Símios africanos em risco

O comércio ilícito está a florescer à medida que a procura aumenta na China, no Médio Oriente e no Paquistão.

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Uma fêmea de bonobo dá fruta ao seu bebé no santuário Lola ya Bonobo Sanctuary, o único espaço de reabilitação de bonobos do mundo, situado nos arredores de Kinshasa, na República Democrática do Congo.
Bryan Denton, The New York Times/Redux.

Uma fêmea de bonobo dá fruta ao seu bebé no santuário Lola ya Bonobo Sanctuary, o único espaço de reabilitação de bonobos do mundo, situado nos arredores de Kinshasa, na República Democrática do Congo. Bebés de chimpanzé, gorila e bonobo são cada vez mais vendidos como animais de estimação e a jardins zoológicos, diz um novo relatório. 

 

 

 

Os grandes símios de África enfrentam as graves ameaças da destruição de habitat e da caça ilegal para consumo da sua carne. Agora são também cada vez mais visados pela procura internacional de animais de estimação e de atracções de jardim zoológico, segundo um novo relatório publicado pela Global Initiative Against Transnational Organized Crime. Até à data, este problema tem praticamente escapado à atenção da maioria dos grupos responsáveis pela protecção de grandes símios africanos: chimpanzés, bonobos e duas espécies de gorilas.

Todas as quatro espécies estão em perigo – muito crítico – e são protegidas por leis nacionais e internacionais. Contudo, poucos grupos ou governos monitorizam a captura de símios, fazendo com que seja difícil saber quão grave é a ameaça representada pela caça ilegal no comércio de animais vivos. Evidências circunstanciais sugerem que o problema é significativo e está a aumentar, diz Daniel Stiles, um investigador independente do comércio de animais selvagens do Quénia que redigiu o relatório.

“Os legisladores internacionais, as organizações de conservação e os governos doadores não estão a compreender o gigantesco alcance do comércio ilegal dos grandes símios africanos”, diz Iris Ho, directora de campanhas e políticas da Pan African Sanctuary Alliance (PASA), uma coligação sem fins lucrativos composta por 23 santuários de primatas de 13 países africanos, que foi entrevistada para o relatório.

Chimpu, um chimpanzé resgatado de uma operação de tráfico em 2017, recebe cuidados no Central Zoo, em Katmandu, no Nepal.
Samantha Reinders, The New York Times/Redux

Chimpu, um chimpanzé resgatado de uma operação de tráfico em 2017, recebe cuidados no Central Zoo, em Katmandu, no Nepal. Dois anos mais tarde, num caso altamente mediático, um tribunal nepalês condenou cinco homens pelo tráfico de chimpanzés bebés.

 

Trabalhando com uma rede de investigadores e informadores clandestinos, Stiles descobriu que os anúncios de venda de grandes símios bebés estão a aumentar no WhatsApp e nas redes sociais. Desde 2015, ele documentou 593 anúncios de grandes símios, publicados por 131 indivíduos em 17 países. Os preços dos animais quadruplicaram face há uma década: os chimpanzés valem agora até 100.000 dólares, os bonobos até 300.000 e os gorilas até 550.000. O novo relatório não menciona os orangotangos, que vivem na Malásia e na Indonésia.

A maioria dos símios africanos são expedidos para a China, Paquistão, Líbia ou para os Estados do Golfo – sobretudo os Emirados Árabes Unidos – onde se tornam animais de estimação ou, cada vez mais, atracções em jardins zoológicos privados. Segundo Stiles, abriram cerca de 10.000 jardins zoológicos na China entre 2013 e 2020, quase duplicando os números totais. É mais fácil para jardins zoológicos com registos locais obterem licenças de importação para espécies estritamente protegidas do que para os particulares, o que explica a proliferação dos jardins zoológicos. “Os jardins zoológicos registados proporcionam enquadramento legal sob o disfarce de centros de regaste ou conservação”, diz Stiles. Também "disponibilizam serviços de limpeza de registos para animais traficados, que são posteriormente vendidos como animais criados em cativeiro”.

Na maioria dos países, quando um refúgio de vida selvagem é registado junto das autoridades locais, “é possível chamar-lhe jardim zoológico, centro de resgate ou conservação, santuário – tudo o que quisermos”, acrescenta.

Outro sinal da procura crescente é o número cada vez maior de jovens símios acolhidos por santuários de vida selvagem africanos acreditados pela Pan African Sanctuary Alliance (PASA) desde 2019, diz Ho. Os santuários da PASA cuidam de mais de 1.100 chimpanzés, a maioria dos quais confiscados a comerciantes. Os jovens símios resgatados exigem cuidados permanentes, mas a maioria dos santuários da PASA já estão completamente cheios e todos padecem de falta de fundos.

Stiles descobriu que os comerciantes vendem principalmente símios bebés provenientes da República Democrática do Congo e de países da África Ocidental, sobretudo da Guiné. Por cada chimpanzé bebé raptado, os caçadores furtivos costumam matar seis a sete adultos. Os especialistas também estimam que morram entre cinco e dez bebés devido a ferimentos, doenças ou maus-tratos, por cada animal entregue a compradores no estrangeiro.

Segundo o relatório, os traficantes expedem alguns grandes símios de África juntamente com carregamentos legais de macacos ou aves. Cada vez mais, porém, os animais são entregues a jardins zoológicos devidamente licenciados, incluindo na África do Sul. As evidências sugerem que esses jardins zoológicos obtêm licenças de exportação legais para grandes símios capturados em estado selvagem afirmando, falsamente, que os animais foram criados em cativeiro.

‘Estava cansado de lutar contra a burocracia’

Pouco se está a fazer para travar esta nova tendência de comércio ilegal, escreve Stiles, em parte porque três dos mais importantes grupos internacionais encarregados de proteger os grandes símios ainda não prestaram a devida atenção ao problema.

 

Funcionários e bonobos jovens convivem no Lola ya Bonobo Sanctuary.
Bryan Denton, The New York Times/Redux

Funcionários e bonobos jovens convivem no Lola ya Bonobo Sanctuary. Os especialistas estimam que, por cada símio bebé entregue aos compradores no estrangeiro, dez outros morram devido a ferimentos, doenças ou maus-tratos. Até à data, este comércio ilegal tem praticamente escapado à atenção da maioria dos grupos responsáveis pela protecção dos grandes símios africanos. 

A Great Apes Survival Partnership (GRASP) — uma aliança das Nações Unidas — inclui o combate ao comércio ilegal entre as suas prioridades. No entanto, segundo Doug Cress, antigo líder da GRASP, o grupo “já mal funciona”. Cress demitiu-se em 2016 porque as agências da ONU que deveriam apoiar o esforço nunca o trataram como uma prioridade. “Estava cansado de lutar contra a burocracia”.

Johannes Refisch, que assumiu a liderança da GRASP, diz que “travar o comércio ilegal é uma prioridade”. Refisch disse que a base de dados de apreensões de símios lançada pela GRASP em 2016 é o seu “principal instrumento para uma melhor compreensão dos factores que impulsionam o comércio ilegal, de modo a conseguirmos abordá-lo de forma eficaz”.

Stiles diz que, quando pediu acesso à base de dados da GRASP em Agosto de 2022, recebeu “um relatório ridículo”, com uma tabela de números de apreensões que não continha quaisquer pormenores sobre locais, datas ou intimações. “Não tinha dados nenhuns”, diz. “Não servia para nada”.

Refisch recusou o pedido da National Geographic para ver a base de dados.

A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a autoridade global em matéria de espécies ameaçadas, conta com um grupo dedicado aos grandes símios, mas não prioritiza o comércio ilegal, diz Stiles, em contraste com os grupos da IUCN especializados noutras espécies, que relatam activamente o comércio ilegal. “Vejamos o caso dos pangolins”, diz Stiles. “Ninguém fazia a menor ideia do que era um pangolim até o grupo especializado da IUCN começar a redigir os seus relatórios e a dizer: ‘olhem, há dezenas de milhares de pangolins a serem traficados’ – e agora toda a gente fala nisso.”

“É de loucos que não se esteja a fazer nada em relação aos grandes símios”, acrescenta. Dirck Byler, vice-presidente e coordenador do grupo da IUCN, não respondeu ao nosso pedido de comentários.

O CITES, o tratado global que assegura que o comércio de animais selvagens não ameaça a sobrevivência das espécies, não tem um grupo de trabalho dedicado aos grandes símios, diz Stiles. Na conferência do CITES do ano passado, na qual representantes de 183 países e da União Europeia se reuniram para tomar decisões sobre o comércio de espécies ameaçadas, os grandes símios nem sequer constavam da agenda. “Como este comércio é internacional, pertence à jurisdição do CITES”, diz Stiles. “Mas o CITES não está a tomar medidas.”

Ben Janse Van Rensburg, director da unidade de aplicação da lei do Secretariado do CITES, afirma que cada país e responsável por assegurarem que o comércio de espécies protegidas permanece legal. Nos casos em que existem preocupações, lembra, o Secretariado “emitiu uma declaração para servir de enquadramento factual”.

Os países membros do CITES, acrescenta, também são responsáveis por definir a agenda a discutir nas conferências e reuniões e criar grupos de trabalho para espécies específicas.

No seu relatório, Stiles contra-argumenta dizendo que os representantes do Níger, Costa do Marfim, Quénia e Uganda tentaram efectivamente criar um grupo de trabalho dedicado aos grandes símios no CITES em 2014 e 2016. No entanto, os seus requerimentos foram “recusados” pelo representante do CITES que presidia à reunião.

Iris Ho acrescenta que, em Março de 2022, o Gabão, com o apoio do Senegal, da Guiné e da Nigéria, pediu – sem sucesso – que os grandes símios fossem colocados na agenda da conferência dos CITES a realizar nesse ano. Ela disse que os EUA também enfatizaram a importância de prestar atenção a esta questão.

Sem uma acção global concertada, o problema só irá agravar-se, avisa Stiles. Ele já está a ver sinais de que o comércio de grandes símios está a chegar à Índia. “Se a comunidade internacional não começar a levar a sério o tráfico de grandes símios, ele vai continuar a crescer, ameaçando a sobrevivência dos nossos parentes mais próximos”, afirma.

 

A National Geographic Society apoia o Wildlife Watch, um projecto de investigação dedicado a crimes e exploração da vida selvagem. Descubra mais sobre a missão sem fins lucrativos da National Geographic Society aqui.

 

Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com

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