porto santo

Há alguma ironia nas circunstâncias em que a ilha do Porto Santo foi oficialmente descoberta em 1418. Enfrentando no mar uma tempestade, os navegadores Tristão Vaz, João Gonçalves Zarco e Bartolomeu Perestrelo encontraram afortunadamente uma ilha onde puderam abrigar-se. Chamaram-lhe Porto Santo, vendo no abrigo providencial uma intervenção dos céus, mas seria na vizinha Madeira que os descobridores encontrariam motivos mais evidentes para levar boas novas ao rei. 

De algum modo, essa é uma narrativa comum na história da ilha. A sua beleza é mais austera do que a das restantes ilhas do Atlântico e demora um pouco mais a embrenhar-se. Em contrapartida, quando impregna o viajante, infecta-o para sempre com o desejo de regressar. 

Vista do mar, a Madeira resplandece com os tons invejáveis de verde das florestas densas; muitas ilhas atlânticas exibem os tons escuros do basalto das erupções em contraste flagrante com o azul do mar que as cerca. No Porto Santo, a cor dominante é o dourado – da areia da praia, do solo arenoso que domina a paisagem e das formações geológicas invulgares e abundantes. Dourado também em alguns picos famosos da orografia insular – como o Pico Branco e o Pico do Facho – e até nos seis ilhéus que cercam a ilha, como uma segunda linha de muralhas na frente atlântica.

É redutor olhar para a ilha e ver apenas um local de sol, mar e areia. Esta ilha do arquipélago da Madeira é um território abençoado pela natureza, onde o homem soube resistir às contrariedades da colonização. Arenosa por excelência, cada metro quadrado de solo fértil foi domado à força de braços e de crença por gente obstinada. Desde os primeiros povoadores que a história da ilha se faz por tentativa e erro, testando culturas e plantações e domesticando lentamente a paisagem. A água, esse elemento que cerca a ilha por todos os quadrantes e que nunca sai do ângulo de visão do visitante, foi, por ironia, um bem escasso que moldou a aventura da colonização. Na década de 1940, a ilha registou mesmo a sua maior seca: 12 anos sem chuva.

Em contrapartida, enquanto outros paraísos insulares há muito perderam o seu carácter genuíno, o Porto Santo conserva intactas as suas formações naturais. À medida que o turismo de natureza se consolida, os cerca de 43km2 da ilha tornam-se um pequeno paraíso.

Os confortos modernos demoraram a chegar ao Porto Santo. Até 1954, a ilha funcionou com candeeiros a petróleo e a rede de distribuição de água potável ao domicílio só começou nesse ano. O primeiro telefonema entre o Porto Santo e a Madeira teve lugar em 1959, ano em que também pousou o primeiro avião na ilha. O isolamento faz parte da história local – apreende-se em qualquer ponto do território, mas talvez o Pico do Castelo seja o ponto mais eloquente nesse sentido. 

Sempre que piratas e corsários pilhavam a ilha, beneficiando da sua vulnerabilidade geográfica, as populações fugiam para este ponto íngreme. Em 1617, reza a história que ficaram apenas 18 mulheres e 7 homens na ilha após as pilhagens.  

Mesmo hoje, pelos trilhos pedestres ou ao volante de um carro, o acesso ao Pico do Castelo requer energia, mas é compensado pela extraordinária panorâmica que dali se usufrui. O pico, a 437 metros de altitude, está revestido de coníferas. Do magnífico terraço panorâmico, o viajante contempla o oceano e a ilha que se espraia em baixo. Vale a pena lembrar que, para todos os navegadores que se aventuram da Europa em direcção ao Atlântico Sul, o farol do ilhéu de Cima (visível para sudeste) é o primeiro ponto luminoso artificial na paisagem.

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A carcaça do antigo Madeirense é um dos locais mais cobiçados pelos mergulhadores.

Formada há 14 milhões de anos, a ilha do Porto Santo é uma preciosidade geológica. Das muitas erupções, erosões e mais erupções, resta uma variedade de locais de uma beleza natural que não deixa ninguém indiferente. Pelas estruturas e facilidade de acesso, um dos locais mais icónicos é seguramente o Pico de Ana Ferreira, um testemunho de vulcanologia que nos deixa estupefactos. Pela profusão de colunas prismáticas, como traves de madeira que suportam o peso da colina, tornou-se um dos mais fotografados pontos da ilha.

Para conhecer os diversos locais de referência do Porto Santo, aconselha-se o recurso a um guia local ou a um dos tours que promovem caminhadas entre os vários geossítios e paisagens protegidas. Formados com rigor, os guias turísticos descodificam os acidentes da paisagem com minúcia e bom humor. 

A pouco mais de três quilómetros de distância, tomando o ilhéu de Ferro como referência, a falésia dos Morenos é outro local que esmaga pela dimensão, cor, estrutura, textura e envolvente paisagística. As falésias são irregulares, como se um gigante se tivesse entretido a moldar cada rocha por capricho. A mata de pinheiros, dragoeiros e oliveiras constitui mais uma recordação da luta inclemente do homem contra os elementos – as árvores são protagonistas de um bem-sucedido esforço de reflorestação promovido pelo Governo Regional. Todo o conjunto convida o viajante a alguns minutos de contemplação.

Prosseguimos a descoberta do lado norte da ilha, território por excelência dominado por grandes manchas de paleodunas. São estruturas de areia muito antiga, com largos milhares de anos e que, com tempo e paciência, foram esculpidas e desintegradas em formas muito peculiares.

As falésias da Fonte da Areia são uma delícia visual. A imaginação humana tem dificuldade em conceber o árduo trabalho do vento e da chuva, mas foram essas forças que agiram sobre os maciços de areia, desenhando, recortando, texturando a areia de tal forma que, por vezes, soltamos um sorriso ao vermos alguns pormenores estruturais improváveis nestas esculturas naturais. Nem mil palavras chegam para descrever o enorme monumento natural em toda a sua plenitude. 

Os passeios conduzidos pelos guias das empresas turísticas locais são concebidos como uma ária de ópera, na qual o visitante vai evoluindo de trecho em trecho, em crescendo, até à apoteose final. Esse momento de êxtase costuma ocorrer nas dunas da zona dos Mornos. Segure bem o queixo e arregale os olhos: várias espécies de caracóis fossilizados e abundantes estruturas em forma de raiz (as rizoconcreções) marcam o solo e as paredes, como páginas arrancadas de um livro muito antigo. São tão abundantes que foram utilizadas como adorno no fontanário local, junto da zona destinada a piqueniques e merendas.

Durante anos, os caracóis de Porto Santo foram motivo de interesse para cientistas de todos os cantos do globo. Já foram descritas 130 espécies de caracóis da ilha – contemporâneos ou extintos. Há pequenos e grandes, espalmados ou cónicos, numa diversidade incrível. Exemplares locais foram recolhidos e levados para Londres, Paris e Filadélfia como testemunhos silenciosos, mas eloquentes, da teoria darwiniana da evolução.

Mais de quatro anos depois de ter partido a bordo do HMS Beagle, Charles Darwin estaria seguramente fatigado quando se aproximou dos arquipélagos portugueses do Atlântico. Contrariamente às suas expectativas, não conseguiu atracar nas Desertas, nem na Madeira porque a fúria do mar não o permitiu, como se zelasse pela protecção dos seus segredos naturais. 

Darwin partiu, mas manteve debaixo de olho a ilha do Porto Santo. Nas duas décadas que se seguiram até à publicação de Origem das Espécies, coligiu informação relevante sobre os fenómenos de especiação produzidos nesta ilha mágica. Ao longo da sua vida, trocou correspondência com outros naturalistas sobre o coelho do Porto Santo, introduzido na ilha quatro séculos antes por Bartolomeu Perestrelo na esperança de que a espécie vingasse e servisse de alimento para os colonos. Diz-se aliás que todos os coelhos da ilha descendem de uma única fêmea levada para Porto Santo pelo primeiro capitão donatário.

Quatrocentos anos depois, o coelho do Porto Santo serviu a Darwin para substanciar a sua tese sobre evolução de organismos em ambiente insular. Tal como no caso dos caracóis, a especiação do coelho num ambiente tão indivualizado (e portanto onde se tornou mais fácil isolar as variáveis de evolução), constituiu uma marca de água da teoria da evolução num dos locais mais fascinantes do planeta.

Uma das formas interessantes de descobrir uma ilha arenosa é a bordo dos veículos todo-o-terreno proporcionados pelos operadores turísticos. É desse modo que atingimos a Casa da Serra, na extremidade oriental da ilha. Trata-se de uma relíquia arquitectónica onde é possível ver os métodos, processos e materiais de construção das primeiras habitações edificadas na ilha, as célebres “Casas de Salão”, designação inspirada na argila de tom esverdeado colocada no telhado para servir de cobertura isolante. Sobre o vigamento de madeira ou de canas, era aplicada uma camada de fetos que, por sua vez, recebia revestimento adicional de argila fina. Foi o engenhoso processo engendrado para resistir à chuva no Inverno e ao calor no Verão, mantendo uma temperatura interna amena.

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Costa Sul - A partir da crista do Pico de Ana Ferreira, a elevação mais íngreme da parte ocidental da ilha, obtém-se uma perspectiva única sobre as formas de relevo da ilha.

No átrio desta Casa da Serra, pode ainda observar-se uma matamorra, buraco generoso escavado no chão para guardar cereais ou bens preciosos. Existem diversas na ilha, quer em espaços exteriores quer em espaços interiores de habitações. Terão sido idealizadas numa época de pirataria comum. Na iminência de ataques e saques, terão sido usadas para os habitantes se protegerem, principalmente mulheres e crianças, e para guardar os bens mais valiosos da população. São um testemunho palpável do engenho dos porto-santenses. 

Os ilhéus estão agora envolvidos noutro projecto que requer engenho e criatividade. Em 2018, a ilha estabeleceu como meta a criação de condições para que os transportes funcionem sem recurso a combustíveis fósseis. A iniciativa prevê a substituição da frota local por carros eléctricos, uma proeza meritória numa ilha pequena e carente de muitos recursos naturais.

Prosseguindo o périplo pela ilha, chamam a atenção as silhuetas dos moinhos de vento na Serra de Fora, indícios de uma tradição cultural duradoura. Após a construção do primeiro moinho de vento no Porto Santo no ano de 1794, a segunda geração de moinhos de vento só despontaria em 1870. 

Mais ligeiros e mais pequenos, já apresentavam uma construção bem diferente dos antecessores, pois foram construídos sobre um embasamento de rocha empilhada. Uma “casa” de madeira alberga toda a mecânica de veios, rodas dentadas, mós e outros elementos construtivos. Ao contrário dos primeiros moinhos, esta nova arquitectura permitia que toda a estrutura rodasse em função da direcção do vento. Em 1924, existiam 34 moinhos particulares a laborar, com impacte relevante na economia da ilha.

Para conhecer a história dos moinhos de vento, o Museu Cardina, na Camacha, é seguramente a melhor sugestão. Observe como a maior parte do moinho é de madeira. Atente na minúcia das peças e engrenagens. Neste museu particular, concentra-se uma fatia importante da etnografia da ilha, desde a agricultura à pesca e à tradição gastronómica. Nos moinhos, eram processados vários cereais, dando origem a farinhas muito finas. Com farinha de trigo, ��gua tépida, fermento e sal, confecciona-se ainda o saboroso bolo do caco, delícia regional exportada com gosto do Porto Santo para o mundo.

Após amassada a pasta, esta era colocada numa pedra (previamente aquecida) e aí era cozido o bolo do caco. Ao fim de dezenas de cozeduras, as pedras inevitavelmente desintegravam-se em cacos – a explicação para o curioso nome da iguaria.

Outras delícias para o estômago provêm naturalmente do mar – da sanduíche de polvo aos pratos de espada-preto ou de gaiado. Pode empurrar estas delícias com a cerveja madeirense Coral  ou com a poncha, aqui servida com diversas variedades – do maracujá à tangerina, do morango ao limão, incluindo o kiwi. Famosos são também os gelados do “Lambecas”, uma referência gastronómica  com muitos anos de tradição.

A escassos três minutos do Museu Cardina, não perca a oportunidade de visitar o Porto das Salemas, sobretudo nos meses de Verão, quando a praia está mais preenchida por banhistas. As magníficas piscinas naturais são um local muito procurado, pois proporcionam o prazer de nadar em águas cristalinas, onde nem sempre se adivinha o fundo. 

A ilha do Porto Santo é também um excelente local para explorar o mundo subaquático, quer em mergulho com garrafa quer nas incursões com máscara, tubo e barbatanas. Actualmente, 70% do território da ilha e ilhéus estão integrados no Parque Natural da Madeira e na rede de áreas protegidas do Porto Santo. O ilhéu de Cima merece uma referência especial, pois possui uma área classificada que engloba a zona terrestre e a marinha.

As medidas de conservação alimentam o turismo de mergulho devido à exuberância da fauna e da flora subaquáticas. Grandes cardumes e enorme diversidade de espécies deixam o visitante com óptimas memórias deste paraíso subaquático onde a biomassa animal não parece tão afectada pela sobrepesca. O mar do Porto Santo é conhecido pelas águas cristalinas que podem permitir 25 metros de visibilidade. No Verão, a temperatura da água ronda 24ºC. 

É um paraíso para os dois centros que oferecem diversos serviços de mergulho, desde os tradicionais aos baptismos simples no mar ou de embarcação, passando pelos passeios de snorkeling e níveis mais avançados de formação. 

As últimas etapas de uma viagem inesquecível cumprem-se num certo regresso aos valores básicos. A pé, o viajante adquire no Porto Santo um conhecimento muito mais próximo da ilha e do que ela tem para oferecer. Entre os vários percursos pedestres possíveis, destaca-se o troço entre a vereda do Pico Branco e Terra Chã. É uma das caminhadas mais agradáveis e empolgantes da ilha, embora não chegue a seis quilómetros. A caminhada até ao Pico Branco é soberba, ao longo da linha de costa recortada, avistando ilhéus plantados no azul oceânico, escarpas a cair no mar, florestas densas e verdes e rochas cobertas de líquenes coloridos. Resume admiravelmente a versatilidade da ilha.

O Porto Santo orgulha-se de uma derradeira força natural, tão porosa que se esvai entre as mãos. Na sua areia ancestral, encontraram-se virtudes terapêuticas, promovidas desde a década de 1920 mas só comprovadas cientificamente no final do século. Num dos spas da ilha, o viajante é convidado a submergir em caixas de madeira e a areia é docemente vertida por cima do corpo, como uma máquina de sorvetes preenchendo o espaço no interior do cone. A terapia de areias quentes tem sido recomendada para doentes reumáticos. A areia aquece lentamente, superando a fasquia dos 40ºC. Num instante, o viajante semicerra os olhos, deixa-se fluir e guarda para sempre a ilha dourada na memória.