Todos pensaram que o czar brincava quando proclamou: “Aqui surgirá uma cidade.” Naquele local setentrional, mesmo em frente da costa inimiga, sem protecção natural ou materiais de construção e com florestas repletas de mosquitos, a perspectiva de uma cidade parecia inverosímil. Que mal tinha a velha e sólida Moscovo, com as suas casas de madeira, as igrejas e o Kremlin?
O czar não só cumpriu o prometido, como o fez em tempo recorde e com materiais exóticos. Importou mármore de Itália, granito da Polónia e pedras semipreciosas das suas possessões nos Urales. As viagens pelas cidades europeias serviram ao moderno czar para reunir uma heterogénea mas esplêndida corte de arquitectos, jardineiros, artesãos, pintores e ilustradores que o ajudaram a criar a capital mais deslumbrante da Europa que tanto o tinha impressionado. O viajante actual pode intuir o que aconteceu a partir de então: em poucos anos, São Petersburgo ergueu-se sobre aquele terreno pantanoso com a beleza e a coerência definidas por um plano director.
Capital da Rússia até 1918, a cidade foi baptizada em honra do seu santo protector, São Pedro. Passou a denominar-se Petrogrado em 1914 e, dez anos depois, Leningrado. Em 1991, recuperou o nome de São Petersburgo, mas os seus habitantes chamam-lhe simplesmente Piter.
Os ecos europeus encontram-se por todo o lado. Por vezes parece que estamos em Paris, junto do Sena. Depois, passamos a Veneza e aos seus canais. Poderia ser Amsterdão, mas aqueles palácios são tipicamente italianos. A cor é de estilo gustaviano, sueco, mas os arcos e as entradas parecem uma réplica de Berlim. E, apesar de tudo, a sua essência mantém-se plenamente russa, tal como são russas as proporções descomunais dos edifícios e das ruas e o amor ao ouro. Ouro, ouro, ouro por todo lado – a Catedral de Santo Isaac possui o recorde da maior cúpula dourada do mundo –, que ressalta com uma luz especial, nórdica de manhã e dourada ao entardecer.
São Petersburgo foi acusada de ser um teatro onde se representava uma peça permanente sob a direcção de Pedro, o Grande. As suas regras sobre como se assoar, usar cobertores ou criar porcos e vacas fora das avenidas empedradas provocou várias revoltas entre os súbditos conservadores que viam naquela beleza um domínio europeísta e estrangeiro.
Tinham razão quanto à dimensão teatral. O viajante que entra no conjunto de seis edifícios do Hermitage e acede através deste ao Palácio de Inverno sente-se numa representação na qual é protagonista, independentemente do número de turistas que aqui estejam. Outubro e Maio são ideais para ver os tesouros deste museu com calma e menos companhia. A Escadaria dos Embaixadores ou do Jordão, com os seus espelhos emoldurados a dourado e a passadeira vermelha, dá as boas-vindas a uma sucessão de salões, cada um mais sumptuoso do que o anterior. O palácio inclui várias galerias decoradas com retratos dos czares. É visível o salto após 1812, quando a modernidade entrou na Rússia na sequência das guerras napoleónicas e se iniciou uma idade de ouro da literatura e da arte.
Faltam palavras para descrever este complexo palaciano rodeado de jardins construído junto do Neva. Tudo o que os czares queriam mostrar está à vista: presentes de monarcas estrangeiros, como jarrões japoneses e um quiosque de malaquite, o relógio autómato em forma de pavão real de Catarina II e também vestuário e mobiliário. Estão igualmente expostas múmias e esculturas romanas, quadros de Ticiano e um Goya, dois Leonardos, pinturas de Miguel Ângelo, de Caravaggio e várias obras de Rafael. O salão de baile, o divã turco de Catarina II ou as salamandras de porcelana azul e branca dão uma boa ideia da vida neste palácio imenso, que estava ocupado apenas alguns meses durante o ano.
O CEMITÉRIO DE TIKHVIN. Músicos, actores, poetas e cientistas do século XIX repousam entre as frondosas árvores de Tikhvin. Conhecido como “o cemitério dos artistas”, é um recinto imprescindível para prestar homenagem aos protagonistas de um dos períodos cintilantes da cultura russa. Fundado em 1823, situa-se no arredores, junto do Mosteiro de Alexandre Nevsky, um dos mais importantes do país. Pouco depois de entrar, o primeiro túmulo famoso que encontra é o de Fiodor Dostoievski, o grande romancista russo. Um dos monumentos funerários mais bonitos do recinto é o sepulcro de Alexander Borodin, químico e compositor. Outros compositores célebres sepultados em Tikhvin são Nikolai Rimsky-Korsakov, Tchaikovski, Anton Rubinstein e Modest Mussorgsky. Também vale a pena parar em frente dos túmulos dos pintores Ivan Kramskoi e Ivan Shishkin, assim como no do influente crítico literário Vladimir Stasov. Na imagem o túmulo de Tchaikovski.
Os tesouros do Museu Hermitage poderão ocupar vários dias, mas muitas outras belezas aguardam o visitante na cidade. Um passeio de barco pelo rio Neva permite perceber melhor as proporções de Piter e admirar os cais dos palácios construídos nos bancos do rio: quando as águas estavam geladas, utilizavam-se trenós; quando não estavam, barcaças, como as que se usam agora para os contornar.
Embora os russos lamentem o saque a que os soviéticos e nazis submeteram o seu país e o desbaratamento de obras de arte de valor incalculável, o esforço que investiram no restauro do seu património está à vista. Em São Petersburgo, todo o dourado é ouro de lei: quilogramas e quilogramas de folha de ouro adornam portas, paredes, agulhas e tectos.
Quando a luz do dia começa a cair, os edifícios monumentais perfilam-se com maior nitidez nas águas do Neva: a Fortaleza de São Pedro e São Paulo, a Igreja do Sangue Derramado e o Castelo de São Miguel ou Mijáilovski, o único da cidade. À distância, divisa-se a moderna Torre Lakhta, uma agulha de cristal e aço onde se situa a sede central da corporação de energia Gazprom, e o estádio de futebol Krestovski, do arquitecto japonês Kisho Kurosawa, construído sobre uma ilha e inaugurado em Fevereiro de 2017.
Na verdade, pouco importa o que se vê antes e o que se deixa para depois deste passeio fluvial por uma cidade que continua a abrir as suas pontes à noite e que se contorce em torno do rio. Um dos recintos mais espectaculares situados junto do rio é a já mencionada Fortaleza de São Pedro e São Paulo, construída em 1703 sobre uma ilha para proteger São Petersburgo da armada sueca.
Neste recinto hexagonal, surpreendem os muros baixos, adaptados às armas de fogo. Ali instalou-se a guarnição da cidade e a sua prisão mais célebre, com a peculiaridade de ninguém ter sido executado no local. Pela porta cinzenta que ainda hoje se abre para o rio, saíam os prisioneiros, rumo à liberdade ou ao local onde iriam morrer.
CINCO MUSEUS DE ARTE E LITERATURA INESQUECÍVEIS:
■ Museu Consagrado a artistas russos, exibe pintura e objectos de arte confiscados após a Revolução. Metro Gostiny Dvor, Nevsky Prospekt.
■ Museu Fabergé. Acolhe as obras do joalheiro Carl Fabergé, particularmente os delicados Situa-se no Palácio Shuvalov, junto do rio Fontanka.
■ Casa Museu de O poeta agonizou neste apartamento da Rua Makarova em 1837, depois de ser ferido mortalmente num duelo com pistolas.
■ Casa da poetisa Anna Ajmatova, na Avenida Liteiniy. Guarda o manuscrito do Poema sem herói e o seu escritório.
■ Casa de Dostoievski, onde o escritor viveu de 1878 até à sua morte no dia 9 de Fevereiro de 1881. Aqui escreveu Os Irmãos Karamazov, em 1866. Perto da estação de
Durante a Revolução Soviética, as celas acomodaram nobres e simpatizantes do czar, bem como membros da corte. Agora, no interior da catedral com a agulha de ouro que se ergue dentro da fortaleza, descansam todos os czares da dinastia dos Romanov, excepto Pedro II e Ivan IV da Rússia.
Sob a cúpula verde e majestosa, esperam filas de russos crentes que vêm aqui prestar homenagem. Os restantes túmulos de mármore acolhem monarcas, mas a pequena capela da família de Nicolau II abriga santos, porque os últimos czares e os filhos foram beatificados como mártires e o seu culto é muito popular na Rússia contemporânea.
Não é a primeira vez que um czar assassinado é vinculado a uma igreja. A bela Igreja do Salvador do Sangue Derramado, de 1907, foi construída no local onde Alexandre II morreu em 1881 após um atentado à bomba perpetrado por um anarquista. De longe, a semelhança com São Basílio de Moscovo é evidente devido às vistosas cúpulas coloridas em forma de bolbo. Para o gosto ocidental, a Igreja de São Petersburgo é mais elegante do que a moscovita, com uma gama cromática mais refinada. Os anjos são anjos e as cenas bíblicas são perfeitamente reconhecíveis nos mosaicos que forram literalmente o interior até ao último recanto. Azul em todas as suas variações, dourado, obviamente, verde, púrpuras. O resultado será talvez um pouco kitsch, mas esmagador. É impossível não admirar o esforço empregue nas paredes, tessela a tessela. Para os russos da época, essa estética era quase uma traição aos autênticos valores russos.
A Catedral de São Nicolau de Bari ou dos Marinheiros é um precioso edifício azul e branco construído junto do canal de Kriukov. O campanário independente e rematado por uma agulha dourada, juntamente com as cinco cúpulas, tornam-no reconhecível mesmo à distância. Além de possuir um interior riquíssimo, com uma iconóstase que nada fica a dever a outras catedrais, a estrutura evoca todos os anos os marinheiros desaparecidos, incluindo os dos submarinos soviéticos. Para uma cidade aberta ao mar, São Nicolau foi sempre um importante centro de devoção que nunca cessou, nem mesmo durante a época comunista.
Se se pretender conhecer algum palácio fora da esfera dos Romanov, perto daqui encontra-se o dos príncipes Yusupov. Residência de uma família abastada, inclui tudo o que o dinheiro pode pagar em termos de beleza e sumptuosidade. Os sótãos foram cenários de uma das situações mais críticas da história da Rússia: o assassínio de Rasputine, o pensador e místico que foi adorado por metade da aristocracia czarista e odiado pela outra metade. O crime é recriado com minúcia durante a visita ao palácio.
O luxuoso universo imperial estende-se para lá da cidade, em Tsarskoye Selo, a residência habitual dos czares. Embora o Palácio de Alexandre, onde residiram os últimos czares se encontre agora fechado, pode visitar-se o de Catarina, para alguns o mais bonito de todos, com um reconhecível exterior azul e castanho.
Recomenda-se uma visita a Peterhof, a residência de Verão dos czares, ou melhor, uma delas. À época, Peterhof estava suficientemente distante da cidade para se sentir o campo, mas hoje, a distância percorre-se em cerca de 45 minutos, se os engarrafamentos o permitirem.
LUGARES EMBLEMÁTICOS NA CIDADE DOS CZARES:
1 Fortaleza de São Pedro e São Paulo. De 1703, acolhe museus, uma catedral e o túmulo dos Romanov.
2 Hermitage. O grande museu in- clui o Palácio de Inverno, a luxuosa residência imperial nas margens do Neva.
3 Igreja do Salvador do Sangue Derramado. As cúpulas em forma de bolbo e coloridas destacam-se sobre o canal Griboedova. O inte- rior está coberto de mosaicos e pinturas murais.
4 Avenida Nevski. Esta via histó- rica e comercial tem quatro quiló- metros. Entre os seus pontos mais interessantes, destaca-se a Casa Singer, um edifício moderno trans- formado em biblioteca.
5 Catedral de São Nicolau. É um belo exemplo barroco, construída em honra dos marinheiros russos.
6 Teatro Mariinsky. A sala de concertos foi construída no século XVIII e é uma das mais sumptuosas da Europa.
Ao viajante será dito que era um local informal, divertido, sem protocolo e não se consegue acreditar nisso. Será preciso ler nas entrelinhas para perceber a diferença entre este e o Palácio de Inverno, entre o salão de baile e a escadaria de entrada de um e de outro. É preciso colocar protecções nos sapatos para não danificar o delicado pavimento. Peterhof encontra-se em frente do mar. Na verdade, os trilhos dos jardins conduzem directamente à margem cinzenta cor de chumbo e refrescante no Verão, quando as temperatura podem ser muito altas. Se a vida noutros palácios se desenrolava no interior, em Peterhof tudo está pensado para usufruto do exterior.
Existem pequenos jardins atapetados de flores coloridas, uma escadaria principal com fontes douradas ao estilo de Versalhes, e ao fundo, a pequena casa de Pedro, onde o czar se refugiava com a sua segunda mulher para fingir uma vida normal em que ela cozinhava e ele caçava. É engraçado tentar encontrar a rotunda dedicada a Adão e a dedicada a Eva, com esculturas de nus. O gosto do czar pelas partidas comprova-se nas fontes, muitas das quais activavam-se quando o soberano queria molhar damas ou cortesãos.
De regresso à cidade, é altura de a percorrer a pé e dessa forma descobrir os recantos junto dos canais, parques e ruas e de se deixar levar pelo prazer de passear ao longo da elegante Perspectiva Nevsky, um dos poucos locais que na verdade pertenciam ao povo e não à nobreza.
Com quatro quilómetros de extensão, a mítica Avenida Nevsky foiglosada por autores como Gogol, Dostoievski ou Tolstói, que a inclui em Anna Karenina, e, tal como os canais, oferece uma radiografia da cidade: palácios, lojas, pontes delimitadas por esculturas de bronze e todo o tipo de comércio. É curioso que, salvo as luxuosas marcas internacionais, muitas das lojas não tenham montras. Não é fácil perceber o que vendem: recordações? As inevitáveis matrioskas? Ou talvez sirvam café e bolos?
A meio da avenida surge um sensacional edifício modernista, construído em 1904 para alojar a fábrica de máquinas de costura Singer e que agora acolhe a Casa do Livro, a maior e mais atractiva biblioteca da cidade. O passeio literário pode continuar mais à frente na Casa-Museu de Dostoievski ou, ruas depois, na de Pushkin, um palácio dedicado ao genial poeta e a toda a literatura russa.
À hora da refeição, a Avenida Nevski oferece muitas opções. Pode escolher uma esplanada para tomar um chá e uns deliciosos blinis com caviar e creme azedo. Ou pode pedir um menu tradicional, composto por uma entrada fria, um prato quente, geralmente sopa, um prato principal, sobremesa e um pouco de vodka. Nesta altura do passeio, de certeza que o visitante já descobriu que os habitantes de São Petersburgo são hospitaleiros, amáveis e cultos, sempre dispostos a dois dedos de conversa com palavras ou gestos... conversa que acaba sempre com a proclamação de que a sua cidade é a mais bela do mundo.
São Petersburgo vive tanto de dia quanto de noite. Para o viajante que não saiba falar russo, o ballet, seja clássico ou folclórico, é uma boa opção. Podem reservar-se bilhetes para o Teatro Mariinsky, com uma inigualável trajectória desde o século XVIII, e onde foi primeira bailarina Mathilde Kschessinska, a única amante de Nicolau II. É menos vistoso por fora do que por dentro, com paredes revestidas a ónix e espantosos lustres de cristal.
Os soldados do czar Pedro tinham razão em acreditar que o seu imperador sofria de delírios de grandeza quando imaginou São Petersburgo como a sua jóia da coroa. No entanto, o sonho tornou-se realidade.