A complexidade de um coração humano é revelada nesta imagem do Museu Mütter de Filadélfia. Fotografia Robert Clark
Deitada de barriga para cima, sedada mas desperta, Gloria Stevens observa num monitor as imagens do batimento do seu próprio coração. O coração é uma bomba cheia de sangue, com o tamanho aproximado de um punho fechado, cujas contracções rítmicas mantêm Gloria viva há 62 anos. Com um pequeno “arranjo”, é provável que ele ainda seja capaz de a manter viva durante mais algum tempo.
Neste momento, o médico faz passar um fino cateter através da artéria femural, a partir de uma incisão na virilha, até à aorta e, a partir desta, até uma das artérias que rodeiam o coração de Gloria. Na extremidade do cateter, encontra-se um pequeno balão. O médico conduz suavemente essa extremidade até um local onde a placa aterosclerótica estreitou o canal da artéria em 90%. Com um gesto rápido, o cirurgião insufla o balão para empurrar a parede da artéria, diminui-lhe de seguida o volume e introduz um stent expansível, uma espécie de minúsculo tubo em rede, de malha hexagonal semelhante à vedação de um galinheiro, que manterá aberta a passagem. Enquanto Gloria assiste pelo monitor, o estreitamento na sua artéria desaparece e um amplo fluxo laminar irrompe pelo vaso sanguíneo.
A intervenção terminou. Durou apenas meia hora. Provavelmente, Gloria poderá regressar a casa no dia seguinte. O mesmo acontecerá a alguns milhares de doentes submetidos a esta angioplastia de rotina –mais de um milhão por ano nos EUA. Tubo consertado, doente curado: certo?
Errado.
VER A DOENÇA CORONÁRIA Uma angiografia revela uma oclusão abrupta (descrita como “fazedora de viúvas”) de uma importante artéria coronária. Esta técnica recorre a um cateter, um produto de contraste e raios X para penetrar os vasos sanguíneos. Uma segunda angiografia, após inserção de um tubo stent semelhante ao que vemos ao centro, mostra que a corrente sanguínea foi restabelecida (em baixo, à direita). Com uma técnica diferente, denominada ultrassonografia intravascular, os médicos conseguem examinar o interior de um vaso sanguíneo em corte transversal (em cima). A placa aterosclerótica (a amarelo) dificulta a corrente sanguínea (a vermelho). Depois de inserido um tubo stent, que força a parede a abrir, o sangue circula mais livremente.
Com este tratamento, a qualidade de vida de Gloria irá provavelmente melhorar. Vai respirar melhor e é possível que viva durante mais tempo. Mas dificilmente se pode considerar que esteja curada. Devido à sua aterosclerose coronária (um endurecimento e estreitamento das artérias que abastecem o coração de sangue rico em oxigénio), ela permanece vulnerável a futuras obstruções e a doença cardíaca coronária.
Os corações sofrem numerosas maleitas, e a doença cardíaca coronária, potencialmente indutora de ataque cardíaco e, em última análise, de insuficiência cardíaca, é a principal causa de morte de homens e mulheres nos EUA, com 500 mil óbitos por ano. Em todo o mundo, a doença mata anualmente 7,2 milhões de pessoas. Exacerbada pela exportação do estilo de vida ocidental, que inclui transporte motorizado, consumo de carne e queijo em abundância e vida laboral passada no conforto de uma cadeira estofada, a incidência da doença tem vindo a aumentar.
Para contrariar esta vaga mortífera, os cardiologistas receitam fármacos redutores do colesterol, como as estatinas, que contribuem para manter as artérias desobstruídas. Podem aconselhar os doentes a mudar de hábitos ou podem operá-los para resolver um problema imediato.
A INSTALAÇÃO PASSO A PASSO No Instituto do Coração, em Berlim, Siegfried Streiter, de 62 anos, suporta quatro horas de intervenção cirúrgica para obter o seu coração artificial. O dispositivo não só conseguirá mantê-lo vivo, como afiança Roland Hetzer, cirurgião-chefe, como a força e estabilidade do seu pulsar poderá contribuir para desanuviar a congestão crónica dos vasos sanguíneos pulmonares. “Um coração humano transplantado teria fracassado de imediato”, diz Hetzer.
A angioplastia é um desses procedimentos. Outra hipótese é uma intervenção cirúrgica destinada a fazer um bypass às artérias doentes. Os transplantes possibilitam a substituição de corações gravemente lesionados, e os corações artificiais conseguem manter os doentes vivos enquanto eles aguardam o coração de um dador. No entanto, perante uma epidemia iminente, nenhuma destas medidas provisórias responde à pergunta vital: quem sofre ataques cardíacos e porquê?
O coração humano bate 100 mil vezes por dia, projectando 5,6 litros de sangue ao longo dos mais de 96 mil quilómetros de vasos sanguíneos do organismo. O sangue flui com vigor, jorrando com tal força de um coração com 280 gramas que as grandes artérias, quando cortadas, podem projectar no ar um jacto de sangue com a altura de um metro. Em princípio, a inexorável corrente sanguínea ajuda a manter os vasos desobstruídos. Porém, quando uma artéria descreve uma curva, formam-se pequenos remoinhos, tal como na curva de um rio. É aqui que podem infiltrar-se colesterol e gordura pegajosa e cerosa, semelhante a manteiga, na parede da artéria. Além disso, acumulam-se também outras substâncias. Por fim, a massa acaba por calcificar, formando sobre a parede interior da artéria uma espécie de estuque denominado placa aterosclerótica.
O coração artificial de Siegfried é temporário, pois a bioengenharia continua a desenvolver o próximo trunfo: um coração mecânico que não necessite de tubagens externas, bombas ou pilhas e que nunca tenha de ser removido.
Até há pouco tempo, os cardiologistas encaravam a doença coronária como um problema de canalização. Tal como os depósitos de minerais impedem o fluxo da água pelo cano, a acumulação de placa aterosclerótica obstrui a corrente sanguínea, impedindo-a de fluir pelo canal arterial. Quanto maior a quantidade de substância viscosa no sistema, maior a probabilidade de uma artéria entupida desencadear um ataque cardíaco. Actualmente, os médicos rejeitam este “modelo de canalização entupida” como uma metáfora ultrapassada. As coisas não são assim tão simples.
Os ataques cardíacos são, em maioria, provocados pela placa aterosclerótica acumulada sobre a parede da artéria que rompe, rasgando a parede e desencadeando a formação de um coágulo sanguíneo. O coágulo impede o sangue de fluir até ao músculo cardíaco, que pode morrer por falta de oxigénio e de nutrientes. De repente, a bomba deixa de bombear.
RUPTURAS PERIGOSAS O colesterol no sangue pode infiltrar-se nas paredes arteriais, formando a plava aterosclerótica. Minúsculas bolsas de placa acumulam-se (aterosclerose). A placa pode acumular-se durante décadas e, de súbito, rebentar com consequências fatais.
PROCESSO
1. Colesterol na corrente sanguínea infiltra-se na parede arterial; 2. Sistema imunitário envia macrófagos para consumir o colesterol. Os macrófagos transformam-se em células espumosas; 3. Acumulação de células espumosas, que se transformam numa das principais componentes da placa; 4. Para manter a parede arterial escorregadia, as células musculares formam uma cápsula; 5. Células espumosas
presentes na placa segregam substâncias químicas que enfraquecem a cápsula; 6. Ataque cardíaco: Se a cápsula abrir fissuras, a placa aterosclerótica infiltra-se na corrente sanguínea e forma-se um coágulo. A maioria dos ataques cardíacos ocorre nas artérias onde a obstrução à circulação é inferior a 50% e onde as placas e cápsulas são finas e com maior probabilidade de ruptura.
A- Ao longo do tempo, uma artéria pode alargar para o dobro do seu diâmetro para compensar o espaço perdido para a placa; B- Pistas genéticas: o gene apoE4 está envolvido na inflamação arterial. Alguns cientistas suspeitam que a mutação do gene MEF2A afecta a probabilidade de ruptura; C- Idade típica para as etapas de construção da placa.
Fontes: Richard A. Lange, Hospital Johns Hopkins; Peter Libby, Brigham e Hospital de Senhoras; Eric J. Topol, Clínica Scripps; Thomas Thom, Instituto Americano do Coração, do Pulmão e do Sangue. Arte: Bryan Christie
Contrariamente ao que ocorria no modelo da canalização entupida, os ataques cardíacos costumam geralmente ocorrer em artérias com níveis mínimos a moderados de obstrução e essa ocorrência depende mais do tipo de placa aterosclerótica que da sua quantidade. A comunidade científica tem-se esforçado por compreender qual o tipo mais responsável. Paradoxalmente, as conclusões da investigação indicam que as placas aterosclerótica pouco amadurecidas e mais moles têm mais probabilidade de se romper do que as densas e duras placas calcificadas, que causam o estreitamento generalizado do canal arterial. No entanto, para compreender a causa fundamental da doença, será necessário um volume muito maior de investigação. Para começar, os corações humanos, ao contrário das peças de canalizador, não são feitos a partir de um molde. Tal como as outras componentes do organismo, são o produto dos nossos genes.
REDUZIR OS RISCOS
Há 50 anos, os factores de risco da doença coronária costumavam provocar morte prematura. Em décadas recentes, fármacos como as estatinas (e intervenções como a angioplastia e o bypass) controlam a doença com mais eficácia.
Factores de risco de ataque cardíaco
• Uma combinação patológica entre colesterol “bom” e colesterol “mau” quadruplica o risco. • A diabetes quadruplica o risco nas mulheres e duplica-o nos homens. • A hipertensão quase triplica o risco nos homens e duplica-o nas mulheres. • O stress e a depressão quase triplicam o risco. • Um regime alimentar saudável diminui o risco em cerca de 30%. • A obesidade abdominal faz crescer o risco para mais do dobro. • A falta de exercício físico aumenta o risco em cerca de 20%. • Fumar pode duplicar – ou mesmo triplicar – o risco.
Don Steffensen estava a instalar iscos de caça aos patos num pequeno lago, certa tarde de Outono, no Sudoeste do estado norte-americano do Iowa, quando sofreu um ataque cardíaco. É provável que Steffensen tenha sobrevivido apenas porque um companheiro transportava comprimidos de nitroglicerina e colocou um rapidamente debaixo da língua do amigo. A nitroglicerina é utilizada para fabricar dinamite: no organismo, uma fórmula muito diluída liberta óxido nítrico, quem anda descontrair as células musculares lisas das veias e artérias, dilatando os vasos.
Naturalmente, os membros da família mantiveram esse regime alimentar mesmo depois de mudarem para um estilo de vida sedentário.
O clã Steffensen é enorme: mais de 200 parentes distribuídos por mais de três gerações. Embora os problemas cardíacos sejam comuns na família, ninguém reparou na coincidência. “Eu achava que os problemas eram causados pelo regime alimentar”, diz Tina, uma elegante mulher de 38 anos, a única vegetariana da família.
A sua conclusão era razoável. A família Steffensen foi criada com a alimentação rural que tornou famoso o estado do Iowa – almôndegas de presunto, rolo de carne, empadas, massa de cotovelo com queijo. Naturalmente, os membros da família mantiveram esse regime alimentar mesmo depois de mudarem para um estilo de vida sedentário. No entanto, poderia a elevada incidência de problemas cardíacos existente na família Steffensen dever-se a outros factores e não apenas a um regime alimentar com elevado teor de gorduras? Onze anos após o ataque cardíaco de Don, a sua mulher, Barbara, ouviu por acaso um médico referir-se a um estudo sobre causas genéticas dos ataques cardíacos.
A FAMÍLIA STEFFENSEN Don Steffensen (nº 4) segura um retrato de há 60 anos da família. Ele e a maioria dos irmãos acusaram positivo no teste de detecção de uma mutação do gene MEF2A, que poderá estar relacionado com doença coronária. Todos sofreram problemas cardíacos, mas os médicos dizem que os genes, por si, não permitem prever o futuro. O regime alimentar e o exercício continuam a ter papel crucial. 1. Clyde: não fez o teste; 2. Cecil: teste com resultado positivo; 3. DeVere: teste com resultado positivo; 4. Don: teste com resultado positivo; 5. Garth: não fez o teste; 6. JoAnn: teste com resultado positivo; 7. Jeanette: teste com resultado positivo; 8. Mae: não fez o teste; 9. Marvin: teste com resultado positivo; 10. Elayne: teste com resultado positivo; 11. Zilpha: não fez o teste; 12. Arthur: não fez o teste; 13. Betty: teste com resultado negativo.
Movidos pela curiosidade, Don e mais 20 dos seus familiares enviaram o seu sangue para a Clínica Cleveland, onde a investigação estava a ser conduzida. O cardiologista Eric Topol, responsável pela investigação genética da clínica, demorou um ano a estudar o DNA da família. No genoma de cada indivíduo, existem milhões de variantes pessoais, mas Eric Topol procurava alguma característica distintiva e partilhada apenas pelos membros da família com problemas cardíacos. A mutação que ele e a sua equipa acabaram por identificar, num gene denominado MEF2A, produzia uma proteína deficiente. “Sabíamos que tínhamos informação nova em mãos”, diz Topol. “Mas a pergunta a que era preciso responder era a seguinte: como pode esta proteína deficiente, presente logo à nascença, provocar ataques do coração depois de 50 anos de vida?”
Este coração de poliuretano tem capacidade para manter vivos os doentes cardíacos gravemente afectados enquanto aguardam um dador humano. Depois de cirurgicamente implantados, os tubos de plástico ligados ao dispositivo percorrem a pele do doente até uma bomba pneumática alimentada a pilhas. Embora dispendioso, este utensílio tem forte procura. Cerca de três mil pessoas aguardam transplantes de coração nos EUA, mas só cerca de 2.100 corações de dadores estão disponíveis por ano. Embora o abastecimento de corações artificiais seja uma barreira técnica fácil de superar, o aumento do número de corações humanos disponíveis é um desafio maior. Quem serão os dadores de amanhã? Esta pergunta mantém-se pertinente para um doente na Alemanha, no qual foi recentemente implantado um curacao artificial CardioWest semelhante a este (ver slideshow).
Bastante magro, Topol, à semelhança de quase todos os cardiologistas com que conversei, medica-se preventivamente com estatinas, apresentando um baixo nível de colesterol de 135. “Investigadores que examinaram cadáveres de homens de vinte e tal anos, mortos em acidentes de viação ou em combate, verificaram que quase todos tinham depósitos de colesterol nas artérias”, disse Topol, enquanto nos dirigíamos para o seu laboratório. “Esta doença manifesta-se muito mais cedo do que as pessoas imaginam.”
As duas proteínas celulares foram marcadas com cor verde fluorescente, de maneira a permitir a sua visualização num monitor de computador.
Utilizando células endoteliais (que revestem o interior da parede arterial) produzidas em laboratório, Topol começou a estudar os efeitos induzidos pela mutação do MEF2A. Juntamente com os membros da sua equipa, criou certas células que transportavam a variante Steffensen e outras com a forma normal da proteína. As duas proteínas celulares foram marcadas com cor verde fluorescente, de maneira a permitir a sua visualização num monitor de computador. As imagens obtidas revelaram uma diferença assombrosa. Na célula normal, a totalidade da proteína MEF2A encontrava-se no interior do núcleo: no monitor, a célula assemelhava-se a um ovo estrelado com uma gema de cor verde fluorescente. Mas nas células com a versão mutante o núcleo não brilhava: em vez disso, a membrana celular apresentava-se envolvida por uma fina linha verde luminosa: era uma camada da proteína MEF2A, aprisionada num local onde não podia cumprir a sua função prevista. Segundo Topol, este defeito afecta a integridade das paredes das artérias coronárias, tornando-as mais susceptíveis a abrir fissuras quando a placa aterosclerótica nelas incorporada se rompe. E cada fissura produz uma possibilidade aumentada de ocorrência de ataque cardíaco.
Protegido por um dispositivo que lhe regula a temperatura, mantém o batimento e preserva a vitalidade, um coração aguarda o transplante. Tradicionalmente, os corações de dadores são imersos em solução salina e embalados em gelo.
Segundo as conclusões de Topol, embora a mutação disfuncional do MEF2A seja rara, a possibilidade de ocorrência de doença coronária nas pessoas que o têm pode aproximar-se de 100%. A maioria das outras variantes genéticas já identificadas aumenta o risco, mas em muito menor escala. E a verdade é que o próprio Topol possui um gene defeituoso: o apoE4, que provoca inflamação das artérias. Ao contrário do MEF2A, é um problema vulgar, que afecta 1 em cada 4 indivíduos.
"O risco de ataque cardíaco em qualquer pessoa é “50% genético e 50% hambúrguer com queijo”.
“A doença coronária não é um problema causado por um ou dois genes”, diz o cardiologista Steven Ellis, da Clínica Cleveland. À semelhança da maioria dos investigadores, Ellis suspeita que dezenas de genes contribuam para a predisposição. Das várias dezenas de genes responsáveis, cada um pode contribuir com menos de 1% para o risco total da pessoa, valor que pode ser agravado, ou atenuado, por factores externos como o regime alimentar. Como me disse um médico, o risco de ataque cardíaco em qualquer pessoa é “50% genético e 50% hambúrguer com queijo”.
Segundo Ellis, vale a pena inventariar estas pequenas mutações de forma a criar um teste sanguíneo abrangente, capaz de calcular a susceptibilidade genética de uma pessoa, adicionando o número de variáveis de risco (e, possivelmente, de benefício). Em conjunção com outros factores importantes, como o consumo de tabaco, o peso, a tensão arterial e os níveis de colesterol, os médicos poderiam decidir se seria preciso aplicar aos doentes um tratamento agressivo ou se bastaria o exercício físico ou outras mudanças de estilo de vida para resolver o problema. Alguns genes já permitem prever as pessoas cujo nível de colesterol responde a alterações do regime alimentar e aquelas em que essa mudança não resulta. Segundo Ellis, a avaliação do risco tem uma importância crucial, dado que a doença coronária é frequentemente invisível.
MORTALIDADE POR DOENÇAS CARDIOVASCULARES NA EUROPA
Fontes: Euro Heart Survey 2006, Sociedade Europeia de Cardiologia.
Com efeito, 50%dos homens e 64% das mulheres que morrem de doenças cardíacas têm morte súbita, sem experimentarem previamente quaisquer sintomas. Embora os testes clínicos normalizados permitam detectar a aterosclerose, eles não são à prova de erro. Podem revelar a presença de placas ateroscleróticas, mas não dão indicações sobre a mortalidade induzida por elas. Um teste como a angiografia, durante a qual os médicos injectam um corante na corrente sanguínea seguindo-o por meio de raios X, pode mostrar a quantidade de sangue que corre através de uma artéria, sem conseguir discernir as placas incrustadas no interior da parede arterial, muitas vezes responsáveis pelo ataque cardíaco.
Os investigadores desenvolvem trabalho para resolver este problema, utilizando ferramentas de digitalização que fornecem imagens da própria parede arterial,mas trata-se de uma tarefa complicada. As paredes das artérias cardíacas normais têm cerca de um milímetro de espessura. As artérias coronárias deslocam-se a cada batimento do coração, isto é, 70 vezes por minuto. Por isso, é difícil obter uma imagem nítida de uma coisa tão pequena em constante movimento.
“É aquele tipo de placa que pensamos provocar um ataque cardíaco”.
Difícil não significa impossível. Ao caminhar pelas caves da Clínica Cleveland, passo por uma sala onde avisto um grande donut de plástico azul, da minha altura, com umas pernas de mulher emergindo a meio. O donut é um digitalizador de tomografia axial computorizada (TAC), uma espécie de máquina de raios X a três dimensões que também serve para obter imagens de tumores. Este digitalizador, com o auxílio de fármacos que reduzem a frequência cardíaca e de um corante injectável que ilumina as artérias, tem capacidade para produzir imagens muito nítidas.
Passando em revista imagens no seu computador, Mario Garcia, director do serviço de imagiologia cardíaca da clínica, retém uma imagem que se assemelha a uma paisagem a preto-e-branco obtida de avião, com um único grande rio a correr através dela. Quando Garcia amplia a imagem, surgem na margem protuberâncias brancas: placas ateroscleróticas rígidas, brilhantes devido ao cálcio. Mas também se vê uma minúscula mancha negra. “É aquele tipo de placa que pensamos provocar um ataque cardíaco”, diz, apontando para amancha de placa aterosclerótica mole. “É uma oportunidade rara de a vermos.”
No passado, era impossível observar o funcionamento do coração sem uma intervenção cirúrgica invasiva. Os progressos da tomografia axial computorizada (TAC) permitem hoje obter imagens digitalizadas de pormenor em dez segundos, sem recurso a bisturi. Esta imagem de um coração a bater revela o estreitamento de uma artéria. Imagem Toshiba America Medical Systems, Inc.
Por mais meticuloso que seja um exame de TAC, ele continua a ser imperfeito para prever doenças cardíacas: é dispendioso, e a dose de radiação não o torna adequado para os exames anuais de indivíduos saudáveis. Embora ele permita visualizar placas ateroscleróticas arteriais (até mesmo placas moles no interior das paredes arteriais), não consegue revelar a probabilidade de as placas romperem e provocarem um ataque cardíaco.
Enquanto não existirem testes que forneçam uma medição mais exacta do risco, aconselha-se que toda a gente pratique exercício físico, vigie de perto o regime alimentar e ingira estatinas em caso de níveis elevados de colesterol. É exactamente o conselho que os médicos antigamente davam, no tempo em que imperava a concepção da doença coronária como canalização entupida!
Actualmente, alguns estudos parecem demonstrar que a redução do colesterol, mesmo quando os níveis são normais, induz um efeito protector.
Na Clínica Cleveland, o cardiologista Stephen Nissen tem realizado estudos com estatinas, como o Lipitor, que reduz a quantidade de colesterol LDL (lipoproteína de baixa densidade, “má”) produzido pelo fígado. Nissen defende que é preciso baixar o colesterol por todos os meios ao alcance. Toma estatinas? “É claro que sim!”, diz. “Não faço tenção de morrer da doença que trato.” O seu nível de colesterol LDL é baixíssimo: 51. Dos oito cardiologistas com que conversei, só um não tomava estes medicamentos. Actualmente, alguns estudos parecem demonstrar que a redução do colesterol, mesmo quando os níveis são normais, induz um efeito protector. Quanto ao colesterol HDL (lipoproteína de elevada densidade, “boa”), a história é diferente. Nissen chama-lhe “carro do lixo da parede arterial”, devido à sua capacidade para remover o colesterol das artérias entupidas. Nem todo o HDL tem capacidade para executar as funções, mas os testes revelam que a elevação do nível do HDL em ratos de laboratório geneticamente transformados permite encolher as placas arteriais ateroscleróticas.
Há drogas em etapas diferentes de ensaios clínicos, mas o percurso de um fármaco da Pfizer denominado torcetrapib terminou em fracasso.
Um fármaco que permitisse elevar os níveis de HDL funcional nos seres humanos seria um sucesso. Há drogas em etapas diferentes de ensaios clínicos, mas o percurso de um fármaco da Pfizer denominado torcetrapib terminou em fracasso. Demonstrou-se que, administrado juntamente com Lipitor, elevavam-se entre 44 e 66% os níveis de HDL com um único comprimido diário. No entanto, o incremento não era necessariamente do HDL funcional, pois o fármaco estava igualmente associado à tensão arterial elevada. Em Dezembro, quando os dados demonstraram que a taxa de mortalidade dos doentes medicados com torcetrapib e Lipitor era 60% mais elevada do que a dos doentes medicados apenas com Lipitor, a Pfizer terminou repentinamente os ensaios.
Quatro meses depois de receber o seu coração artificial, Siegfried já pode divertir-se. Precisa, porém, de uma unidade móvel de abastecimento que permite ao seu coração continuar a bater. O equipamento emite um zumbido contínuo, mas Siegfried não se queixa: "A boa notícia é que ainda estou vivo!"
Ainda não se sabe ao certo se o problema se deve a um fármaco ou a uma categoria inteira de fármacos. Até se aprofundar a investigação, as estatinas continuarão a ser a categoria de medicamentos mais receitada do mundo. Tal como qualquer outro fármaco, elas comportam efeitos secundários: as dores musculares são bem conhecidas, recomendando-se também análises regulares ao sangue para verificar a função hepática. Felizmente, a investigação genética continua.
Em breve poderemos saber o estado do nosso coração de forma cada vez mais pormenorizada. Esse conhecimento poderá fazer a diferença entre morrermos aos 65 anos ou vivermos até aos 80. E, cada vez mais, a escolha estará nas nossas mãos.
Reportagem originalmente publicada na edição de Fevereiro de 2007 da National Geographic-Portugal (nº 71)