Porto da Cruz é a única freguesia do Norte da ilha da Madeira cuja sede de município fica no Sul, em Machico. Mas nem sempre foi assim. Entre 1835 e 1852 fez parte do concelho de Santana. Do Miradouro da Portela, a vista, literalmente panorâmica, do Porto da Cruz, valida a descrição remetida por Jerónimo Dias Leite a Gaspar Frutuoso, em 1579: “Grossa fazenda, com boas terras de canas e muitas águas”. Já nessa altura, alguns engenhos (fábricas de processamento de cana de açúcar) no Porto da Cruz davam o seu contributo para a produção do “ouro branco” madeirense. De mais de meia centena de engenhos, na Madeira, restam apenas três, sendo um deles o do Porto da Cruz, hoje dedicado essencialmente à aguardente de cana, ou rum, por via das imposições normativas do mercado.
Menos divulgada é a contribuição do Porto da Cruz, juntamente com a vizinha Santana e Boaventura, na produção de vime que, no século XIX, sustentou a economia da Camacha. Já quando se trata do “americano”, a história é outra, bem gravada na heráldica da freguesia que ostenta dois borrachos ladeando a âncora que remete para a cruz erigida junto da baía que serviu de porto nos primórdios da colonização da ilha. Este “americano” é o vinho seco, transportado em odres de cabra pelos borracheiros do Porto da Cruz que percorriam as veredas desde esta freguesia até aos armazéns dos compradores no Sul da ilha. Hoje, pistas internacionais de trail run, de nível técnico e exigência superior, levam-nos em alguns desses trilhos a imaginar a dimensão épica da função de borracheiro e do valor agrícola das terras do Porto da Cruz.
Do vale à montanha e do mar à serra,
Teu povo humilde, estóico e valente
Entre a rocha dura te lavrou aterra,
Para lançar, do pão, a semente.
Esta estrofe do Hino da Região Autónoma da Madeira ajusta-se na perfeição à orografia do Porto da Cruz, que se estende desde as serras, destacando-se uma boa mancha de floresta laurissilva, Património Mundial Natural da UNESCO, até ao mar com algumas pequenas baías e praias de calhau e areia negra, contrastando com imponentes escarpas. A geodiversidade do Porto da Cruz é verdadeiramente generosa, oferecendo elementos únicos e espectaculares de que se destacam geossítios classificados no âmbito da estratégia de conservação do património geológico local, lançada em 2015.
Boas sugestões de visita são os geossítios da Ribeira Tem-te Não Caias, com as rochas mais antigas expostas na ilha da Madeira, formadas em ambiente submarino, nos últimos momentos (geológicos) antes do surgimento da ilha; a Terra do Batista onde se encontram rochas plutónicas, raridade na Madeira, que afloram nos recortes das ribeiras das Voltas e do Massapez; e Casas Próximas, igualmente o único geossítio conhecido na Madeira com rochas sedimentares a que se junta o verdadeiro monumento natural que é a Penha d’ Águia, do alto dos seus 590 metros, o elemento morfológico mais relevante do Porto da Cruz.
Mantendo a traça rural e agrícola, o Porto da Cruz tem vindo a acrescentar novas valências associadas aos activos naturais, diversificando a sua diminuta socioeconomia. Os variados percursos pedestres, incluindo levadas, têm vindo a promover o Porto da Cruz como referência internacional do trail running. Seja a correr, seja a passo, com paragens de cortar a respiração ou de encher os pulmões e a vista, as possibilidades são imensas, num ambiente em que não se percebe onde acaba a natureza e começa a intervenção humana.
Se a vocação tiver uma tendência ainda mais radical, então a sugestão é “voar” desde a Portela ou da Penha d’Águia, mesmo sabendo que esse talento não está ao alcance de muitos. Alternativamente, o surf ou o bodyboard na Alagoa ou na Maiata constituem experiências notáveis em cenário irresistível.