A vibrante Marraquexe é, e será sempre, “a porta do Atlas”, uma cidade que tem um pé no deserto sem estar submersa no mar de areia. A cordilheira com nome de titã nas proximidades é parcialmente culpada, já que a separa das profundezas do Saara e concede-lhe um clima menos tórrido, onde não faltam os ventos da renovação. O novo aeroporto de Marraquexe, por exemplo, é diáfano, de linhas que recordam o clássico zellige ou mosaico marroquino com o seu jogo de formas e com placas fotovoltaicas inseridas de forma elegante nas clarabóias.
A antiga medina revela paredes bem cuidadas, renovadas, por trás das quais se escondem belos riads ou casas particulares transformadas em hotéis encantadores.
A poucos passos, situa-se um pequeno mercado de fruta e vegetais com o seu habitual bulício, mas, no lugar dos típicos burros, abundam aqui as motocicletas carregadas de forma inverosímil. A matéria-prima é básica num local que se visita guiado pela gastronomia e pela arte. A primeira é protagonista na célebre praça de Djemaa el Fna, com as suas abundantes bancas de frutos secos e fruta fresca, carne assada e pratos de kefta (almôndegas ou espetadas de carne picada). Longe fica o tempo em que este era um lugar poeirento, semelhante à Allée des Méchuis, onde ao meio-dia se alinham cozinheiros de jaqueta e chapéu brancos que vendem borrego assado servido em pão com cominhos e azeitonas.
Além do artesanato, o labirinto dos souks é um mostruário de deliciosos pátios interiores onde cafés literários e restaurantes que combinam o estilo francês com o marroquino repousam do bulício exterior. São espaços que cheiram a rosas, cujas corolas são copiadas nas filigranas de gesso trabalhado ou gebs que decoram os arcos.
Outro exemplo do encontro entre tradição e modernidade é o recente Museu Yves Saint Laurent, estilista que sempre reconheceu a influência das cores de Marrocos no seu trabalho. Muito próximo e ainda no bairro de Gueliz, onde abundam os expatriados e os edifícios de art déco, encontra-se o Jardim Majorelle, que pertenceu ao pintor com o mesmo nome e que Saint Laurent salvou da destruição. Agora, exibe uma interessante exposição sobre a cultura berbere.
Na alvorada, antes de partir da cidade rumo às montanhas, escutará o chamamento à oração do muezim a partir do minarete da Kutubia (século XII) que inspirou a Giralda de Sevilha. É a melhor altura para contemplar o lago dos Jardins de Menara, cercado por palmeiras e olivais. Até Télouet são mais de 130 quilómetros e convém sair cedo para deixar para trás a passagem de montanha de Tizin’Tichka (2.260m).
A rota a percorrer repete os passos das antigas caravanas que atravessavam o deserto, vigiadas pelas massivas cidadelas, ou casbás, de adobe. A primeira surge pouco depois do porto, em Télouet. Trata-se de Dar Glaoui, abandonada em 1956 após a morte do “senhor do Atlas”, Thami El Glaui, o líder de um clã guerreiro de origem berbere, e que foi o último paxá de Marraquexe. El Glaui foi amigo de personalidades como o músico Maurice Ravel ou o actor Charlie Chaplin. Winston Churchill convidou-o pessoalmente para a coroação de Isabel II, mas o paxá conspirou com os franceses para derrubar o sultão Mohamed V, acto que o levou à ruína.
ARTE SUBLIME EM MARRAQUEXE. A medina de Marraquexe guarda vários exemplos da mais bela arqui- tectura magrebina. A Madrassa Ben Youssef (na imagem), de 1565, é o conjunto mais importante. As suas cúpulas de cedro trabalhado, vigas esculpidas, frisos de azulejo, estuques, fontes e treliças criam um bonito espaço para a contemplação. A Mesquita Kutubia foi uma das maiores do mundo islâmico à data da sua conclusão em 1158. O minarete e jardins com laranjeiras e tanques oferecem um remanso de paz ao visitante. Aporta Bab Agnaudasantigasmuralhasconduzaos Túmulos Saadianos, um conjunto de mausoléus do século XVI descobertos em 1917 e que se distribuem em torno de um jardim que recria o Paraíso de Alá.
A uma hora de viagem rumo a sul, encontra-se o ksar (povoação fortificada) de Ait Ben Haddou. Desponta na planície como uma montanha artificial, grandiosa e imune ao passar dos séculos. Classificada como Património Mundial, a sua imagem é bem conhecida: tal como os artistas secundários que acabam por roubar o protagonismo ao actor principal, apareceu em muitos filmes, desde o Gladiador, Príncipe da Pérsia ou O Reino dos Céus, até à série televisiva A Guerra dos Tronos. E ainda é habitado, se bem que cada vez por menos pessoas, já que as suas comodidades são as de outras épocas e os vizinhos preferem viver na nova aldeia implantada do outro lado do rio. Mas nada se pode comparar a um passeio pelo antigo dédalo de becos e ruas cobertas que roubam um pouco de sombra ao sol inclemente.
O cinema continua presente ao entrar em Ouarzazate, a meia hora de carro. Com excepção da alcáçova de Taourirt, a cidade não é a mais interessante de Marrocos, mas a localização converte-a num local de passagem rumo ao deserto do Sul.
Além disso, a presença dos Atlas Studios identificam-na como uma meca cinematográfica de primeira linha. A Múmia, Cercados, Babel e outras tantas produções foram aqui filmadas. Os estúdios ocupam uma extensão de cinco quilómetros, onde o cartão-pedra adapta a área adjacente a qualquer localização desejada, da meseta tibetana ao Antigo Egipto. Esta versatilidade deve-se ao hammada, o deserto pedregoso, de superfície dura e pouca areia que caracteriza a paisagem naquela zona. Na prática, é uma imensa tela onde se pode pintar com imaginação.
Muito diferente é o território que se estende entre Ouarzazate e Zagora. É o vale do Draa, provavelmente o mais belo do país. O rio que lhe dá o nome flui oculto durante boa parte do seu curso até se revelar perto de Agdz, transformando a paisagem. A cidade surge como um reflexo, envolta por um grande palmeiral e extensos campos de cultivo, depois de circular entre desfiladeiros de rocha. As casas de adobe situam-se numa cota mais alta para não desaproveitar um metro de solo fértil. Destas casas entram e saem crianças e adultos carregados com instrumentos agrícolas ou conduzindo o gado até à horta. A vida corre sob a frescura das árvores. A cor da pele dos habitantes de Agdz, mas também da casbá de Timirdate ou da própria Zagora, é sensivelmente mais escura. Muitos são descendentes distantes de escravos sudaneses trazidos pelas caravanas árabes na Idade Média.
O mesmo sonho de palmeiral no deserto repete-se mais a norte, em Skoura. Para aqui chegar, é preciso recuar pelo mesmo caminho até Ouarzazate viajando pela N-10 em direcção a nordeste. Cerca de quarenta quilómetros depois, encontram-se as portas deste oásis onde o sultão almóada Yaqub al-Mansur teve a excelente ideia de mandar plantar setecentas mil palmeiras no século XII, talvez obedecendo a um ditado popular: “Os filhos acabarão por te deixar, mas, quando plantas uma palmeira, esta fica sempre contigo.”
O aroma a damasco, a toranja ou a menta estende-se a seus pés, onde crescem os pomares que aproveitam a sombra, enquanto o som da água a correr pelos canais ou khettaras transmite uma grande sensação de paz. De facto, a vida em Skoura tem muito da calma de outros tempos, quando fumar o narguilé era uma desculpa para conversar com um visitante ocasional.
Aprovisione algumas tâmaras medjool, as mais apreciadas pelo seu tamanho e doçura e inicie a última etapa da viagem. Noentanto, antes, deve visitar a vizinha Ameridil, espectacular pela abundância de torreões. A sua visão tanto evoca a Legião Francesa como as obras de Paul Bowles, o escritor e músico norte-americano que fixou a sua residência em Tânger em 1947 até morrer em 1999.
As casbás (tighremt em berbere, até o termo árabe se ter imposto) são edifícios de planta quadrada com quatro torres nos ângulos que originalmente pertenciam a importantes famílias berberes. As que perduraram têm pouco mais de cem anos e muitas salvaram-se do desaparecimento graças à sua conversão em hotéis. A manutenção de um edifício de adobe requere cuidados periódicos para renovar a fina camada de barro, muito castigada pelo clima saariano.
No caminho que conduz a Merzouga, vêem-se inúmeras casbás e nem todas em bom estado. Algumas dominam as passagens do vale do Dadès. A terra eleva-se em direcção ao céu, dobra-se e desmorona-se pela erosão, desenhando perfis oníricos. Boumalne Dadès, o acesso ao vale, situa-se a 1.600 metros de altitude, onde o Alto Atlas se encontra com os planaltos que obrigam o rio Dadès a descrever uma curva rumo a sul e a converter--se, mais à frente, no Draa que assoma em Agdz.
De Boumalne, a estrada continua a subir e afasta-se da corrente subindo até à passagem de montanha de Mikern. Depois de a ultrapassar, acede-se a um mundo mágico onde a rocha calcária e a de arenito se desgastaram com o tempo, desenhando as formas mais caprichosas. As primeiras que se encontram são “os dedos de macaco” ou “os dedos de Deus”, uma série de estratos que brotam do solo quase na vertical, semelhantes a falanges de mãos gigantes que tentam agarrar as nuvens. De seguida, a estrada continua a elevar-se traçando um ziguezague constante, onde não faltam miradouros.
A paragem seguinte surge depois dos álamos que crescem na margem do rio e junto da casbá de Tighadouine, um circo onde as antigas correntes arredondaram as formas da rocha com a precisão de um ourives. Uma vez ali, é vulgar pensar-se que nada do que se veja a seguir conseguirá superar esta visão, mas as gargantas do Todra rapidamente mostram que se trata de um engano.
A estrada estende-se agora pelo interior de um desfiladeiro de paredes verticais em vez de subir por elas acima, pelo que as altas paredes naturais com mais de trezentos metros de altura impõem a sua poderosa presença e incutem algum respeito ao viajante.
Viagem entre o Atlas e o Saara
1 Marraquexe. Em dois dias, podem descobrir-se os seus principais espaços: a Praça Djemaa el Fna e o souk, a mesquita Kutubia e a madrassa Ben Youssef.
2 Ait Ben Haddou. Este ksar é Património Mundial e cenário de filme.
3 Agdz. Principal cidade do vale do Draa, cercada por palmeiras e solos férteis.
4 Skoura. Neste oásis, encontra-se a bela casbá de Ameridil.
5 Boumalne Dadès. À entrada do vale do Dadès. A 1.600m de altitude.
6 Garganta do Todra. Um espaço encaixado entre paredes com 300 metros.
7 Merzouga. Final da rota, indispensável pela interminável extensão de dunas.
O caminho que a água esculpiu durante milhões de anos alcança apenas dez metros de cota, aumentando a impressão provocada por estas paredes, muito apreciadas pelos escaladores. Quem se lembrar do filme Lawrence da Arábia, de 1962, reconhecerá seguramente o desfiladeiro como um dos cenários decisivos da primeira parte do filme.
A água flui sempre, durante todo o ano, no interior da garganta do Todra. Por isso, surpreende tanto que, viajando cerca de três horas rumo a leste, quase até à fronteira com a Argélia, se imponha por fim o deserto de dunas que todos imaginam. A hammada de pedra desaparece em Merzouga e as grandes ondas de areia ocupam tudo aquilo que a vista alcança. De dia, o movimento do Sol brinca com as dimensões das sombras. No entanto, é em noites de Lua cheia que o Saara atinge o auge da sua capacidade de sedução. É então que se descobre o verdadeiro significado das palavras silêncio e imensidão.