desgastar. Fisionomicamente, possui pêlo áspero para enfrentar os rigores do Inverno e pode ser de pêlo curto ou comprido.
É uma raça muito popular que, aos poucos, vai sendo adoptada como animal de companhia, perdendo a função original.

O inimitável queijo

É uma das grandes imagens de marca da Estrela. Queijo amanteigado, de sabor característico, continua a ser produzido segundo técnicas de antanho. Dizem os produtores que o segredo reside nos pastos da região, na qualidade das ovelhas bordaleiras e, sobretudo, no processo de cura. 

É da serra, mas é apreciado por todo o país.

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