Na região onde os Pirenéus se rendem à planície occitana, encontra-se uma das paisagens históricas mais interessantes da Idade Média, marcada por uma seita religiosa que fez frente à hierarquia da Igreja Católica. Este roteiro propõe acompanhar os seus passos e descobrir alguns dos locais mais belos do Sul de França.

Cinquenta e duas sentinelas de pedra com uma cobertura cónica esperam o visitante que se aproxime da cidade muralhada de Carcassonne, a povoação medieval de aparência perfeita qualquer que seja o ponto de onde se aviste. Das colinas meridionais, junto das quais se encontra a auto-estrada A-61, o crepúsculo é um momento sensacional do dia, pois transporta o visitante para épocas de cavaleiros armados, damas de vestidos vaporosos e pérfidos nobres feudais.

Carcassonne não perde a sua magia quando o viajante se aproxima. A cidade medieval é uma porção ínfima da moderna cidade que se abre nas suas costas e expande-se para norte, leste e oeste. Tem tanta personalidade e é tão bonita que quando se atravessa a Porta Narbonesa, a pátina solene transmitida pelas enormes paredes de pedra, as barbacãs vigilantes e os engenhos defensivos maravilham o viajante. O seu projecto de restauro suscitou críticas de alguns puristas, mas Carcassonne resplandece hoje como na Idade Média.

Antes de penetrar definitivamente no pequeno labirinto, vale a pena percorrer o fosso exterior. Carcassonne conta com uma muralha dupla. Entre ambas existe um espaço ajardinado que os moradores aproveitam para todo o tipo de actividades desportivas, encontros culturais e eventos.

As paredes altas parecem tornar pequenos os visitantes que se divertem a comparar as torres sem cobertura com as de telhado de xisto negro ou de telha vermelha que brilham no perímetro interior. Uma vez fechado o círculo, é melhor entrar na cidade medieval e caminhar sem rumo.

Vista do ar, a cidadela medieval de Carcassonne tem vagamente o formato de um rim. No lado meridional, situa-se a Basílica de Saint-Nazaire, um templo de que existem referências desde o século X e que demorou três séculos a ser concluído. Diz-se que, no seu primeiro século, concretamente em 1096, o papa Urbano II quis visitá-la para benzer as suas pedras.

Muito perto, encaixado no extremo sul da muralha, encontra-se o anfiteatro construído no século XX que assenta sobre o que foi em tempos o claustro da basílica. Na sua disposição semicircular, realizam-se, há mais de cem anos, espectáculos teatrais e musicais.

Anexo à muralha ocidental mas já quase no extremo norte da cidadela, encontra-se o castelo condal dos Trencavel, família nobre que se colocou ao lado dos cátaros, o que lhes trouxe grande infortúnio. A fortaleza é uma defesa tripla no interior da dupla muralha medieval. Também próximo, encontra-se o Museu da Inquisição, um catálogo de instrumentos de tortura dificilmente imagináveis se não se conhecesse já a natureza humana.

Esta exposição é o local ideal para recordar a relação de Carcassonne com o movimento cátaro. O epíteto era usado no passado com algum desdém e os habitantes locais preferiam ser referidos como “bons homens”, “puros” ou “albigenses” pela sua ligação a Albi. Constituíram um movimento cristão que, a partir do fim do século XII, denunciou os excessos da hierarquia católica.

As divisas cátaras foram o pacifismo, a eliminação da carne na alimentação, a renúncia à vida sexual e uma existência que recusava os bens materiais. Poderá parecer que apenas as classes mais baixas aderiram a este movimento, mas muitos nobres juntaram-se ao movimento ou protegeram-no – algumas vezes com forte convicção, noutras irritados com o poder da Igreja que se convertera num rival antipático.

Os Trencavel acolheram dentro das muralhas de Carcassonne muitos cátaros que fugiam às investidas de Simon de Montfort na denominada Cruzada Albigense, quando Roma deu conta de que a única forma de erradicar o catarismo era extinguir os seus membros. Mais de vinte mil cátaros foram passados a fio de espada ou mandados para a fogueira no chamado Massacre de Béziers. Os que conseguiram escapar refugiaram-se nas muralhas de Carcassonne.

País Cataro

Rota pela memória cátara

1. Carcassonne. Recomenda-se um passeio pelas muralhas da Cité e uma visita ao castelo.

2. Saint-Hilaire. A abadia beneditina foi uma referência no movimento cátaro.

3. Mirepoix. Vila medieval. Não perca as casas com fachadas em estilo enxaimel.

4. Foix. Última etapa da GR-107, que atravessa os Pirenéus, partindo do Sentier Cathare.

5. Montségur. Ícone do catarismo destruído em 1244. A subida ao castelo tornou-se uma espécie de peregrinação.

6. Arques. De formato quadrangular, é um dos castelos mais bem conservados.

7. Peyrepertuse. É o maior castelo. As suas ruínas continuam a ser magníficas.

8. Quéribus. Ergue-se sobre um rochedo como se fosse um bloco compacto.

O passeio pelo interior da muralha é mais tranquilo do que noutros locais famosos do turismo medieval francês. Embora se tenham instalado entre as suas históricas paredes restaurantes, hotéis, bares, doçarias, lojas de artesanato ou pastelarias, a pressão é menor do que noutros lugares e a caminhada, com excepção de momentos pontuais no pico do Verão, é agradável. É por isso difícil abandonar Carcassonne.

Todavia, para prosseguir na peugada do mundo cátaro neste recanto ocitano, é preciso seguir rumo a sudoeste e parar na tripla encruzilhada onde se encontram as estradas locais D119, D625 e D626. Aqui, não perder Mirepoix, uma vila com apenas três mil habitantes, adormecida e quase silenciosa.

As excepções são as segundas-feiras, momentos em que a sua praça porticada (a Place du Maréchal Leclerc) acolhe o mercado da comarca. Nessa altura, o magnífico espaço quadrangular de casas em enxaimel, ruelas e vigas esculpidas fervilha de agitação com agricultores e artesãos vindos de todos os locais das redondezas.

As efígies talhadas em madeira, que representam personagens sinistras e alguns monstros, da Casa dos Cônsules ficam quase ocultas pelo movimento que se produz junto do solo. Neste encontro semanal, é óbvia a habilidade dos franceses para vender os seus produtos agrícolas, para tornarem qualquer café encantador ou para hipnotizar os turistas e levá-los a gastar dinheiro nos magníficos trabalhos de ferro forjado ou couro incrustado.

Perto das duas horas da tarde, o mercado é desmontado e Mirepoix regressa ao silêncio durante sete dias. Livres das bancas e do ruído, os vetustos edifícios voltam a exibir as suas fachadas, revitalizadas com a pintura em tons pastel e com as travessas de madeira à vista, um indício muito expressivo da forma como foram concebidos. A praça, um quadrado perfeito, é toda porticada, com esbeltas colunas de madeira em forma de Y que sustentam as casas onde não pareceria estranho ver um recatado cátaro da Idade Média.

Após meia hora na estrada rumo a sudoeste, surge Foix, uma rocha coroada por um castelo digno de uma lenda na confluência dos rios Arget e Ariège. Configura uma das mais belas imagens das localidades da vertente norte dos Pirenéus. Os nobres que viveram nesta fortaleza foram grandes benfeitores dos cátaros. A condessa Esclarmonde de Foix (1151-1215), conhecida como Dama Branca, foi uma das mulheres sacerdotisas da seita e protectora da comunidade até às últimas consequências. Chegou a receber o Consolamentum, uma espécie de conjunção de todos os sacramentos que distinguiam os cátaros.

Agora, o castelo é o principal protagonista da localidade. Chega-se à sua porta depois de vencer uma fatigante rampa, abandonando a estrutura urbana junto do rio. No interior, descobrem-se os membros mais ilustres da aristocracia feudal que habitaram aqui na Idade Média. Destaca-se Gastón Febo (1331-1391), conde e poeta que matou o irmão e o filho por intrigas políticas. Seguindo por estradas tranquilas rumo a sudeste, chega-se ao autêntico núcleo do mundo cátaro: Montségur. É uma pequena cidade harmoniosa implantada numa ribanceira.

As casas de pedra parecem soltar o frio, os nevões e o vento das centenas de invernos pirenaicos que acumularam. A povoação esforça-se por manter viva a memória do passado cátaro com um pequeno museu e com a actividade do comércio tradicional. Todavia, os visitantes sabem o que procuram: o castelo, o último foco de resistência daquele movimento face ao exército papista.

É preciso caminhar pelo declive íngreme, atravessando a floresta no sopé da montanha que forma uma invulgar bossa de camelo. O topo está coroado pelos restos da fortaleza onde se desenrolou o dramático acto final dos “bons homens”. Ali foram sitiados, no ano de 1244, os últimos cátaros. O cerco dos papistas foi longo, mas chegou uma altura em que já não era possível resistir mais. Os vencedores propuseram a renúncia pública à fé herética ou a morte na pira. Nenhum dos 205 resistentes duvidou e preferiu caminhar ordeiramente em direcção ao prado por baixo do castelo, a meio caminho da cidade, aceitando a morte na fogueira. Desde então, o lugar é conhecido como Pla dels Cremats (Campo dos Queimados, em occitano). Uma estela lembra esse acontecimento trágico.

O Castelo de Montségur domina um dos locais mais fechados e sombrios dos Pirenéus setentrionais, com as montanhas de Tabe vigiando o Sul e perto das impressionantes Gorges de la Frau, agora transformadas numa atracção turística da região. A fortaleza tem a forma de uma ponta de flecha e, apesar de restar pouco mais do que as paredes exteriores, ainda se respira o drama ali vivido há quase oito séculos.

Hoje, muitos viajantes seguem os passos dos cátaros, não tanto espiritualmente mas em busca da sua história. Montségur é o núcleo de duas grandes rotas que se percorrem a pé. O chamado Camí dels Bons Homes (Caminho dos Bons Homens) que parte da localidade de Berga, atravessa os Pirenéus e termina nos portões do castelo. Para completar este percurso e alcançar o objectivo, são necessários oito a dez dias de caminhada rápida.

A segunda opção, a Rota Cátara, inicia-se em Foix e desenvolve-se no sentido oeste-leste, passando pela maior parte dos castelos em ruínas relacionados, vagamente ou não, com os cátaros até alcançar o Mediterrâneo em Port la Nouvelle. O passeio exige dez a doze dias.

Para os viajantes com mais pressa, a opção é viajar pela estrada D117 e vencer de carro a infinidade de curvas até dos castelos que, num momento ou outro da história do século XII, estiveram relacionados com os cátaros. Um dos monumentos mais icónicos é Peyrepertuse, talvez a fortaleza mais impressionante de toda a rota e que parece organicamente presa à rocha. Também se aconselha uma visita às fortalezas de Roquefixade, Puivert ou Puilaurens, terminando o trajecto na fortaleza de Quéribus, já muito próxima do Mediterrâneo.

A viagem pelo País Cátaro pode terminar com uma visita à Abadia de Saint-Hilaire, com um belo claustro gótico. Nas imediações, está a bonita Limoux, capital do departamento de Aude. A comunidade de monges beneditinos de Saint-Hilaire foi acusada de simpatizar com os hereges cátaros e foi despojada da propriedade do mosteiro. Para os apreciadores de vinhos, pode referir-se que, mais tarde, em 1531, passou a produzir-se aqui aquele que é considerado o primeiro espumante da história, o blanquette de Limoux.

Depois de deixar o convento, assegure-se que o regresso a Carcassonne se faz por sul, onde a vila medieval mostra a sua silhueta mais bonita. Aliás, as torres apontando para o céu sugerem ao viajante que, no seio das suas muralhas frias, receberá um acolhimento quente e fraterno.