Diz-se dos vulcões que, por vezes, adormecem, escondendo a sua natureza violenta até ao dia em que despertam. É mais raro encontrar essa sonolência numa zona húmida, mas, durante algumas décadas, o Paul do Boquilobo esteve mesmo dormente. Foi classificado como Reserva da Biosfera em 1981 (a primeira do país), mas, nos anos subsequentes à revolução de 1974, a conservação da natureza não estava no topo das prioridades. E o paul foi ficando inerte, à espera de uma intervenção.
Esta extraordinária zona húmida diluída entre os concelhos da Golegã e de Torres Novas aguardou décadas por uma intervenção que a ressuscitasse, negligenciada como “mero” território de aves e anfíbios, peixes e insectos, flora e uma beleza que só ospoetas e os fotógrafos de natureza cultivavam. O escritor José Saramago, que cresceu na Azinhaga, a cinco quilómetros daqui, definiu-o com a genialidade dos simples: “Um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso.”
Cercado por explorações agrícolas na transição para o século XXI, o paul parecia a aldeia de Astérix, na iminência de um ataque “civilizacional”. A floresta que o rodeava foi desaparecendo, uma estação de tratamento de águas residuais chegou a fluir para aqui e esteve prevista a construção de uma urbanização perto da zona-tampão da reserva. A própria classificação da UNESCO chegou a estar em risco. Algo, porém, modificou-se.
Em meados da década passada, as duas autarquias envolvidas, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a Onga-Tejo e a Agrotejo, uma associação de proprietários rurais, juntaram esforços e criaram uma nova unidade de gestão. A Reserva foi alargada para quase seis mil hectares e registou-se um apelo à participação da sociedade civil: hoje, a unidade de gestão possui mais de cinco dezenas de membros entre associações ambientalistas, empresas e unidades académicas e procura-se o equilíbrio da conservação da natureza e as actividades sustentáveis associadas ao turismo e à agricultura biológica.
Percorra o trilho assinalado na Reserva, caminhando entre o asfalto e a terra batida e perceberá melhor a atracção que este oásis de abundância exerce sobre a avifauna. O Almonda tem humores e o seu caudal flutua com as estações do ano, ora alagando a planície, ora recuando e deixando campos fertilizados e repletos de vida. Maravilhe-se aqui com a maior colónia de garças da Península Ibérica, concentrada nestas águas estagnadas. Milhares de patos arribam aqui também, parando como numa área de serviço para se reabastecer. A Zona de Protecção Integral é vedada aos visitantes e constitui o seguro de vida do paul.
Numa zona húmida como o Paul do Boquilobo, o visitante nunca tem garantido avistamentos específicos. Sujeita-se ao escrutínio dos deuses e aceita, por uma vez, que há factores que estão para lá do seu controlo. Esse é talvez o maior fascínio do território que o criador de paisagens se esqueceu de levar para o paraíso.