No princípio, era a viagem. O rei sumério Gilgamesh, questionando-se sobre um evento trágico, parte num périplo procurando respostas. No Egipto, toda a mitologia parte de divagações entre um plano e o outro. Também a canónica Odisseia, de Homero, não abdica de um herói que dá umas voltas, encontra gente, cumpre façanhas, torna-se imortal.
Também escritores como Eça de Queiroz – que projectou num alter ego semi-disfarçado um olho de Balzac que tão bem utilizou na sua escrita – usou o hábito de viajar, casando-o com o ideal do homem do século XIX, para analisar os seus personagens.
Em Os Maias (1888), Carlos da Maia ciranda pela Europa e volta um homenzarrão. As fraquezas de Teodorico Raposo acentuam-se ainda mais na sua epopeia rumo à Terra Santa em A Relíquia (1887). Jacinto aborrece-se com a vida urbana e regressa à sua terra natal com o amigo Zé Fernandes em A Cidade e as Serras (1901), uma comparação entre a vida urbana e a existência rural. E não esquecendo, claro, Fradique Mendes, poeta satânico, homem de ciência e muito viajado, criado por Eça, Antero de Quental e Batalha Reis (a trupe do "cenáculo") como o homem ideal, conhecedor de todos os costumes e gentes e que atravessa várias obras do escritor como um guia de viagem.
Eça valoriza o cosmopolitismo, a abertura ao mundo. Em Prosas Bárbaras (1903), por exemplo, compara Lisboa, capital portuguesa, a outras grandes urbes da história, centros civilizacionais que mantiveram contactos constantes e abertos com o mundo: “Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou? O fado”.
O PROVINCIANO FAZ-SE COSMOPOLITA
Crescendo na fechada Póvoa do Varzim e abrindo os seus horizontes quando jovem, enquanto estuda na Universidade de Coimbra e revela o seu talento, Eça era também um viajante. Em 1869, com 23 anos e a convite do conde de Resende, parte para assistir à inauguração do canal de Suez no Egipto. Poucos portugueses tiveram o privilégio de ver inaugurado um dos grandes exemplos de engenharia daquela época e, como tal, foi pedido a Eça que escrevesse alguns apontamentos a publicar no Diário de Notícias.
DOMÍNIO PÚBLICO, VIA WIKIMEDIA
Inauguração do Canal de Suez. Ilustração de Vladimir Vasiliev, século XIX. São Petersburgo: Edição de A.F. Marx. 1901. C. 390.
A colecção de quatro sumarentas crónicas de viagem, chiques a valer, recebeu o nome “De Port Said ao Suez”, uma colecção de “dias confusões e cheios de factos”. A viagem marcou Eça de tal forma que o Egipto surgiria amiúde na sua obras, principalmente o bulício e rebuliço do Cairo, um contraste com as suas origens; e claro, os vícios locais e a brutalidade da exploração colonial que aborda com vagar nas suas Cartas de Inglaterra, por exemplo.
O périplo inspirará também as aventuras de Teodorico na referida A relíquia, pois Eça visitará os mesmos lugares da Terra Santa que mais tarde descreverá nesse livro – os apontamentos dessa visita, aliás, não foram publicados nessas crónicas no Diário de Notícias. O autor revela na sua correspondência a intenção de escrever um livro sobre essa viagem, mas nunca o fez.
UMA MODA DO SÉCULO XIX
O folhetim de viagem era um dos géneros mais populares do fin de siécle. Autores como Mark Twain, Gustave Flaubert e até a famosa enfermeira Florence Nightingale publicaram em jornal ou mesmo em livro notas e impressões de viagem. No caso de Twain, temos um dos mais famosos exemplares, The innocents abroad, a crónica mordaz de uma peregrinação até à Terra Santa que parte de Nova Iorque, onde as ilhas dos Açores não ficam nada bem vistas.
Às vezes, o exótico era uma questão de perspectiva. Um jovem Robert Louis Stevenson, que mais tarde ganharia fama com Dr. Jekyll e Mr. Hyde ou A ilha do tesouro, tem como uma das duas primeiras obras um relato de viagem a pé no interior montanhoso de França. Este escocês, nascido em Edimburgo, fala de actividades pouco abordadas na altura: acampar por diversão, trekking pela montanha ou até dormir em saco-cama, ainda na sua etapa mais rudimentar. Com ele viaja Modestine, um teimoso burro que acaba por se tornar também um picaresco companheiro de bolandas.
Não eram apenas os homens que relatavam as suas viagens. Já mencionámos Florence Nightingale em Inglaterra. Já na Áustria de meados do século XIX, aguardava-se com expectativa os relatos de Ida Laura Pfeiffer, escritora, etnógrafa e uma verdadeira viajante das sete partidas, visitando o Sudeste Asiático, o Médio Oriente, África ou as Américas. Uma mulher tão viajada e conhecedora das culturas estrangeiras que foi aceite nas Academias de Geografia de Berlim e Paris… mas não Londres, que recusava a entrada a mulheres. Também como naturalista, Pfeiffer inspirou homens como Charles Darwin e Alfred Wallace, talvez os dois mais importantes naturalistas do seu tempo.
A febre e a ubiquidade do livro de viagem era tão grande que inevitavelmente veio a gerar paródias. A mais famosa é Three men and a boat, de Jerome K. Jerome, descrição agridoce do empreendimento arriscado que três aventureiros urbanos de Londres decidem fazer num impulso: descer o Tamisa. Apostado mais em descrever os tiques eternos do viajante e do aprendiz de viajante e também uma certa falsidade na pose do aventureiro, mantém-se completamente actual.
Voltando a Eça e ao Egipto
Na sua viagem, naquela que tanto o formará, Eça sai de Lisboa e chega ao Cairo depois de paragens em Cádis, Gibraltar e Malta. Na capital egípcia, deixa-se deslumbrar. Encontramos esses fascínios em O Egipto: notas de viagem, uma edição póstuma compilada pelo filho. Se bem que a obra teve várias interferências do Queiroz mais novo (que orientou pelo seu critério a compilação das notas do pai), podemos retirar uma imagem interessante deste jovem que se tornaria uma referência das letras portuguesas.
Eça, à tradição da altura na literatura de viagem, preparou-se convenientemente, lendo não apenas vários outros relatos contemporâneos, mas também as descrições de autores antigos como Plutarco ou Estrabão. Ora, com toda a imagem construída previamente, o primeiro encontro com o Egipto foi desapontante. A ideia de uma metrópole organizada e imponente é sobreposta pela confusão dos habitantes do Cairo, a sua astúcia mercantil, o lixo das ruas e também a sobranceria dos europeus na cidade, tratando os egípcios como criaturas subalternas e menores.
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Vista actual da Mesquita do Sultão Hassan e das pirâmides de Gizé, no Cairo.
Já em Alexandria, onde apanhara o comboio para o Cairo, desejando encontrar as lendas de Alexandre, o Grande, deparara-se apenas com monumentos em ruína. A partir do Cairo, faz o percurso habitual do turista cosmopolita europeu que ainda hoje se mantém quase inalterado: as Pirâmides de Gize, Sakara, Mênfis ou um cruzeiro no Nilo eram obrigatórios.
Ao contrário de outros escritores como Flaubert, Eça não vai ao Alto Egipto. Mantém-se pelo Cairo e nos seus apontamentos, descreve a capital egípcia em linhas mais positivas: a cor e a sensualidade das ruas; a genuinidade e exotismo das gentes e das tradições; personalidades entre encantadores de serpentes, dervixes, dançarinas, que saltam aos olhos de Eça como se fossem bonecos da literatura muçulmana. A partir do Egipto, ensaia o talento e minúcia descritivas que o tornariam conhecido. Eça aproveita também para romancear episódios reais que viveu, colocando como diálogos e conversas com personagens que certamente terá retirado de encontros que teve com engenheiros e europeus que lhe falaram sobre o Egipto.
ESPÍRITO DE VIAJANTE: DE NEWCASTLE A HAVANA
Cartas de Inglaterra é uma compilação de correspondência que Queiroz manteve a partir de Newcastle, quando já se encontrava em serviço consular e abraçara um dos seus gostos maiores, a carreira diplomática. Este serviço levá-lo-ia também a Havana e notamos, só pelos temas das cartas, um outro Eça, mais vivo, mais acutilante, mais curtido pela vida e pelas viagens. Eça nota o crescimento do anti-semitismo na Alemanha de 1880, e revela uma relação quase erótica com a literatura e as ligações entre Portugal e Brasil.
É, porém, para o Império Britânico que guarda as suas estocadas maiores e, entre comentários à relação com a Irlanda e com o Afeganistão, aborda a destruição de Alexandria pela frota britânica no Mediterrâneo em 1882. Aquele jovem impressionável de 1869 viu mais mundo e reconhece imediatamente uma agressão forçada e injusta. Elogia o líder local, um revoltoso chamado Arabi Paxá que exigia um Egipto nas mãos dos egípcios contra o imperialismo europeu e pergunta-se se é verdadeiramente civilizado o império que trata assim a herdeira dos faraós da Antiguidade.
DOMÍNIO PÚBLICO
Ilustração dos primeiros navios a atravessar o canal do Suez, entre Kantara e El-Fedane. Digitalização a partir de uma gravura no Appleton's Journal of Popular Literature, Science, and Art, 1869.