Todos os dias, o Pico parece diferente. Um viajante descreve a sua ascensão nocturna, procurando chegar ao cume antes de o Sol nascer.

Cruzando, na noite silenciosa, a longa estrada longitudinal, a imponente silhueta da montanha do Pico ergue-se perante mim, recortada pela Lua cheia contra um fundo negro, pontilhado por milhões de estrelas brilhantes, na ausência de poluição luminosa. Transposta a maior recta dos Açores (em quase dez quilómetros de linearidade asfaltada), o ziguezague serra acima inicia-se. Os faróis espantam algumas vacas sonolentas que, com evidente enfado, se movem para as bermas verdejantes. Quinze minutos depois, eis-me no ponto de partida. Meia montanha está vencida, faltam perto de 1.200 metros de altitude, desta vez a pé.

Na Casa da Montanha – única porta de entrada oficial para a ascensão ao Pico –, o registo é obrigatório e, com ele, são entregues localizadores GPS que, caso algo corra mal, serão preciosos para as equipas de resgate. Daqui em diante, não se encontrarão outros vestígios da presença humana. A autonomia é obrigatória para o montanhista: água, comida, equipamento técnico, tudo tem de ir connosco.

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Pedro Silva

Venerado e respeitado no passado, o cume do Pico tornou-se uma obsessão para montanhistas, que promovem ascensões ao longo de todo o ano.

O primeiro troço é apenas o aquecimento e um primeiro teste à capacidade física dos pretendentes a conquistadores da montanha. São cerca de 20 minutos a pé até à Furna, um algar que serviu durante anos para a pernoita de quem fazia a subida a partir da costa. Agora, assinala o ponto em que a subida se torna séria. Num marco de madeira, está escrito o número 2, a amarelo. Significa que já só faltam 45!

O caminho torna-se mais íngreme, a rocha ganha vida com formas e cores inacreditáveis, esculpidas por rios de lava que escorreram há milhares de anos desde o topo da montanha. Aqui e ali, as mãos auxiliam a progressão. Paro por instantes e desligo a lanterna frontal, deixando os olhos adaptarem-se à escuridão. Viro-me em direcção a noroeste e vislumbro a Horta, iluminada, na vizinha ilha do Faial. Apesar de ainda faltar uma hora para o nascer do dia, o breu começa a ceder.

Retomo a subida de dentes cerrados. O vento assobia e projecta grossas pingas de chuva fria que mais parecem finas agulhas na pouca pele descoberta que tenho. O objectivo é pisar o marco geodésico mais alto de Portugal antes de o Sol despontar. Apresso-me. Já não falta muito. A pendente diminui, num sinal de que a cratera está perto. E ei-la, semicircular, ampla e imponente, fazendo jus à imagem de marca de qualquer vulcão que se preze!

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Tobias Weber / EYEEM / Getty Images

A paisagem vinhateira do Pico foi distinguida pela UNESCO como Património Mundial.

O marco 47 recebe-me, marcando o início da subida ao Piquinho, a formação geológica mais recente do topo da montanha. Falta pouco para trepar num dos troços mais delicados da montanha e que, por vezes, os viajantes, na ânsia de concretizarem o sonho, danificam. Restam 20 minutos. A luz rosada e difusa espalha-se pelo basalto negro, com pequenas bolsas de nevoeiro dançante, agarrado à encosta. Estugo o passo para não chegar atrasado ao encontro marcado com o astro-rei. De repente, após um apertado corredor quase vertical, uma indescritível panorâmica abre-se perante os montanhistas. De chofre, São Jorge, em toda a sua extensão! À esquerda, a silhueta simétrica da Graciosa, a Terceira mais adiante, o Faial atrás de mim e o Pico sob as botas empoeiradas! São cinco ilhas. É o Grupo Central condensado num olhar de 360º, emoldurado pelo Atlântico infinito! Sei, por experiência própria, que é raro conseguir avistá-las em simultâneo. O esforço compensou. À hora marcada, o Sol desponta no horizonte, inundando a paisagem e o olhar com tonalidades refulgentes, ígneas, como se a própria montanha entrasse de novo em erupção!

montanha do pico

Pela décima segunda vez, contemplo o mundo do ponto mais alto de Portugal. A 2.351 metros de altitude literalmente desde o nível do mar, a meus pés. Apesar de ter estado em picos com quase o triplo da altitude, com desafios físicos e técnicos bem diferentes, há nesta montanha um encantamento único. Como se me empoleirasse nas costas de um gigante adormecido. Sentindo as baforadas de vapor quente e o odor acre, sulfuroso, que sai das suas entranhas, tomo nota do aviso subtil: embora dolente, o Pico é um vulcão geologicamente jovem e, como tal, imprevisível...

Artigo publicado originalmente na Edição Especial Viagensda National Geographic nº 23.

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