Contam as crónicas árabes que foi Ibn Maruán, nos finais do século IX, que terá roubado às águias o cimo de uma crista quartzítica para aí erguer uma fortificação que viria a perpetuar o nome do seu fundador, Marvão. Ibn Maruán foi um eminente líder militar e religioso que se rebelou contra o emir de Córdova e fundou um reino autónomo, com sede em Badajoz, dominando um largo território que se estendia do Douro ao Guadalquivir, incluindo toda a bacia do Tejo.

No extremo noroeste da crista rochosa mais alta a sul do Tejo, Ibn Maruán, por volta de 877, ergueu o seu refúgio. Daqui podia avistar sem ser visto e fê-lo porque algumas centenas de metros abaixo a água abunda e porque nas ruínas da velha cidade romana de Ammaia ainda habitava gente que o podia servir. No prolongamento dos penhascos da serra de São Mamede (serra de Maomé), onde a vista tudo alcança, Ibn Maruán acastelou-se e abriu uma cisterna, segundo as crónicas. Assim nascia a mais alta fortaleza a sul do Tejo.

Se já era amplo o território romano que o velho Município Amaiense dominava, mais amplo foi aquele, que do eixo Badajoz-Marvão, Ibn Maruán passou a tutelar. Na cidade romana de Ammaia, ao tempo já muito arruinada, também Ibn Maruán reergueu muros e instalou gente de armas, como o provam os cachimbos, provavelmente de haxixe, que na torre mais alta da Porta Sul ficaram escondidos. Soube este muladi aproveitar o que até ao século V foi uma rica cidade de veraneio das gentes poderosas que regularmente viviam em Emerita Augusta (Mérida) e que para aqui vinham procurar os ares frescos da região. A Ammaia que Ibn Maruán encontrou já era uma ruína. No pico da serra de São Mamede, terá orado a Alá no interior do templo que aí existiu e do qual hoje só subsistem ténues vestígios e uma lápide marmórea, exposta no Museu Municipal de Marvão.

A velha Ammaia molha os pés no rio Sever que, desafiando as leis da física, corre de sul para norte e contorce-se, cá em baixo, à volta do alcantilado morro de Marvão. Ao longo de milhões de anos, o límpido Sever foi abrindo caminho entre quartzitos, calcários, granitos e, por fim, depois de cavar os xistos, descarrega as águas no Tejo. Nasce mais acima de Marvão, mas em encostas mais suaves, nas faldas da serra de São Mamede. Serve hoje a maior parte do seu curso de fronteira entre Portugal e Espanha, mas nem sempre assim foi. Com a desagregação do Império Romano, assistiu-se à pulverização da Ammaia. Pequenos núcleos urbanos sem sistemas de defesa e, aparentemente, sem organização social, constituíram-se pelas serranias, tendo depois como referência a fortificação fundada por Ibn Maruán, no cimo da defensável crista quartzítica, onde procuravam a segurança necessária em caso de conflito e que deram origem à maioria dos pequenos aglomerados urbanos hoje existentes nesta serra. Marvão passou a ser o principal epicentro de protecção deste território.

Marvão

Entre 1160 e 1166 Marvão terá passado para o controlo de Dom Afonso Henriques. Nada nos informa se esta passagem resultou de um assédio por parte dos cristãos aos fiéis a Alá que viviam no alcandorado morro. Provavelmente os seguidores de Maomé terão abandonado, precipitadamente, a inexpugnável crista quartzítica e, pouco depois, Afonso Henriques entregou estas terras à gestão dos monges-cavaleiros do Templo. Marvão passou a ocupar lugar de relevo na administração militar e política da despovoada região a sul do Tejo. A sua importância resultaria, naturalmente, da posição estratégica no topo de uma inacessível rocha, mas, também, da velha tradição administrativa que entroncava no vasto Município Ammaiense.

Liderando vasto território, o concelho de Marvão foi, mais tarde, declarado por Dom Fernando, em 1378, Couto de homiziados. Terminados, nesta zona, os conflitos da Reconquista, começaram a esboçar-se os contornos de outros municípios e a definir-se as fronteiras entre Castela e Portugal. Em 16 de Fevereiro de 1267, na Convenção de Badajoz, sob pressão das poderosas ordens militares que disputavam o território, promoveram-se encontros entre os “homens bons” das duas terras para a demarcação do limite territorial entre Valência de Alcântara e Marvão.

Esboçou-se, nesta data, a fronteira que hoje conhecemos e que, com o Tratado de Alcanizes, em 1297, definiu quase todo o limite fronteiriço entre os dois reinos. O tratado implicou a perda, de imediato, da parte do território hoje espanhol até aí incorporado no concelho de Marvão, usando o rio Sever como limite geográfico de demarcação.

Embora a divisão política tivesse resultado da vontade das gentes de Valência e Marvão, muito pressionadas pelas ordens religiosas que disputavam os territórios a sul do Tejo, rapidamente ambas as comunidades se aperceberam que desta fronteira resultavam fortes constrangimentos às ancestrais relações de proximidade entre as comunidades de ambas as margens do rio. Assim, dezasseis anos após o Tratado de Alcanices, surgiu a necessidade de reabrir a fronteira que impedia a livre passagem de pessoas e bens como desde tempos imemoriais acontecia. Assinou-se, então, um compromisso entre as gentes de Valência e Marvão, multiplamente ratificado até 1868, que permitia a quase livre circulação entre os dois municípios.

Marvão faz parte da linha de fronteira de Portugal e, como tal, teve papel activo em todos os episódios bélicos em que o país se envolveu com os vizinhos ibéricos. A velha estrutura militar que Ibn Maruán ergueu reforçou-se com Dom Dinis e abraçou o casario que, entretanto, se estendia além do vetusto albacar. Encima a crista quartzítica o castelo medieval no qual se destaca a maciça Torre de Menagem e a Porta da Traição por onde se acede discretamente por um longo e estreito corredor, aberto a picão, na rocha viva.

A pequena, mas providente, cisterna que Ibn Maruán mandou abrir, tornava-se insuficiente com o aumento da população, mas, sobretudo, com a nova função militar de Marvão. Nova cisterna se construiu para suportar cercos por mais de seis meses. Antevendo peripécias fronteiriças, Dom Manuel mandou mais tarde reabilitar os muros e reforçar a defesa de uma povoação estratégica para a integridade nacional. Conferiu-lhe novo foral, novos Paços do Concelho com relógio, cadeia e pelourinho na praça pública.

Os ventos de guerra de 1640 obrigaram Marvão a desempenhar um papel mais activo. Construíram-se novas estruturas militares que reforçaram os poucos troços intransponíveis por natureza. O sistema abaluartado ergueu-se junto das principais portas da vila e novas peças de artilharia, algumas ainda subsistentes, foram implantadas. Fora de muralhas, o convento franciscano de Nossa Senhora da Estrela, perante a forte devoção das populações dos dois lados da fronteira, passou incólume aos diversos assédios que aqui ocorreram. Ultrapassados os tempos de guerra, Marvão perdeu lentamente o seu estatuto militar.

Espreitando por cima das muralhas que, nas esclarecidas palavras de Frei Miguel Viegas Bravo, em 1758, nos dizia que “mais servem para não deixar cair os de dentro do que para impedira entrada aos de fora”, alcançam-se largos horizontes. Para sul, espreita-se o rico vale da Aramenha, que pertenceu a Iria Gonçalves, mãe de Nuno Álvares Pereira, onde as ruínas da velha Ammaia têm assento e avista-se o frondoso “Túnel das Árvores” que ensombra os viajantes para terras de Castelo de Vide. Aproveitando as frescas águas do Sever, onde este se espraia, espanhóis e portugueses continuam a confraternizar junto da ponte quinhentista e torre medieval da Portagem onde se cobravam os “direitos d’el Rei”, especialmente aos milhares de judeus que aqui passaram, em 1492, depois de expulsos pelos Reis Católicos.

Para nascente, na linha que divide os dois países, no Porto Roque, um pequeno abrigo aberto no penhasco do Ninho do Bufo preserva painéis de arte rupestre. No local mais reservado e só espreitado pelo sol no seu ocaso, uma figura esquemática de uma mulher a dar à luz merece destaque. Esta parturiente apresenta claros sinais de contínua e extremosa atenção, bem expressos no desgaste provocado pelo suave toque de mais do que prováveis mãos femininas, implorando ajuda em partos difíceis. Se das muralhas de Marvão espreitar o pôr do Sol, terá ao alcance dos olhos o mundo que, desde a Antiguidade, comove quem cá vem. Para norte, muito antes de a vista esbarrar na serra da Estrela, o nublado vale do Tejo marca a paisagem suave. Antes de lá chegar, junto da ribeira da Beirã, o engenheiro e dramaturgo Dom João da Câmara projectou a última estação ferroviária portuguesa na ligação entre as duas capitais ibéricas e que, anos mais tarde, Jorge Colaço revestiu com fantásticos azulejos.

A linha atravessa por ponte férrea o Sever. Neste local, em Novembro de 1518, por cima de um açude romano muito assoreado, passou Dona Leonor de Áustria, irmã do imperador Carlos V, para desposar, em terceiras núpcias, Dom Manuel I, que a aguardava na vila do Crato. Junto deste caminho, aqui faziam quarentena sanitária, em épocas de pestilência, em rudimentar lazareto, os que vinham de Castela. Conta a lenda que um cavaleiro empestado aqui fez quarentena e fez uma promessa a Santa Maria que, em caso de cura, abandonaria as armas e recolheria a um convento. Como recuperou, terá enterrado a espada de punho cravejado de diamantes e a valiosa armadura no interior da Anta Granja e recolheu ao Mosteiro de Flor da Rosa.

Na Beirã, construiu-se a estação terminal para aproveitar a proximidade com as Termas da Fadagosa. Exploradas pelos romanos, viveram o seu esplendor no início do século XX, passando a usufruir, em edifício próprio, para divertimento dos que procuravam remédio nas águas sulfúricas, de um “casino de roleta” – o primeiro licenciado em Portugal.

Por estas terras graníticas que se envolvem no rio Sever, a norte de Marvão, procuraram os primeiros agricultores e pastores abrigos para estanciar e, desses tempos milenares, chegaram-nos múltiplas antas e menires por eles erguidos.

Para os lados de Espanha, os trilhos do contrabando ainda marcam o território e as memórias. Os percursos entre os Cabeçudos, aldeia formada por choças, que abrigavam os pequenos contrabandistas que, a coberto da noite, carregavam cargas pesadas às costas entre veredas e giestas até à Fontanheira, têm ainda histórias por contar. Pelos trilhos deste contrabando de subsistência, passava-se obrigatoriamente ao lado da aldeia quinhentista de Santo António das Areias, onde no dia de São Marcos (25 de Abril), se um lavrador tiver um touro de promessa e o padre para aí estiver virado, o animal, milagrosamente, entrará na igreja e junto do altar cheirará as flores do andor de São Marcos, à voz uníssona do povo: “Entra Marcos, entra Marcos!”

Hoje, Marvão continua a ser sede de um dos mais pequenos concelhos do País. As estreitas ruas, que se acomodam às curvas de nível, encaminham o visitante ao ponto mais alto do penhasco onde se ergue o castelo. Dois eixos principais encontram-se na praça onde se ergue o pelourinho, em frente dos antigos Paços do Concelho. Aí, o velho tribunal conserva o mobiliário original e a cátedra na qual se sentou o reformador liberal Mouzinho da Silveira que, neste tribunal, iniciou a carreira de magistrado.

Um percurso ao fim do dia pelas ruas de Marvão, despedindo-se do Sol no ponto mais alto do castelo é um espectáculo inolvidável. Lá de cima, onde Ibn Maruán se acastelou, “as aves de mais elevados voos, delle se deixão ver pelas costas”, como dizia o prior de Santa Maria, em 1758.