Até agora, nunca tinha pensado na criação de uma onda: imaginado as forças climáticas e gravitacionais que deslocam a água salgada sobre topografias submersas, fazendo-a ganhar volume, subir, formar um arco e, por fim, dissipar-se em poderosas explosões de espuma. Esta minha falta de atenção parece-me agora um enorme fracasso, estando eu vestida com um fato de surf a pegar desajeitadamente numa prancha para principiantes, numa das praias de surf mais famosas da Europa.
O instrutor Francisco Romeiras, do Ericeira Surf Clube, aponta para as fileiras de ondas ao largo de Ribeira d’Ilhas, uma praia com a forma de um espectacular anfiteatro emoldurada por falésias íngremes e douradas viradas para o Atlântico. “É um point break longo, a quebrar à direita”, diz, usando um léxico próprio dos surfistas. “Esta onda, a sua coerência a forma como se desenrola em todas as marés, foi o que trouxe os primeiros surfistas à Ericeira no início da década de 1970. Está pronta para a experimentar?”
Sinto-me aliviada por não estar entre as figuras distantes que vejo nas águas profundas. Em vez disso, passei uma hora com o Francisco a ganhar confiança mais perto da costa. “Não pense demasiado”, recorda-me quando uma onda pequena apanha a minha prancha e dou por mim a viajar com o oceano a uma velocidade que me parece alucinante. “Joelhos dobrados! Olhos na praia!”, grita, enquanto consigo pôr-me em pé na prancha pela primeira vez, antes de cair, tal qual estrela-do-mar, já numa zona rasa.
Quando saímos da água uma hora mais tarde, Francisco chama-me a atenção para um promontório com a estátua prateada de um surfista. "O Guardião" foi criado por José Queiroz em 2017, como chamada de alerta para a protecção e a preservação ambiental. Tornou-se o símbolo oficioso da Ericeira enquanto cidade e continua a consolidar o seu estatuto como Reserva Mundial de Surf. A designação, atribuída em 2011 pela Save the Waves Coalition, celebra a cultura, a economia e o meio ambiente de sítios de surf extraordinários e a Ericeira foi o segundo no mundo, depois de Malibu, na Califórnia, a ser reconhecido. “Isto põe-nos mesmo no mapa”, diz Francisco. Em Maio de 2023, foi distinguida uma 12ª localização que deliciou os surfistas britânicos: North Devon.
Enquanto guardávamos as nossas pranchas, fui apresentada a Ulisses Reis, um veterano local. “Fui um dos primeiros a dar aulas. Só havia um acampamento de surf básico na praia, um sítio onde os hippies conviviam”, diz-me, perdendo-se momentaneamente nas suas memórias. “Mas foi demolido.” Agora há um elegante passadiço com cabanas de surf em madeira, duches e um café. O complexo inclui a escola de surf de Ulisses, a Blue Ocean, onde os seus filhos dão aulas agora. É uma de mais de 50 escolas existentes na Ericeira. “Temo pela comercialização do surf aqui, à velocidade com que as coisas estão a mudar. Isto é tudo fantástico”, diz, gesticulando, “é a minha vida inteira agora, mas, pessoalmente, preferia como era antes”.
A Ericeira oferece condições únicas para a prática do surf durante todo o ano, com os meses de Maio a Setembro a proporcionarem ondas mais suaves, adequadas para principiantes. Outubro, Novembro e Abril também podem ser bons meses para aprender, mas as ondas nos meses de Inverno serão melhor aproveitadas por profissionais.
Se existe alguma tensão na comunidade pela crescente maré de turistas, é impossível senti-la enquanto explora as ruas caiadas de branco do centro histórico mais tarde. Lojas de surf, boutiques de roupa sofisticadas e cafés que servem 'poke bowls' encontram-se lado a lado com tascas perdidas no tempo e pastelarias que vendem ouriços, o bolo de amêndoa local. Descubro casas com azulejos antigos invocando a protecção dos santos contra os desastres marítimos e arte urbana moderna repleta de motivos surfistas. O desporto pode ser um fenómeno relativamente novo nesta comunidade piscatória tradicional fundada em 1229, mas já faz parte da sua malha – e impulsiona a economia local.
“É difícil ser pescador. As marés, as condições. Os homens mais velhos estão felizes por os seus filhos poderem trabalhar no turismo relacionado com o surf para terem uma vida boa e continuarem a viver do mar”, diz Ana Vaz, do departamento de turismo da região no dia seguinte. Estamos a visitar o centro de interpretação da Reserva Mundial de Surf da Ericeira, que se encontra mesmo ao lado da praça principal.
No seu interior, um modelo interactivo da orla costeira de quatro quilómetros explica as suas sete ondas diferentes. Para além de Ribeira d’Ilhas, existe Pedra Branca e Reef, ambas ao largo da praia da Empa; Crazy Left, Coxos e Cave, junto à baía dos Dois Irmãos; e São Lourenço, uma onda rápida que se ergue a partir de um planalto rochoso a cerca de 300 metros da praia. Começo finalmente a compreender os factores geográficos envolvidos na criação de condições para o surf – e a perceber a cultura e o ecossistema marinho que os autóctones tanto querem preservar.
A Ericeira continua a gerir cuidadosamente as mudanças trazidas pelo aumento do turismo de surf. A cidade mantém o encanto de uma histórica vila piscatória, com o seu centro histórico caiado de branco, onde se encontram capelas e casas centenárias.
“A Ericeira está habituada aos visitantes. Foi fundada por marinheiros e as suas águas ricas em minerais foram descobertas pelos viajantes há séculos, ainda antes do hotel Vila Galé ser construído”, diz Ana, referindo-se ao palaciano ícone local construído em 1955. Desde o início da pandemia, um número recorde de nómadas digitais escolheu a Ericeira como lar temporário. “O desafio é equilibrar as necessidades dos novos visitantes com as dos residentes e encorajar os turistas a explorarem para além da World Surfing Reserve. Há tanta coisa para fazer se também olharmos para o interior.”
Encarando isto como um desafio, planeio uma incursão até Mafra. Passo por pastos verdejantes salpicados de limoeiros, pequenas aldeias em pedra como José Franco, famosa pela sua cerâmica, e vinhas familiares como a Quinta de Sant’Ana. No coração da região, encontra-se o sumptuoso Palácio de Mafra. Mandado construir por D. João V no século XVIII, o edifício barroco encontra-se lado a lado com uma basílica, um convento e o recinto murado com cerca de 800 hectares da Tapada.
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O Palácio Nacional de Mafra merece uma visita, pela rica arquitectura, estatuária e história.
É na pérola montanhosa de Sintra, a sul, que vou experimentar outro desporto. A florescente cidade, com as suas fortalezas antigas e ruas curvilíneas, dispensa grandes apresentações: Lord Byron, o poeta do século XIX, foi um dos muitos britânicos que caíram de amores pelos seus encantos, descrevendo-a como um “glorioso Éden”. No entanto, poucos visitantes adivinhariam que as vertentes graníticas sob os baluartes ocidentais do Castelo dos Mouros, do século VIII, oferecem alguns dos melhores desafios de escalada do país.
“Temos de confiar. Nos nossos pés, no nosso equipamento, na nossa mente”, diz-me Luís Batista, um instrutor de montanhismo da empresa de desportos de aventura Desnível, enquanto aperta o meu arnês. “Vai valer a pena só pela vista.” Esticamos o pescoço para admirar a massa rochosa de cerca de 45 metros que se ergue do trilho na floresta. É o Penedo da Amizade, a maior vertente rochosa de Sintra, com 72 vias possíveis de escalada quase verticais. Luís faz-me começar numa via fácil de grau 3, a qual sobe com agilidade. Demonstrando-me como agarrar superfícies íngremes e usar o peso do corpo para subir. Tal como no surf, as minhas primeiras tentativas não são firmes, nem dignas, e o medo mistura-se com a determinação, provocando-me enjoos. À terceira vez, algo faz clique. Confio nos meus pés. Ergo as mãos mais alto. Encontro suportes onde não existiam antes e consigo chegar ao topo.
As lajes de granito por baixo do imponente castelo mouro de Sintra são bem conhecidas dos entusiastas de escalada locais. O Penedo da Amizade, com cerca de 45 metros de altura, é o maior penhasco de Sintra, oferecendo 72 vias diferentes de subida.
A costa ocidental de Portugal encontra-se diante de mim com um mapa, com a terra a desdobrar-se em direcção a uma expansão binária de céu e oceano. Explorei durante esta viagem dois domínios improváveis, aprendendo novas competências – e ganhando novas perspectivas – ao lado de especialistas para quem apanhar ondas e escalar alturas grandiosas é o foco das suas vidas. Faço uma pausa para absorver a paisagem: os minúsculos palácios de lazer em Sintra, com os seus torreões, lá em baixo, e as gaivotas planando nas correntes amenas. Mas só por um instante. O Luís está a chamar-me e é altura de voltar à terra. Para quem prefere actividades em terra, as opções de escalada de Sintra são um desafio perfeito.
Este artigo foi produzido pela National Geographic Traveller (Reino Unido) e publicado em nationalgeographic.com.