Não é casual que a palavra “bolsa” derive do apelido de um cidadão de Bruges. Durante a Idade Média, a privilegiada posição geográfica desta cidade transformou-a na urbe mais animada do continente, até ao dia em que ficou isolada do mar.
Cidade cosmopolita, de vocação mercantil e financeira, Bruges era nos séculos XIV e XV o maior mercado da Europa e a sua principal praça de câmbios. Partindo de Génova, Veneza, Luca ou Florença, os navios italianos faziam escala em Lisboa, Málaga, Cádis e Southampton para chegar a Bruges, de onde distribuíam as suas mercadorias e de onde acediam às cidades nórdicas. Portugueses, catalães, castelhanos, franceses, ingleses e germanos participavam neste intenso tráfego mercantil. Não é de estranhar que, na primeira metade do século X, o viajante Pedro Tafur dissesse do porto de Bruges: “Ali vereis todas as nações do mundo a comer numa manjedoura sem discussões”, ou seja, sem lutas.
Do Mediterrâneo chegavam os veludos de Génova, os brocados de Veneza e as especiarias orientais; do Norte, o trigo báltico, a cerveja de Hamburgo e Bremen, a madeira e o bacalhau da Noruega, as peles russas, o âmbar prussiano; de Inglaterra a lã, de França, o sal e o vinho; do interior da Flandres, os tecidos. Bruges não produzia, apenas geria: funcionava como local estratégico para as trocas. E, com isso, enriquecia e desenvolvia-se, construía e canalizava; tudo graças à sua posição privilegiada como centro financeiro da Europa medieval.
Um passeio pela Bruges medieval
Deixando o porto para trás e uma vez paga a portagem de entrada na cidade, o viajante que chegava a Bruges pela primeira vez corria o risco de se perder numa confusão de canais, pontes e ruas sem nome povoadas de gente de todos os lados, que falava várias línguas e que se movia sem cessar. Mais tarde ou mais cedo, acabava por se encontrar na Grote Markt, a grande praça do mercado, presidida pelo enorme edifício sob cujas arcadas trabalhavam os cambistas, enquanto nos arredores se vendiam ovos, legumes e outros produtos alimentares. Ninguém, no século XV, deixava de ficar impressionado quando entrava na praça mais activa da Europa, a do mercado de lã de Bruges.
Relicário de Santa Úrsula. Foi decorado por volta de 1489 por Hans Memling, um famoso pintor flamengo que trabalhou em Bruges e que foi um dos pintores favoritos de Isabel I de Castela. Museu Hans Memling, Bruges.
A alguns passos da Grote Markt encontrava-se o segundo coração da cidade, o Burg, a praça onde se erguia o Templo do Sangue Sagrado, que guardava a relíquia levada para Bruges de Jerusalém pelo conde Thierry da Alsácia em 1149. Se o viajante tivesse curiosidade, poderia entrar na basílica e contemplar nem mais nem menos do que o sangue de Jesus Cristo que José de Arimateia disse ter recolhido no Graal e que o patriarca de Jerusalém entregou em mãos ao conde. Em frente da igreja, na esquina oposta à praça, a meridional, no início do século XV fora recentemente finalizada a construção do Stadhuis, a sede gótica da Câmara Municipal de Bruges.
A Grote Markt. Nesta praça, no coração da Bruges medieval, ergue-se o majestoso campanário de Belfort, com 83 metros de altura, que coroa o antigo mercado de tecidos, conhecido como Hallen. O conjunto foi construído no século XIII e renovado no século XVI.
Contudo, eram as pessoas, o luxo e a elegância das roupas que mais captavam a atenção do recém-chegado. Os habitantes de Bruges e, sobretudo, os inúmeros estrangeiros residentes na cidade eram a melhor prova de que nela tudo podia ser comprado com dinheiro e que o dinheiro, por sua vez, abundava em Bruges. O viajante cansado gastava parte das suas moedas num local de pernoita e num prato de comida acompanhado de um bom vinho. Neste aspecto, Bruges não decepcionava: a cidade tinha uma oferta inigualável de todo o tipo de hospedarias, restaurantes e tabernas.
Se o viajante viajava em negócios, o melhor local para os colocar em marcha era a hospedaria. Na maior parte destas, trocava-se dinheiro e faziam-se empréstimos e depósitos, mas também se obtinha a melhor informação para investir em empresas mercantis ou simplesmente para conhecer as flutuações do mercado. Não foi em vão que a Bolsa teve a sua origem na casa de um hospedeiro, Van der Beurse.
Se o visitante não tinha compromissos depois da refeição e do repouso, poderia simplesmente passear, deambular por outros mercados, admirar a torre da Igreja de Nossa Senhora, ir até às oficinas dos artesãos e assistir a espectáculos de rua. Poderia igualmente entrar em algumas das numerosas tabernas, muitas das quais com sessões de dança e música, ou em algum dos bordéis e banhos públicos. prostituição era só uma das mais directas consequências da presença e do poder do dinheiro: onde existissem mercados, trocas e actividades monetárias, bebia-se, jogava-se e a prostituição abundava.
Ao contrário do que acontecia noutras cidades, as autoridades de Bruges não tentaram controlar o mercado da prostituição. Não existia qualquer restrição nem forma de vestir, nem sequer nas zonas da cidade em que as mu- lheres podiam trabalhar. A maioria fazia-o nos banhos públicos, em bordéis e taber- nas, no centro, perto dos mercados, ou nos arredores da cidade. O elevado número de prostitutas que existia em Bruges deveria im- pressionar os visitantes, mas a cidade seguia as regras do mercado: a oferta correspondia a uma procura ampla e estável. Os bordéis tinhamumaclientelavariável(osforasteiros de passagem) e fixa. Muitos cidadãos eram solteiros, pois os casados raramente viviam aqui com as suas esposas. As prostitutas eram habitualmente mulheres que tinham migrado do campo para fugir à pobreza. Na imagem, interior de um bordel. jogos eróticos representados numa miniatura alemã do século XV. Museus Estatais, Berlim.
Na sua origem, a cidade esteve vinculada ao reino franco dos merovíngios e, no século VIII, transitou para o Império Carolíngio. No século IX, o condado da Flandres – ao qual Bruges pertencia – tornou independente sob Balduíno, Braço de Ferro, artífice da construção de um castelo perto de Reie, em redor do qual se alargaria a futura expansão urbana. Mercadores e artesãos estabeleceram-se aqui e, em 1089, construiu-se a primeira muralha.
O porto que se fez a si mesmo
A proximidade do mar, a celebração de feiras, o desenvolvimento do artesanato e a progressiva chegada de pessoas provenientes do campo explicam o constante crescimento da urbe a partir desse momento. O núcleo original, provavelmente um pequeno povoado junto do qual se construiu o castelo, passou a ser uma activa cidade em apenas dois séculos. As origens de Bruges, tal como as da maioria das cidades medievais, encontram-se na fusão do castrum e do portus: a fortaleza e o porto, do castelo e do mercado, da muralha e da praça.
A etimologia do nome de Bruges tem relação com a sua condição de porto e do seu contacto com a água, responsável directa tanto pelo seu esplendor como pela sua decadência: o seu nome provém de bryggia, termo que em norueguês antigo designava as instalações portuárias. Na história de Bruges, provavelmente não existe nada tão complexo como o esforço local para ser uma cidade portuária.
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Canais, diques e marés. A relação de Bruges com a água não se limita à função portuária: um dos elementos mais característicos da cidade são os canais internos, pelos quais se acedia à urbe medieval. Os diques regulavam os níveis da água e, ao mesmo tempo, serviam de linha defensiva em épocas de conflito. A história do seu desenvolvimento é complexa, pois foi o resultado de uma combinação de cursos de água naturais e artificiais, pelo que é difícil determinar a hidrografia original desta zona.
A paisagem urbana de Bruges nasceu da acumulação de canais, pontes, molhes… Por estas vias, introduzia-se a carga no porto interior situado a sul da cidade, actualmente conhecido como Minnewater. As marés eram a força motriz de Bruges: a água movia os navios e mantinha também em funcionamento os moinhos das fábricas manufactureiras. No século XV, a urbe tinha o aspecto reflectido nesta gravura publicada num fascinante atlas: o Civitates orbis terrarum, obra de Georg Braun e Franz Hogenberg.
A Porta de Santa Cruz. A maciça Kruisport, construída em 1297 como parte do sistema defensivo da cidade, foi destruída em 1382, quando os habitantes de Gante invadiram Bruges. Só foi reerguida no século XV.
Até ao século XI e graças a um canal natural, o Reie, a cidade ligava-se ao mar, mas, naquela época, o acesso foi seriamente dificultado pelas transformações do terreno a norte de Bruges, pela construção de diques e pela remoção de areias. A solução foi produzida pelo estabelecimento de uma série de enclaves portuários sucessivos: o canal Zwin, um braço de água que penetrava desde o mar do Norte, que foi conduzido até ao Reie, e a criação de um sistema de portos ou de anteportos nas povoações de Sluis e Damme, as primeiras escalas dos navios que se encaminhavam para Bruges, e as únicas se a sua tonelagem impedia que atracassem nos canais da cidade.
O transporte das mercadorias até ao porto interno de Bruges realizava-se com o aproveitamento da força das marés. Os navios chegavam à cidade com a subida da maré, arrastados pelas águas. Na preia-mar, fechavam-se os diques, alagando os canais. Uma vez finalizadas as tarefas de carga ou descarga, os diques eram abertos novamente com a baixa da maré, que conduzia os navios até ao porto marítimo. Assim, as mercadorias chegavam directamente ao mercado da lã, na Grote Markt. As mercadorias transferiam-se para um armazém conhecido como Waterhalle, que começou por baixo do Belfort e passou depois para outro edifício localizado na mesma praça.
Estima-se que a população de Bruges tenha alcançado no século XV os 50 mil habitantes, número muito alto para a época, que chegava a aumentar em determinados momentos do calendário, como a feira de Maio. As ruas de Bruges estavam repletas de imigrantes e de forasteiros, pelo que entre os habitantes da Bruges medieval devem ser distinguidos os locais dos estrangeiros, e os permanentes dos semipermanentes e dos visitantes.
Câmara Municipal de Bruges. No interior da vasta sala gótica do Stadhuis, destacam-se a extraordinária abóbada, construída em madeira policromada, e um grande número de murais que decoram as paredes.
Os flamengos originários de Bruges pertenciam fundamentalmente ao mundo dos negócios e ao mundo do artesanato. Os migrantes provenientes do campo eram habitualmente operários do sector têxtil ou trabalhavam em hospedarias, restaurantes ou tabernas. Perto destes estavam os religiosos e, num número muito superior ao de outras cidades, as prostitutas. Os estrangeiros dedicavam-se maioritariamente ao comércio e às finanças, e constituíam, nos finais da Idade Média, uma grande percentagem da população.
O esplendor de Bruges
Em 1067, o arcebispo de Reims descrevia já numa carta a prosperidade de Bruges, mas teve de esperar mais dois séculos até a Europa começar a falar de uma urbe cosmopolita. A chave para o desenvolvimento de Bruges residiu principalmente na sua estratégica localização: perto do mar do Norte e dos grandes rios do Noroeste, tornou-se rapidamente o centro comercial das regiões escandinavas, germânicas e britânicas. De Bruges, exportavam-se os tecidos flamengos, ao mesmo tempo que se importavam e redistribuíam produtos chegados da Rússia e de Bizâncio.
Ao longo dos séculos XI, XII e XIII, as actividades comerciais foram crescendo e Bruges transformou-se num ponto fulcral do comércio europeu. Atravessando França, os mercadores flamengos visitavam as grandes feiras do interior e chegavam às cidades italianas, onde trocavam os seus produtos por artefactos de luxo e especiarias que distribuíam de seguida no Norte.
A Beguinaria de Bruges. As beguinarias como esta, características das cidades flamengas do século XIII, formavam pequenos bairros fechados por uma ou duas portas, onde só viviam mulheres.
No século XIII, a maior tonelagem dos barcos italianos permitiu substituir este perigoso trajecto terrestre pelo marítimo, poupando tempo e dinheiro. Com o declínio das feiras de Champagne e a complementaridade dos mercados flamengos (ao qual chegavam os produtos provenientes do Norte e Leste da Europa) e do mar Adriático (receptor das sedas e das especiarias orientais), produziu-se uma deslocação geográfica das actividades comerciais de sul para norte da Europa que transformou Bruges no porto mais importante do continente. Os habitantes de Bruges deixaram de navegar, visto que os próprios italianos se estabeleceram na florescente cidade, contribuindo decisivamente para a activação do sector financeiro.
Uma lenta asfixia
Os comerciantes italianos eram indivíduos autónomos, mas também agentes de grandes empresas com sede em Itália. Reuniam-se em comunidades organizadas, reconhecidas tanto pelas autoridades locais como pelas de origem, com as suas próprias tradições e com representação nas celebrações públicas locais. Estes organismos, que actualmente são identificados como consulados, denominavam-se na Idade Média por “nações” e estavam encarregados da gestão dos interesses dos seus membros e da defesa do estatuto legal da comunidade estrangeira, que tinha diversos privilégios fiscais.
Nos séculos XI e XII, Bruges foi a residência favorita dos condes da Flandres. Ali instalaram-se entidades como a tesouraria e a chancelaria. Em épocas posteriores, a direcção da cidade foi assumida por uma elite constituída por membros das principais famílias de mercadores, que potenciaram a vocação comercial da urbe. Com isto, Bruges converteu-se num contrapoder nórdico às cidades-estado italianas.