Não consigo explicar as minhas escolhas de viagem. No dia em que apresentar a mim mesmo argumentos racionais talvez deixe de viajar porque acabou o mistério. Bem sei que a razão e a ponderação são celebradas com purpurina e carpete vermelha, mas prefiro o toque do inexplicável e necessito do indizível. "Cada viagem, uma asneira" é o lema que carrego debruado a ouro no peito.
Quando a National Geographic me pediu que escrevesse sobre a preparação da minha próxima viagem, vi neste artigo uma oportunidade de confortar os meus camaradas menos corajosos e menos desenvoltos para a arte da deambulação: está tudo bem. Este que vos escreve já andou pelas várias partidas do mundo – no Quirguistão e no Peru, na China e nas Faroe, na Geórgia e até em Picha e Pedrógão Grande – e regressou inteiro.
Sou professor, de História, e sou doente oncológico. Revelo-o para contextualizar. É importante por dois motivos. Um é ter de calcular muito bem o desgaste de umas férias. Outro porque aguça a vontade de ir conhecer coisas. Aliás, comecei nisto de viajar precisamente porque o meu pai faleceu de cancro. Adiou durante anos a fio viagens e projectos de ir a sítios na confiança de que um dia chegaria a reforma e aí, sim, poderia tratar de tudo. Depois chegou aos 57 e morreu. Quando as ambições do meu pai foram dissolvidas num repente, decidi viajar.
A ESCOLHA DE UMA GALIZA IMAGINADA
Pensará "vai uns dias a Santiago, se calhar passa na Corunha, põe-se ali na Torre de Hércules para a selfie, pára em alguma praia ali das Rias Baixas e pronto. Está a Galiza feita". Esclareço que o meu percurso não é bem o mais óbvio. Nunca é. Gosto de ziguezaguear.
Prevejo demorar-me mais nas províncias de Ourense e Lugo, ambas do lado leste galego. Na Ourense mais rural, mais montanhosa, mais genuína, nas tradições aldeãs da cultura galega; em Lugo, com a cara lavada todos os dias com água do mar, próximo da Costa da Morte e embalado em melodias lúgubres e alegres dias e noites num luar celtibero.
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Um dos locais que Bruno Fernandes pretende alcançar na província de Ourense.
"Cada viagem, uma asneira" é o lema que carrego debruado a ouro no peito.
A GALIZA JÁ CONHECIDA
A Galiza entrou no meu radar nos escuteiros – fiz o Caminho de Santiago de Compostela do Litoral em 2001. Foi uma experiência marcante, principalmente por ter chegado numa altura de transição – o equador dos dezoito anos é sempre turbulento – e me ter permitido conhecer algum território galego da melhor maneira: a caminhar. Lembro-me ainda hoje de Tui, Pontevedra, Caldas del Rey, O Porriño e Santiago, claro, mas acima de tudo um certo misticismo que me atrai em lugares, uma energia que não se define, mas quase nos veste.
Marquei a Galiza para um dia explorar como deve ser, mas foi-se adiando. Ao longo dos anos, fui reforçando a ideia, lendo artigos e obras sobre mitologia galega, geografia da região, costumes e tradições. Há qualquer coisa no norte de Espanha, da Galiza ao País Basco, que sempre me atraiu. Não consigo dizer um motivo concreto, porque não existe. É algo, talvez um fascínio pelas lendas celtas, pelo mar revolto mas em tons de múltiplos azuis, pelas criaturas sobrenaturais, o verde constante, a morrinha do nevoeiro, a chuva permanente e espontânea que transformam a Galiza numa armadilha divertida.
Além da sua história separada, mas unida à de Portugal, a Galiza é uma terra de identidade e língua próprias, com quatro províncias – A Coruña, Pontevedra, Ourense e Lugo – e uma multitude de arquipélagos que se perdem no bolso do oceano ocasionalmente. Foi ocupada desde as origens do Homem, importante parte do Império Romano e do reino visigótico e andou nas nossas turras de independência no século XII. Hoje em dia, a sua identidade é vincada e assente no facto de mais de metade da população ainda usar o galego como língua primária de conversação.
A Televisión de Galícia, ou "A Galega", tem um encantador programa sobre organizações de festa de aldeia.
A Galiza tem, além disso, um dos mais patuscos canais televisivos regionais que podem encontrar, com novelas involuntariamente divertidas, concursos mal geridos, mas um encantador programa sobre organizações de festa de aldeia chamado “Comisión de festas” que é de uma delícia comparável a um prato de marisco comido nas Rias Baixas.
O QUE LEVAR, além das EXPECTATIVAS?
Como preparar uma viagem? Antes de mais, parafraseando a máxima socrática do templo apolíneo de Delfos "Conhece a tua Galiza". E antes de começar qualquer viagem, esse é sempre o meu instinto: "Ok, já sei que existem A e B; mas… onde está o resto do abecedário?" Começa aí então a diversão da descoberta. No fundo, é como me ensinaram na universidade: os melhores trabalhos são aqueles que apresentam a mais extensa bibliografia.
Antes, nos tempos A.I. (antes da Internet), esta etapa preenchia-se com livros, brochuras e até ocasionais documentários com os quais nos cruzávamos em quatro canais de televisão. Hoje, nos tempos A.I. (sigla de Inteligência Artificial no original), há toda uma panóplia de redes sociais e ferramentas digitais que permitem preencher folhas com locais a visitar. Só com uma horinha de buscas, tenho aqui quatro páginas de pontos geográficos nas quatro províncias galegas.
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Dentro das expectativas e dos planos, está a visita a esta torre de menagem localizada a cerca de 60 quilómetros de Lugo.
Não querendo revelar já o roteiro, noto que se encontra de tudo na Galiza: percursos pedestres, cascatas frondosas (no Verão, talvez menos), igrejas antigas, mosteiros abandonados, aldeias típicas, praias mais ou menos isoladas, tradições para verificar e descobrir.
Neste novelo das páginas sobre locais, descubro gente mais interessada em fazer de nós número para angariar publicidade do que exactamente informar-nos. Dos anos de geocaching, aprendi que não há quem nos revele um local como aqueles que nele habitam. No caso desta viagem, centrei-me numa página de Instagram chamada “Lugares secretos de Galicia”.
Noto que se encontra de tudo na Galiza: percursos pedestres, cascatas frondosas, igrejas antigas, mosteiros abandonados, aldeias típicas, praias mais ou menos isoladas, tradições para verificar e descobrir.
Não sou totalmente inexperiente em território galego. Nos últimos anos, já estive na Corunha e em Vigo, e algures nas brumas do meu passado fiz o Caminho de Santiago português litoral. No entanto, e como alguém que já ouviu muitas vezes a observação “Caramba, que giro! Mas a que país foste desta vez?” perante fotos que tirei… em território português, sei que os locais óbvios são uma superfície que não deve apenas ser arranhada: devemos rebentá-la e encontrar de facto o que está fora do circuito.
Bruno Fernandes
Património Mundial da UNESCO, a Torre de Hércules pode ser visitada na Corunha. Bruno Fernandes trouxe esta fotografia de uma viagem anterior à Galiza.
Olhando para o orçamento e tempo de férias ainda disponível, criei um roteiro com tudo um pouco. Que me obrigará a cansar e também a relaxar e, importante também, a dar trabalho à minha máquina fotográfica.
Vou com pouca bagagem de roupa e essenciais pessoais: medicação, câmara, um livro para ir lendo quando houver oportunidade (ainda não escolhi, mas está ali o “The Earth Transformed”, do historiador Peter Frankopan, a olhar-me há demasiado tempo), um bloco de notas (onde gosto de apontar momentos, sensações, pessoas e lugares para mais tarde escrever sobre eles); e claro, sapatilhas confortáveis, essenciais para cirandar sem grandes preocupações e apenas guiado por aquilo que quero e me apetece na hora.
Os locais óbvios são uma superfície que não deve apenas ser arranhada: devemos rebentá-la e encontrar de facto o que está fora do circuito.
O melhor de viajar, o melhor de ir de férias. Uma liberdade que espero encontrar na Galiza dos mares, na Galiza das cores, com mais galegos de origem do que de preconceito nacional. Até já.