O quartzo, o feldspato e a mica são aquilo de que é feito o granito e esta é a matéria-prima da Estrela. Fotografia de Filipe Patrocínio.
Os primeiros raios de Sol, que iluminam o dia, bafejam a janela e aquecem o ar que a noite arrefeceu. No interior, olhamos a paisagem que, paulatinamente, ganha novas cores à medida que a luz solar ali incide. As formas ganham outros contornos e o vigor da montanha assume a sua imponência, como há muito desejávamos contemplar. A experiência de palmilhar o Planalto Central da Estrela deixa-nos num frenesi difícil de controlar, entre os apetrechos que acomodamos na mochila e as roupas que nos aquecerão durante a caminhada, sempre acima da cota de 1.000 metros de altitude.
Damos as primeiras passadas, ainda a manhã gela e a luz esbate-se no horizonte. Ouvimos o estalido do gelo que quebra à nossa passagem para nos recordar o rigor do frio, mesmo que caminhemos, a passos largos, pela Primavera adentro. O ar frio da manhã amplia os odores da Estrela... da vegetação, do rebanho que passou há pouco pelo mesmo trilho que seguimos agora ou do fumo das lareiras que a brisa transporta pela montanha acima. Seguimos viagem, em passo firme, mas lento, porque a jornada até à Torre ainda é longa e sinuosa, um verdadeiro desafio para os mais aventureiros.
A distância percorrida faz-nos subir em altitude, aumentando a imponência da paisagem e o desafio que nos espera. Olhamos para trás e, ao fundo, vê-se o grande vale glaciário do Zêzere, que há 30 mil anos se cobria com uma espessa massa de gelo. Contemplamos o casario imaculado da vila de Manteigas, envolta numa fina neblina que o dia ainda não dissipou.
À nossa frente, desvenda-se o vale suspenso da Candeeira, também ele uma herança do tempo em que a paisagem, que hoje percorremos, se resumia a um imenso mar de gelo e neve. Esta é uma paisagem indescritível, onde a natureza se funde com as histórias de pastores que aqui permaneciam durante os meses estivais. As paredes graníticas à nossa volta parecem um obstáculo difícil de transpor, mas o dia vai avançando e não há tempo para nos determos neste vale.
Seguimos em direcção ao Covão da Ametade, onde nos refrescamos nas águas cristalinas do Zêzere e retemperamos forças.
A partir daqui, será sempre a subir, até chegarmos aos 1.993 metros de altitude, o ponto culminante da Torre. Deixamos o mar de bétulas que nos protegia do Sol alto do meio-dia e subimos ao Covão Cimeiro, outra pérola do glaciarismo da serra da Estrela. Contornamos o Cântaro Magro e, entre pausas para recuperar o fôlego, olhamos a imensidão que nos rodeia, sentimos as escarpas graníticas austeras e um fascínio, disfarçado de ousadia, pela imponência desta Estrela, a grande montanha que se agiganta há mais de dez milhões de anos. Não fossem as forças escassearem, ainda tentaríamos uma subida ao Cântaro Magro, o mais imponente dos três cântaros. Terá de ficar para a próxima aventura por estas paragens.
Sem perdermos as marcas do percurso, vamos ascendendo ao topo de Portugal continental.
Ainda nos cruzamos com as conhecidas queijeiras, ou, como lhe chamam os geólogos, as colunas graníticas do Covão do Boi, as rochas polidas pelo tempo e pelo gelo, os cervunais de altitude, até que, finalmente, se elevam à nossa frente os antigos radares da Força Aérea e a estrutura de pedra, mandada construir por Dom João VI, para perfazer 2.000 metros de altitude. Chegámos à Torre!
No final desta jornada, observamos o ocaso e deixamos que a luz fraca do final do dia banhe o nosso rosto. De coração cheio, levamos na memória paisagens únicas, olhares irrepetíveis e a beleza imperfeita de uma montanha inacabada cujo imenso património foi reconhecido pela UNESCO como geoparque desde Julho de 2020.