Milhares de anos antes de as barragens do Nilo terem afastado os crocodilos, o oásis de Fayoum era o centro de culto do antigo deus crocodilo egípcio Sobek. Num mapa do Egipto, a região com 6.000 quilómetros quadrados assemelha-se a uma grande folha emergindo das margens luxuriantes do curso superior do Nilo. Actualmente, proporciona uma escapadela verde e pacífica aos engarrafamentos e arranha-céus poeirentos do Cairo, situado a norte a uma hora de carro.

Mantido verdejante pelo lago Qarun, Fayoum parece remontar a outra época. Em campos prósperos pastam búfalos de água e nidificam garças. Nas suas pequenas aldeias, os habitantes deslocam-se em carroças puxadas por burros, em tuk-tuks ou a cavalo.

Os visitantes, porém, são surpreendidos com sítios arqueológicos, uma animada indústria de cerâmica contemporânea e vastas planícies desérticas, incluindo Wadi Al-Hitan, um vale repleto de fósseis de baleias ancestrais.

baleias fósseis

Um turista visita Wadi Al-Hitan, o Vale das Baleias, no deserto de Fayoum. O local Património Mundial UNESCO contém fósseis de baleias Archaeoceti extintas. Fotografia de Sui Xiankai, Xinhua/Redux.

À medida que o Egipto se prepara para receber uma nova vaga de visitantes, com a abertura iminente do Grande Museu Egípcio, no Cairo, este segredo bem guardado está pronto para ser descoberto.

Maravilhas ancestrais pouco conhecidas

“As pessoas que gostam de arqueologia vêm até aqui, mas estamos fora das rotas populares”, diz o egiptólogo, guia de viagens e blogger Mahmoud Kamel enquanto nos aventuramos nas ruínas de um templo em Karanis, um povoado da época greco-romana situado na entrada do oásis. Contratei-o por um dia para mostrar-me algumas das dezenas de sítios antigos existentes na região. Egípcios, gregos, romanos e cristãos coptas deixaram a sua marca em Fayoum, construindo templos, túmulos e mosteiros.

No tempo dos faraós, Fayoum era um centro de caça e plantação de papiro. Reis e rainhas passavam férias no lago Qarun, chegando até ali em embarcações que navegavam pelos canais ligados ao Nilo. Os conquistadores romanos fundaram povoados na região a partir de 27 a.C., até os muçulmanos conquistarem o poder no século VII d.C. Sob o califado, o oásis regressou à economia agrária.

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Pescadores e os seus barcos junto à margem do lago Qarun. Fotografia de Fatma Fahmy, Reuters/Redux.

No meio das areias em permanente movimento de Karanis, Kamel mostra-me uma porta em pedra encimada por uma dedicatória com 2000 anos do imperador romano Nero a Sobek. No interior, existe um altar com nichos laterais que outrora acolheram crocodilos mumificados deitados em trenós. No século I d.C., as pessoas faziam oferendas de vinho ou carne às criaturas veneradas e faziam desfilar as suas múmias pela cidade durante as festividades.

Para além de algumas partes do templo, pouco resta da aldeia de tijolos de adobe de Karanis que aqui prosperou entre o século III a.C. e o século V d.C. Na década de 1920, os edifícios com 5.000 anos foram desmontados e triturados, sendo transformados em adubo por uma empresa italiana.

Outros sítios em Fayoum estão mais bem preservados, como as ruínas de Medinet Madi, do século II a.C., na zona sudoeste do oásis. “Este sítio é apelidado Luxor de Fayoum”, diz Kamel, aludindo à cidade do Alto Egipto que contém muitos dos sítios mais espectaculares do Antigo Egipto.

Em Medinet Madi, uma colunata debruada por leões e esfinges atravessa o deserto até ao único templo remanescente, construído pelos faraós Amenemhat III e Amenemhat IV no tempo do Império Médio (2040 a 1782 a.C.). Embora desgastados pelo Sol e pela passagem do tempo, hieróglifos belissimamente gravados cobrem as suas portas e paredes, louvando Sobek e Renenutet, a deusa das colheitas com cabeça de serpente.

Pinturas de múmias desaparecidas

Kamel está perfeitamente ciente daquilo que a região perdeu devido à passagem do tempo, à natureza e aos caçadores de tesouros.

A perda das famosas pinturas das múmias é particularmente dramática. Estes retratos realistas eram pintados em tábuas e fixados no rosto de múmias de indivíduos da classe alta no Egipto Romano entre os séculos I e III d.C.

múmias

Centenas de máscaras de múmia greco-romanas, como este retrato de uma mulher, foram descobertas em Fayoum em finais do século XIX e início do século XX. Fotografia de Sepia Times, Universal Images Group/Getty Images.

Cerca de 700 destas pinturas incrivelmente realistas foram descobertas em Fayoum e nos seus arredores a partir de finais do século XIX. No entanto, quase todas foram contrabandeadas, vendidas ou transaccionadas para fora do país. Actualmente apenas dois dos retratos permanecem em Fayoum, ambos no poeirento museu de duas salas de Kom Ushim, em Karanis.

“O Museu Metropolitano de Arte tem tantos destes [retratos]”, diz Kamel, mostrando-me uma múmia numa vitrina de vidro. É pequena e está embrulhada em faixas que ficaram

castanhas e endureceram ao longo dos anos, num contraste dramático com o retrato delicadamente pintado que se encontra sobre o seu rosto. Representa um homem jovem, com olhos grandes e cabelo negro encaracolado. Comparadas com máscaras de múmias mais recentes, com os seus olhos delineados e capacetes azuis e dourados, estas representações parecem mais assustadoras e vívidas.

Oásis Egipto

Poderá haver mais destes rostos escondidos nas areias. Uma escavação recente realizada junto à aldeia de Gerza descobriu não só um enorme templo funerário greco-romano com 2.300 anos, como diversos retratos de múmias requintados.

Uma aldeia cerâmica de renome

Os retratos funerários ancestrais podem ter posto Fayoum no mapa internacional, mas os visitantes de hoje são atraídos pela cerâmica. Na década de 1980, a ceramista suíça Evelyne Porret transformou a sonolenta aldeia agrícola de Tunis, situada no noroeste do oásis, num centro artístico. Construiu ali uma casa e um estúdio e acabou por abrir uma escola de cerâmica que ensinou gerações de artistas egípcios. Até a arquitectura da cidade começou a imitar os tectos abobadados e as portas arredondadas da escola de Porret.

cerÂmica

Um rapaz trabalha barro numa roda de oleiro numa oficina na aldeia de Tunis. Fotografia de Meng Tao, Xinhua/Redux.

Quarenta anos após a chegada de Porret, as oficinas dos seus alunos alinham-se na rua principal, cujo nome foi mudado para Evelyne Street após a sua morte, em 2021. O extravagante estilo de cerâmica vidrada do qual foi pioneira conta com decorações pintadas à mão de cabras dançarinas, aves a voar e palmeiras ondulantes, inspiradas na natureza do oásis. Os visitantes podem comprar as peças directamente nas oficinas ou em lojas como a To a Skylark Gallery, onde também é possível encontrar fotografias e pinturas locais.

Os turistas chegam a Fayoum vindos do Cairo em autocarros ou contratam guias, como Kamel, que os levam até ali e lhes mostram tudo o que há para ver. Para além de locais ancestrais e lojas, existem cada vez mais restaurantes e alojamento em Tunis.

Habitantes do Cairo e expatriados abastados frequentam o Lazib Inn, um hotel boutique com um terraço junto à frente ribeirinha. Ao jantar, à luz das velas, são servidos pratos tradicionais como pombo recheado enquanto um músico toca uma chorosa oud, uma guitarra em forma de lágrima do Médio Oriente.

cerâmica

Uma oleira finaliza uma tigela numa oficina na aldeia de Tunis. A aldeia é conhecida pelas suas excêntricas vasilhas em barro vidrado. Fotografia de Ahmed Gomaa, Xinhua/Redux.

Kamel acha que as viagens sustentáveis e de baixo impacto são o futuro de Fayoum: uma forma de atrair mais visitantes e desvendar-lhes as riquezas da região, sem a transformar numa paragem do grande circuito de autocarro que bombardeia a região arqueologicamente rica do alto Egipto.

“Fayoum”, diz, “é frágil”. E embora a sua visita guiada esteja repleta de histórias de perda e destruição, as novas descobertas arqueológicas e a indústria cerâmica de Tunis sugerem que a região poderá estar preparada para um novo renascimento.

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