Marco simbólico de uma paisagem de rotinas e do sagrado, para as espécies, as sociedades, as comunidades e as gerações que têm habitado a região, não há melhor local para contar a história do rio Tejo.

O rio corre limitado ao longo de um profundo vale, na direcção do Atlântico, mudando de rumo a cada falha tectónica que fragiliza o substrato feito de filitos e metagrauvaques, já de si frágeis à erosão. Vem o rio a acompanhar a crista quartzítica da serra de São Miguel para noroeste quando, atingindo a Charneca de Ródão, faz um apertado cotovelo e corta a montanha aqui multiplicada por duas, numa dobra tectónica sinclinal, em forma de um gigantesco U. É uma incisão a golpe de machado, mais de 250 metros a prumo, 45 metros de largura mínima. Mas como se explica que o Tejo tenha atravessado a montanha, abrindo as imponentes Portas de Ródão, só para continuar o seu rumo ao Atlântico?

Os mistérios do Tejo condensam-se e desvendam-se em Ródão. O rio já foi outro, um rio sem vale, um rio que nem sempre foi suficiente para chegar ao oceano.

Trata-se de um pré-Tejo que, há mais de 4 milhões de anos, se entrelaçava em múltiplos canais numa extensa planície aluvial de mais de 20 quilómetros de largura, que desembocava num delta, um super “Mar da Palha”, espraiando-se por toda a península de Setúbal e mais além.

Não é difícil encontrar por aqui evidências desse rio antes do nosso Tejo: os retalhos planálticos que se estendem de Montalvão a Ponte de Sor, hoje a mais de 300 metros de altitude, têm a sua assinatura sedimentar. A certa altura, em que a litosfera africana se aproxima da Península Ibérica a cerca de 5mm por ano, começaram a definir-se os abatimentos tectónicos da Charneca e de Arneiro, de um e do outro lado da extensa muralha quartzítica, bordejada a norte e a ocidente pela ainda activa Falha do Ponsul.

Nestas depressões, uma escadaria de seis terraços fluviais expressa as vontades paleoclimáticas e tectónicas do rio no último milhão de anos, mas também revela as mais antigas presenças do homem, a chegada precoce dos neandertais e o seu desaparecimento tardio, há pouco mais de 40 mil anos, em plena glaciação, associada à extinção de grandes mamíferos como o elefante, estranhos à paisagem que hoje julgamos imutável.

Portas de Rodão

Há duas formas de atravessar as Portas: de barco pelo rio ou de comboio pela linha da Beira Baixa, em funcionamento desde o século XIX.

O rio é assim um importante arquivo para a história da evolução do homem, de que a Foz do Enxarrique, o terraço de Vilas Ruivas, a mina de ouro romana do Conhal do Arneiro e a Arte Rupestre do Vale do Tejo são exemplos de relevância nacional e internacional.

Mas porquê no Ródão e não em outro sítio? Durante os picos glaciais, quando o nível do Atlântico chegou a atingir mais de 100 metros abaixo do actual, o Tejo naturalmente ia mais longe, constituindo aquilo que é hoje o canhão submarino de Lisboa. Nestas fases, o rio rejuvenescia e aumentava a sua capacidade de aprofundar o vale a montante. No gigantesco obstáculo da serra das Talhadas, feito de duros quartzitos, havia, no entanto, um único ponto de fraqueza: onde as águas se avolumavam na depressão de Ródão, existe uma falha perpendicular aos flancos da dobra quartzítica.

O flanco nordeste, mais delgado, não seria tão difícil de rasgar e a prova é que aqui as “Portas” se escancaram. Já o flanco sudoeste, dobrado e redobrado, seria o derradeiro obstáculo. No entanto, neste flanco, cruzam-se três falhas paralelas e contemporâneas, que delimitam por escarpa a montanha quartzítica. Segue-se a depressão do Arneiro e a grande Falha do Ponsul. No conjunto, a intersecção de tão grande número de importantes falhas, umas há muito inactivas outras reactivadas há pouco, permitiu que o Tejo esculpisse tão triunfal pórtico.

Esta forma de relevo celebra a importância do rio para a diversificação dos ecossistemas ibéricos. É a via, o recurso, o símbolo e espaço sagrado para as comunidades que aqui vivem, sempre com um “coração maior do que as Portas”.

Portas de Rodão