Está no coração do Parque Nacional dos Lagos de Killarney (Chill Airne em irlandês), no Sudoeste da Irlanda. Aqui, crescem quinhentas espécies de musgos, conserva-se a floresta de teixos mais extensa da Europa, pastam as últimas manadas de veados-comuns selvagens do país… O destino imediato é a bela cascata de Torc (Easach Toirc). Quando a floresta se adensa, não é difícil admitir que seria plausível tropeçar num báculo esquecido por um druida em plena recolha de visco. Quando a ramagem fica mais esparsa, o azul radioso dos lagos Leane (Loch Léin) e Muckross irrompe pelo verde numa explosão de cor.
O mergulho nas águas intemporais de Torc é sempre aconselhável. Segue-se a visita a Muckross House, uma ostensiva mansão vitoriana com mais de noventa quartos, que antecede o Castelo de Ross, fortaleza medieval que foi o lar do clã O’Donoghue. Do seu cais, zarpa o navio que transporta os turistas para a ilha de Innesfallen e para as ruínas de uma antiga abadia. Não necessitará de binóculo para ver cisnes, garças ou patos, tal a sua abundância. Em contrapartida, as águias-reais, recentemente reintroduzidas, são difíceis de avistar. A oeste sobressai o monte Carrantuohill, cujos 1.038 metros de altitude o tornam muito respeitável na quase plana Irlanda.
O Parque Nacional dos Lagos de Killarney tem vários trilhos marcados, com diferentes dimensões e níveis de dificuldade.
Deixando para trás Tralee (Trá Lí), entra-se na península de Dingle (Corca Dhuibhne), o dente superior de um tridente que inclui igualmente as penínsulas de Iveragh (Uíbh Ráthach) e Beara (Béarra). A opção, a partir daí, é a progressão pelo fluxo da Slea Head Drive, uma tortuosa estrada panorâmica.
A rota dirige-se a Connor Pass, a passagem de montanha mais alta do país, mas com apenas 456 metros de altitude. Ninguém o diria pela sua beleza desoladora, quase lunar: ali crescem árvores ou arbustos, apenas ervas rasteiras e ressequidas e endurecidas almofadas de musgo. O motivo para esta desolação botânica não é a seca ambiental, dado que, nesta área da Irlanda, 75% dos dias são chuvosos. A severidade vegetal deve-se ao vento inclemente, ao frio e ao solo pouco nutritivo. Na colina, um miradouro oferece perspectivas do vizinho monte Brnadon (Cnoc Bréanainn; 952 metros), de vários lagos e, ao longe, do oceano Atlântico.
Passada a primeira abastança paisagística, começa-se a descida até Dingle (Daingean Uí Chúis) e ao popular Fungie. Com menos de dois mil habitantes, Dingle é um núcleo urbano muito aprazível, caracterizado pelas pequenas casas baixas, pintadas com diferentes cores, e pela sua atmosfera pitoresca. O posto de turismo está no porto. O leque de escolhas é abundante: caminhadas pelas montanhas; visitas a igrejas medievais ou sítios arqueológicos pré-históricos; passeios a cavalo pela praia; travessias de barco pela baía.
Nestas águas, reside Fungie, o golfinho que está há mais de trinta anos instalado em Dingle.
É o residente mais famoso da vila, tem inclusive a sua própria conta de Twitter: @fungiedingle. Os locais sentem-se tão seguros da sua sociabilidade que devolvem o dinheiro da travessia se Fungie não vier saudar os barqueiros.
Depois de visitar o atraente aquário natural de Dingle, recomeça-se o percurso, agora para oeste. Quando o relevo do terreno o permite, a Slea Head Drive exibe praias desertas, areais nebulosos que convidam a tudo menos a um banho. Outros caminhos elevam-se sobre penhascos abruptos, precipícios que nos põem os cabelos em pé. Por vezes, cruzam pradarias sarapintadas de ovelhas que pastam entre ruínas de abadias ou castelos, ou perto de cemitérios com cruzes célticas que olham para o mar. Os visitantes sentem-se como se estivessem numa sucursal do paraíso, uma espécie de arcádia bucólica e feliz. Já os nativos têm uma visão menos idealizada.
Pode comprová-lo no povoado de Dunquin (Dún Chaoin), de cujo diminuto porto zarpam os barcos até às ilhas Blasket (Na Blaskaoda). Antes de embarcar, entre no centro de visitantes dedicado a este arquipélago. A costa de Dingle está rodeada por ilhas desabitadas à força. O governo obrigou os ilhéus a abandonar os seus lares e as suas terras em 1953 e a realojarem-se na ilha principal. Aconteceu o mesmo noutros locais.
Eremitas num mar tormentoso. O cristianismo chegou à Irlanda no século V, quando a expansão dos bárbaros perseguia essa fé no continente europeu. São Patrício terá trazido para aqui a mensagem cristã, conseguindo adaptá-la às crenças da população local. Os ilhéus elaboraram uma versão livre daquele credo, adaptando-o às suas tradições e necessidades. E fizeram-no de forma tranquila, pacífica e sem derramamento de sangue: não houve mártires irlandeses. Durante a alta Idade Média, enquanto as bibliotecas ardiam ou eram saqueadas na Europa e o saber de Platão ou de Santo Agostinho se perdia no continente, a Irlanda encheu-se de mosteiros, cujos monges queimavam… as pestanas a copiar livros sagrados, clássicos das tradições grega, romana e hebraica, e também os mitos da cultura irlandesa. Não parece ter havido censura até à tradição pré-cristã. Graças a esta tolerância, o espólio chegou aos nossos dias. Por inverosímil que pareça, a ilha de Skellig Michael ou Great Skellig (Sceilig Mhór) teve um desses cenóbios. Actualmente, não é imaginável que semelhante penhasco, sem um palmo plano, tivesse um dia abrigado alguém. Porém, quando o barco se aproxima, distinguem-se várias minúsculas construções de pedra com aspecto de colmeia: são as celas dos monges.
A Irlanda não podia proporcionar serviços sanitários ou educativos a comunidades tão afastadas, nem ajudar no seu resgate de cada vez que uma tempestade oceânica os deixava incomunicáveis. Hoje, restam as suas casas vazias, esqueletos descarnados e tristonhos de gerações esquecidas.
A fauna continua a ocupar estes mares frios independentemente dos decretos governamentais: avistam-se aqui tubarões, falcões peregrinos, baleias-anãs… e, ocasionalmente, algumas orcas.
Depois de completar os 48 quilómetros da Slea Head Drive, deixa-se para trás a península de Dingle e começa-se o percurso pela de Iveragh com um apontamento de outra célebre rota panorâmica: o Anel de Kerry.
O viajante deve sempre levar mapas bilingues, com os topónimos em inglês e irlandês. Mal se atravessa o território gaeltacht (a língua falada pela maioria irlandesa), muitos dos sinais figuram somente na língua local. O Oeste irlandês rochoso e ermo, atraiu pouco os ocupantes britânicos, que abandonaram estas regiões à sua sorte. Graças a este desamparo, a assimilação foi muito menor do que noutras zonas. Após a independência da Irlanda, existiram várias tentativas políticas de recuperação cultural, enfatizando a necessidade de preservar estes territórios onde a identidade e as tradições permaneciam menos alteradas. O seu sucesso foi evidente.
Hoje, o ensino da língua irlandesa é obrigatório nas escolas, embora os frutos do esforço tardem em amadurecer: 40% da população adulta do país afirma ter «conhecimentos de irlandês», mas são menos de 2% os que a falam diariamente. Ainda há muito por fazer se o objectivo for a promoção da língua local no mesmo nível de igualdade do inglês.
A paisagem norte de Iveragh denuncia o seu parentesco com Dingle. Aqui também existem montanhas a um palmo de distância do oceano e as suas vertentes tombam sobre o mar e formam escarpas vertiginosas. Ocasionalmente interrompidas por praias selvagens e inóspitas, são pouco impressionantes se comparadas com as suas congéneres continentais.
Com os sapatos na mão e protegido por sete camisolas, dê um passeio pela praia de Rossbeigh (Ros Beith). Procure as conchas que a maré depositou na margem.
O oceano atira todo o tipo de detritos para estas praias, dando-lhes um ar de vestígios de naufrágio. Não seria de estranhar se encontrasse um dobrão espanhol, engolido há mais de quatro séculos, quando o Atlântico ceifou a Armada Invencível em frente desta costa.
Prossiga a rota até aos portos de Portmagee ou Ballinskelligs, de onde saem os barcos que vão para as ilhas Skellig. Mais à frente, a sul de Iveragh, a paisagem suaviza-se paulatinamente. Perde parte da sua grandiosidade, mas ganha em harmonia, em ordem; a sua beleza é menos dramática. Comprove-o em Sneem, um povoado onde pode aproveitar para descansar.
No pub O’Shea, um acolhedor local com mobiliário de madeira, como tantos outros estabelecimentos na ilha, o ambiente é familiar. É habitual que grupos musicais interpretem aqui canções desconhecidas, compostas na ilha. Os paroquianos aplaudem-nos, e os refrãos crescem de intensidade. Junte-se à folia com uma cerveja na mão. Na Irlanda, a música é uma disciplina comum nas escolas, desde o infantário ao final do ensino secundário. Como resultado, o repertório local é inesgotável, em todos os géneros, como pode comprovar em bares e nas ruas, transformadas em palcos improvisados de concertos de jovens com muito talento, ávidos de se darem a conhecer.
Beara é a mais pequena e menos conhecida das três penínsulas, mas não a menos bela. A melhor maneira de a descobrir é a pé, através da Beara Way, um caminho de 206 quilómetros que une os principais centros de interesse da região. Uma alternativa mais modesta é o Allihies Copper Mine Trail.
A indústria mineira proporcionou uma inusitada prosperidade nesta região entre 1812 e 1884, ano em que a actividade foi abandonada definitivamente. Na sua época de esplendor, o sector ocupou mil e seiscentos trabalhadores. Pela primeira vez na história, essas famílias não dependiam dos campos de pedras nem das colheitas vulneráveis. Assim esquivaram-se à Grande Fome que grassou na Irlanda entre 1845 e 1849. O didáctico museu local, cujas instalações se espalham por meia dezena de minas, é um repositório fiel deste período trágico.
A exploração de Beara termina em Glengarrif (Gleann Garbh). O próximo e derradeiro objectivo é uma ilhota vizinha: Garnish (Garininis). Num delicioso jardim ornamental, que acolhe centenas de espécies, a maioria das quais invulgares nestas latitudes tão setentrionais, há mais uma lição para aprender. Nem tudo é o que parece. As camélias, as azáleas, as fúcsias ou os rododendros existem e prosperam aqui por culpa da corrente do golfo, que tempera o clima local de uma forma muito amena. Não é uma opinião exclusiva: é partilhada pelas numerosas focas que dormem ao sol sobre as rochas da baía de Bantry (Cuan Baoi). A sua felicidade é contagiante.
Paisagens para caminhar
A costa sudoeste da Irlanda é um território excepcional para caminhadas. A página www.irishtrails.ie propõe mais de cinquenta trilhos nesta região, com durações que vão de apenas uma hora a vários dias. Os trajectos mais extensos e notáveis estão assinalados e contornam as penínsulas de Dingle (179 km, 8 dias), Kerry (214km, 9 dias) e Beara (206 km, 9 dias). Devem começar e acabar, respectivamente, em Tralee, Killarney e Glengarrif, para que se possam aproveitar as comunicações e serviços destas três localidades. Por norma, todos oferecem espectaculares paisagens marítimas, atravessam florestas, colinas e charnecas e percorrem caminhos rurais ou estradas tranquilas.
Dos três caminhos, o da península de Beara é talvez o mais bravio e inclui ramificações para as ilhas de Bere e Dursey. Foi restaurado por centenas de voluntários há algumas décadas, depois de o declínio da indústria pesqueira ter motivado a procura de outras alternativas económicas para a zona, neste caso o turismo sustentável. Caminhar pela Irlanda não requer uma forma física especial, dado que os desníveis são moderados e a temperatura é suave, mas é preciso calçado e roupa à prova de água, dado que a chuva pode ser persistente e repentina.
Regresso à ilha de Dursey
Acede-se a esta pequena ilha através de um teleférico único no seu género, que evita as águas do estreito e que também transporta ovelhas. O caminho circular de Dursey (9km) passa pelas ruínas de uma igreja fundada pelos monges de Skellig Michael, uma torre de sinais da era napoleónica e um castelo. Passeia-se na companhia de aves.
A ilha tem menos de dez habitantes. Só tem de ter em mente o horário de regresso do teleférico.
Pico Carrantuohill
O cume mais alto da Irlanda tem apenas 1.039m, mas aparenta mais e não é aconselhável subi-lo sozinho ou com mau tempo. O caminho parte de Cronins Yard e sobe 900 metros em seis quilómetros. O trilho liga os lagos Calee e Gouragh. A partir daí, sobe em linha recta através da Escada do Diabo. Dada a abundância de rochas soltas, de vez em quando precisará da ajuda das mãos. Regressa-se pelo mesmo trilho (4-5 horas no total), embora seja possível contorná-lo, subindo aos dois cumes contíguos.
Pela Península de Dingle
O caminho que circunda a península de Dingle oferece grande variedade paisagística, pois combina praias e escarpas com sítios arqueológicos e escalas de montanha. Uma etapa singular liga Dunquin a Feohanagh (22km), em parte por estradas rurais aprazíveis (boreens) entre muros de pedra. Depois de vencer várias escarpas, o caminho afunila para Smerwick e Ballyferriter e passa por uma praia. Nas imediações, encontra-se o oratório de Gallarus, a igreja paleocristã mais bem conservada da Irlanda.
Escarpas de Moher
Estas escarpas são a atracção natural mais visitada na Irlanda. Geologicamente, são muito parecidas com as ilhas de Arán. Organizam-se excursões desde Ennis, Limerick ou inclusivamente de Dublin, mas para desfrutar a sua beleza com tranquilidade, nada como percorrê-las a pé. O caminho das escarpas (18km) percorre a distância entre o Moher Sports Field e Doolin. São necessárias quase cinco horas para o completar. Não é autorizado caminhar com cães, dado que, neste território, nidificam quase 30 mil aves marinhas.