Dizia Homero na “Odisseia”, há quase três mil anos, que o mar de Creta era púrpura e que todo ele apresentava marcas inequívocas de riqueza e beleza. Embora esse tempo tenha passado, os inúmeros encantos naturais e culturais de Creta ainda surpreendem.
Graças à sua posição equidistante entre a Ásia, África e a Europa, este maravilhoso enclave flutuante converteu-se num eixo das rotas comerciais que cruzavam o Mediterrâneo, no berço da primeira civilização europeia. Era, em simultâneo, um entreposto estratégico para mais de um império e o excepcional património arqueológico da região comprova-o exaustivamente.
Não é fácil penetrar em Creta para lá da primeira e mais óbvia camada: há mais de mil quilómetros de costa, uma paisagem abrupta e em constante mudança, com mais de quarenta picos acima de dois mil metros de altitude, e uma rede de estradas precárias que transformam a região num autêntico labirinto. Esta particularidade é seguramente a razão pela qual a maior ilha grega ainda preserva a sua própria personalidade e recantos intactos.
A opção mais segura é colocar o primeiro pé em Creta em Heraklion, a antiga Candia. Capital da ilha desde 1971, oferece um bom exemplo da típica cidade grega, construída por livre arbítrio dos seus habitantes, onde se entrecruzam vestígios do passado com edifícios de todos os tipos.
Cultura e história
Dominado pela fortaleza de Koules, o porto de Candia da Idade Média abriga uma das maiores frotas pesqueiras da ilha. O forte construído pelos venezianos no século XIII para se protegerem das incursões inimigas acolhe actualmente exposições e, no Verão, há concertos no seu piso superior. A sua visita serve de primeiro contacto com a história da ilha antes de penetrarmos pela Rua 25 de Agosto. Esta via pedonal de estilo neoclássico conduz-nos perto da Igreja de São Tito. Dedicada ao culto ortodoxo (religião oficial do país), as suas formas revelam que também terá funcionado como mesquita. Continuando pela mesma rua, passamos em frente da Lonja, onde os mercadores de antigamente trocavam os seus produtos. Agora, funciona neste espaço a Câmara Municipal. A contígua Praça dos Leões confirma ser um local perfeito para se sentar e desfrutar de um prato de lucumades (pastéis doces) com uma garrafa de raki, a aguardente insular.
Depois desta etapa gastronómica a tarde pode ser dedicada a conhecer a magnífica colecção que o Museu Arqueológico de Heraklion exibe sobre a civilização minóica (terceiro milénio a.C.). É considerada a primeira civilização do Mediterrâneo e da Europa que, para além de ter desenvolvido um pequeno império marítimo, foi a primeira do continente a usar um alfabeto, o “Linear A”, ainda hoje por decifrar, e o “Linear B” que também chegou a Micenas, antecessor do grego.
Com esta introdução já estamos preparados para ir em busca do passado minóico de Creta, cujos sítios históricos se encontram dispersos por toda a ilha. Destacam-se os palácios de Cnossos (no Norte), Festos (no Sul) e Zacro (no Leste). A um escasso quilómetro da capital, o palácio de Cnossos foi descoberto pelo arqueólogo inglês Arthur Evans no início do século XX.
Animado pelos mitos e pelas lendas recolhidas junto dos antigos ilhéus, Evans encontrou em 1900 os restos do palácio minóico mais importante e iniciou a sua reconstrução. Apesar de o resultado não estar isento de críticas pelo excessivo intervencionismo, a visita a Cnossos não deixa nenhuma dúvida acerca do esplendor daquela civilização. Segundo a mitologia, o palácio continha o labirinto do temível Minotauro, um ser metade-touro, metade-homem que devorava jovens e foi vencido por Teseu, que conseguiu sair do labirinto graças ao fio que lhe tinha sido dado por Ariadne, a filha do rei Minos.
Onde se fala de zorba
A acolhedora Chania é a outra cidade da ilha, também localizada na costa norte, mas no extremo ocidental. Aqui, as marcas venezianas (séculosXIII-XVII) e otomanas (XVII-XX) estão ainda muito presentes. Por isso, um passeio pela cidade antiga consegue surpreender, por exemplo, com o campanário e minarete da Igreja de São Nicolau, na Praça Splantzia; ou com o edifício de forma abobadada do antigo haman, no mesmo porto; ou de repente, na parte alta das muralhas, com uma sinagoga ainda activa.
Ao passar em frente de uma taberna é possível que tenhamos a sensação de já a termos visto antes, quem sabe numa cena de “Zorba, o Grego”. Além de Nikos Kazantzakis, o autor do romance, ser oriundo de Creta, o filme foi rodado em Chania e nos seus arredores. Não surpreende que as filmagens tenham sido feitas nesta área onde se encontram contínuas mudanças na natureza da ilha, com propostas para todos os gostos. As mais exigentes talvez sejam subir ao topo nevado da segunda montanha mais alta de Creta, a Levká Ori (2.440m), e descer à garganta de Samaria, cujos 16 quilómetros a convertem na mais profunda da Europa.
Reserva da Biosfera e integrado no Parque Nacional das Montanhas Brancas, o canhão de Samaria desce até ao mar, estreitando-se cada vez mais até alcançar uma largura de apenas três metros nas chamadas Portas de Ferro. Mais relaxante é apanhar o barco na requintada povoação de Loutro, um conjunto de casas brancas que foi esconderijo de piratas antes de passar a ser um porto veneziano e depois turco. Embora procuremos uma escapadela paradisíaca, nada como chegar de barco à pequena ilha de Gramvousa, tomar banho nas suas águas de areia rosada e contemplar o pôr do Sol desde a lagoa de Balos; ou mesmo perder-se na praia de Elafonisi e sentir que não faz falta ir para as Caraíbas para desfrutar de águas cristalinas num ambiente de sonho.
Saladas e borrego
Rethymno, a meio caminho entre Chania e Heraklion, aparece na costa norte como outro presente da ilha. Livre das aglomerações turísticas de outros pontos, Rethymno convida a perder-se por ruas onde se torna palpável a herança veneziana e turca, passear pelo animado porto e admirar a fortaleza erguida pelos venezianos em 1773. Por muito que seduza a cidade antiga, convém sair desta para se lançar na exploração da província de Rethymno. Perto da cidade existem praias excepcionais como as de Platanias e Panormos e, cerca de trinta quilómetros a sul, a sensacional praia de Preveli, com uma floresta de palmeiras e um rio que forma um pequeno lago.
Aproveitando a presença na região, é fundamental parar na povoação de Spili (a 30 quilómetros) para ver as suas fontes com cabeças de leão do período veneziano e, especialmente, para degustar alguns pratos da cozinha cretense – desde a famosa salada grega com um bom pedaço de queijo feta ao prato de jorta (verdura local), do dolmadakia (arroz em folhas de videira) ao borrego (arni), o prato fundamental em todas as celebrações da ilha.
Voltamos a encontrar-nos com a história no mosteiro de Arkadi, a 23 quilómetros de Rethymno. Este recinto amuralhado, rodeado por uma paisagem vinhateira, por oliveiras e florestas de pinheiros, carvalhos e ciprestes, representa um importante símbolo da resistência cretense contra a ocupação otomana. Ali deixaram a vida 964 pessoas que preferiram imolar-se a renderem-se aos turcos. Declarados pela UNESCO Monumento Europeu para a Liberdade, a maioria dos seus edifícios são maioritariamente de origem românica ou foram construídos durante o século XVI.
Mitos e Lendas
O centro de Creta é um enclave repleto de mitos. Partindo do pitoresco planalto de Lasithi, chegamos à grande gruta onde a lenda assegura ter nascido Zeus, seguindo um caminho inclinado que também pode ser percorrido no lombo de mulas. Mais a oeste, ergue-se o monte Psiloritis (2.456 m), o tecto da ilha, numa outra gruta que a mitologia dedica à infância de Zeus. Ao descer desta, chegamos a Anogia, uma aldeia na montanha que possui a maior quantidade de músicos por metro quadrado da ilha – é muito possível que no Verão coincidamos com a celebração de algum casamento na sua praça principal.
Aliás, percorrendo o labirinto da ilha, surpreende-nos a quantidade de cartazes que fazem promoção aos músicos locais. É que em Creta, a música tradicional (kritiká) tem uma vitalidade difícil de encontrar noutras zonas do país. Os seus intérpretes gozam de grande reconhecimento e não há festa ou celebração (glendis e panygiris) que não tenha música ou baile. É o remate perfeito para a viagem.
Garganta de Samaria, o grande trekking da ilha
Os cretenses chamam Farangas ao seu canhão mais espectacular, a garganta de Samaria: é um corte de 16 quilómetros que se afunda nas montanhas Brancas (Lefka Ori) e chega ao mar pelo povoado de Agia Roumeli, na costa sul.
O ponto inicial da rota é a sede do Parque Natural em Xyloskalo, a 1.230 metros de altitude e ligado por autocarro a Chania. A partir dali, um caminho sinalizado abre perspectivas vertiginosas e desce por uma densa floresta serpenteando por um rio que convida ao banho. As ruínas da aldeia de Samaria, com a sua igreja do século XIV, marcam a metade do percurso.
O último ramo do canhão percorre-o pela zona mais estreita até alcançar as chamadas Portas de Ferro (Sideroportes); nesse local, a distância entre muros é só de três metros, enquanto as paredes rochosas alcançam 350 metros de altura. Na costa, o povoado e a praia de Agia Roumeli aguardam os caminhantes. A água é levemente adocicada graças ao aquífero que desce pela garganta e que tem mais caudal do que o rio visível. No porto (não existem estradas), um barco liga Hora Skafion, de onde partem os autocarros para Chania.
Entre Novembro e Abril, o acesso à garganta é fechado devido ao caudal do rio. A opção mais curta e habitual é subir à garganta desde Agia Roumeli até às Portas de Ferro.
A entrada é paga.