No Alqueva, a hora de ponta começa às 21h30. As estradas locais continuam tão vazias de noite como estiveram durante o dia, mas no céu, uma fila de satélites Starlink começa a formar-se a cerca de 500 quilómetros de altitude. “É a Estação Espacial Internacional”, diz o astrónomo Nuno Santos, apontando o seu ponteiro laser verde para sul. “Digam adeus às três pessoas que estão a bordo!”
Passados mais alguns minutos, os meus olhos habituaram-se à escuridão total que cobre o Observatório Dark Sky Alqueva, permitindo o aparecimento de mais corpos celestiais. Primeiro, o incrivelmente luminoso Vénus e depois o alaranjado Marte. Servindo de plano de fundo ao protagonismo destes planetas, um número incompreensível de estrelas cintila como um punhado de purpurinas atirado para o céu nocturno.
Para me orientar, procuro a mais famosa das constelações em forma de animal: a Ursa Maior. “Não consegue ver a forma de um urso grande?”, pergunta Nuno. “Não se preocupe. Eu também não. Lembre-se de que as pessoas que lhes deram os nomes bebiam um vinho mesmo bom.”
O conhecimento das estrelas contribuiu para a formação de Portugal. O país dominou a Época dos Descobrimentos nos séculos XV e XVI, quando as nações europeias começaram a explorar o mundo através do mar. Tenho estado a usar o GPS para encontrar o meu caminho ao longo da rota Alqueva Dark Sky — um percurso automóvel que une locais onde se pode observar as estrelas, alojamentos e actividades – mas os primeiros navegadores usavam a Estrela Polar. “A luz que estamos a ver agora foi emitida quando o astrónomo Galileu ainda estava vivo”, diz Nuno ao pequeno grupo que participa numa das suas sessões nocturnas. “Quando olhamos para o céu nocturno, estamos a olhar para o passado”.
A albufeira de Alqueva é uma bacia artificial que represa o rio Guadiana na fronteira entre os distritos de Beja e Évora, no Sul de Portugal.
Se recuarmos algumas décadas no tempo, o Alqueva seria bastante diferente. Actualmente, é dominado pela albufeira de Alqueva, o maior corpo artificial de água da Europa. Concluída em 2002, a obra só começou em 1995, apesar de os planos remontarem à década de 1950. Idealização de António de Oliveira Salazar, o projecto pretendia irrigar esta região maioritariamente agrícola, outrora apelidada de “Celeiro de Portugal” devido à sua abundância de culturas cerealíferas. A região recebe uma fracção dos visitantes do seu vizinho Algarve, apesar de a extensão das margens deste lago ser superior à de toda a costa portuguesa.
Do alto do monte, na vila murada de Monsaraz, é possível ter uma ideia de escala da albufeira de Alqueva. A partir das muralhas do seu castelo, consigo ver como represar o rio Guadiana encheu os vales previamente áridos do Alentejo, transformando o cimo dos montes em ilhas. Em volta do lago, a região mantém o aspecto que sempre teve: campos ondulantes de trigo e vinha, salpicados por alguns sobreiros e oliveiras.
SOBE, SOBE, BALÃO SOBE
Um balão de ar quente proporciona uma vista ainda melhor. Levantamos voo de madrugada, com o rugido do propano líquido saído da botija a assinalar a nossa partida. Pouco depois, uma rajada de vento faz o nosso veículo elevar-se no céu, onde o silêncio se torna quase fantasmagórico. Depois de o nosso cesto roçar na copa das árvores, encontramo-nos sobre a albufeira de Alqueva – uma imagem cujo reflexo nos é devolvido. O nosso balão amarelo reluz como uma lâmpada gigante sobre a superfície da água, até o efeito de espelho ser perturbado por um peixe que salta nas águas rasas.
Algures lá em baixo, diz o piloto Carlos Sousa, fica a agora perdida Aldeia da Luz. Uma Atlântida recente, a aldeia foi evacuada em 2002 e os seus restos inundados durante a criação da Albufeira de Alqueva. A maior parte dos seus moradores foram mudados – com relutância – para uma aldeia-réplica construída nas proximidades, em terras mais altas. “Foi muito difícil para eles”, diz Carlos. “Em Portugal, somos muito apegados à tradição. Algumas pessoas até levaram as portas e as janelas.”
Maurício Abreu
Uma viagem num balão de ar quente sobre a vila medieval de Monsaraz oferece a melhor vista da albufeira de Alqueva.
Pouco depois, o nosso balão sobrevoa a nova localização da aldeia, com as suas casas brancas e amarelas semelhantes a Legos e o cemitério novo e ordenado – igualmente transferido do local original. Ao fundo, no horizonte, avista-se Mourão, uma das cinco vilas situadas em redor da albufeira. Da minha perspectiva aérea, consigo ver as muralhas do seu castelo medieval – a sua forma de estrela de seis pontas a fazer lembrar uma estrela no desenho do céu nocturno de uma criança.
O meu próximo vislumbre de estrelas verdadeiras ocorre num passeio de caiaque depois do pôr-do-sol, a única experiência deste género disponível em Portugal continental. Estes passeios são feitos no pino do Verão, quando as águas da Albufeira estão à temperatura de um banho durante o dia (pairando nos 30 e tal graus) e raramente descendo abaixo dos 25ºC durante a noite. Encontro-me com o meu guia, Francisco Guerreiro, ao lado da albufeira de Alqueva, onde um enorme conjunto de letras maiúsculas proclama: "ON A CLEAR DAY YOU CAN SEE FOREVER" ("Num dia claro, pode ver eternamente"). Embora a noite tenha caído, o sinal revela-se profético: olho para cima, para o infinito e mais além.
“Quando vemos menos, os nossos outros sentidos começam a trabalhar mais”
Partimos num caiaque para duas pessoas, com Francisco a remar em sintonia comigo, mas o nosso ritmo meditativo não tarda a ser perturbado. Um vento súbito salpica o meu rosto com água – um agradável borrifo improvisado. “Quando vemos menos, os nossos outros sentidos começam a trabalhar mais”, diz Francisco. “Sentimos mais.” A brisa também transporta o aroma almiscarado da esteva, que cresce em abundância nas margens do lago. Passado pouco tempo, chegamos a uma pequena ilha e dirijo-me descalça para a sua pequena praia. Com areia entre os dedos, recordo-me do velho cliché: existem mais estrelas do universo do que grãos de areia na Terra. A observação do astrónomo norte-americano Carl Sagan parece mais verdadeira aqui do que em qualquer outro sítio que eu já tenha visitado.
Para Francisco, a paisagem acima é tão familiar como o lago onde ele passa os seus dias – ele aponta para a Via Láctea como se fossem velhos amigos. Detectar os dois peixes da constelação de Peixes é a minha deixa para dar um mergulho. A água, uma onda de veludo escuro, envolve-me como um abraço caloroso. Após algumas braçadas, mergulho e pego num punhado de areia do fundo do lago – há cerca de 20 anos, seria o campo de um agricultor. Quando já estou seca, Francisco serve um piquenique de iguarias locais à luz das velas – chouriço de porco preto e queijo de Évora –, acompanhado com copos minúsculos de um tinto alentejano.
A região é considerada “terra de cortiça” há séculos, mas, nos últimos tempos, o produto tem tido utilizações mais excitantes para além de tapar garrafas. Foi usado para isolar naves espaciais, desempenhando um papel modesto na mais recente "época dos descobrimentos” e levando-nos um pouco mais perto das estrelas.
Excerto do artigo "Kayaking, night swims and stargazing: embracing adventure in Alentejo, Portugal", publicado originalmente na edição de Setembro de 2023 de National Geographic Traveller (Reino Unido).