A raia-viola-de-espinhos, ou tubarão-raia, é uma criatura marítima de aspecto estranho. A sua cauda assemelha-se à de um tubarão, mas o seu corpo grosso funde-se com uma cabeça plana semelhante à de uma raia, cravejada com excrescências ósseas pontiagudas, ou “espinhos”.
Muitos tubarões e raias ameaçadas são perseguidos em todo o mundo devido às suas barbatanas, que são apreciadas na cozinha chinesa. A raia-viola-de-espinhos, um animal em vias de extinção, também está ameaçada pela procura de uma outra indústria de luxo: a joalharia. Os seus espinhos são cortados e transformados em anéis e pulseiras.
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Anéis com espinhos de raia-viola-de-espinhos expostos numa loja junto à costa de Krabi, na Tailândia. Segundo um novo estudo, o comércio online de anéis de espinhos e outras peças, como pulseiras, prospera há mais de uma década.
Outrora presente em todo o Indo-Pacífico, a raia-viola-de-espinhos é uma parente próxima do peixe-serra e da raia-viola —raias parecidas com tubarões que, no seu colectivo, são um dos peixes marinhos mais ameaçados do mundo – cuja população diminuiu mais de 80 por cento nas últimas décadas.
Segundo um novo estudo publicado na "Conservation Science and Pratice", a venda de jóias de viola-de-espinhos, anunciada na Internet e concentrada na Tailândia, prospera há pelo menos uma década.
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Um vendedor mostra pulseiras com espinhos de raia-viola-de-espinhos e tiras de espinhos não trabalhadas em Krabi. O fabrico de produtos à base de viola-de-espinhos é ilegal na Tailândia desde 2018, quando o peixe foi favorecido por protecção total ao abrigo da legislação nacional.
Há muito que este comércio, grande parte dele ilegal, passa despercebido e é realizado à margem da lei, diz Jennifer Pytka, que liderou a investigação no âmbito do seu doutoramento em biologia marinha na Universidade de Bangor, em Gales. À excepção de alguns relatórios sobre as jóias de espinhos do Sudeste Asiático, há pouca documentação, afirma. “Não sabíamos o que íamos encontrar”.
Uma pesquisa sistemática online revelou mais de 977 anúncios de produtos à base de viola-de-espinhos, alguns dos quais remontando a 2012. A maioria eram espinhos solitários, incorporados em anéis ou vendidos separadamente. Outras ofertas incluíam pulseiras, mandíbulas de viola-de-espinhos e alguns peixes inteiros preparados por taxidermistas. Dois terços dos anúncios apareceram em plataformas de comércio electrónico, como a Lazada e a Shopee, e o restante terço no Facebook Marketplace.
Quase todos os vendedores estavam sediados na Tailândia, e os restantes estavam espalhados pelos EUA, Itália, Taiwan, Austrália, Reino Unido e Canadá.
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Veterinários fazem uma autópsia a Rosey, uma fêmea de raia-viola-de-espinhos que foi salva, mas morreu posteriormente na sala de operações do Veterinary Medical Aquatic Animals Research Center, na Universidade de Chulalongkorn, em Banguecoque. Por vezes, as traineiras capturam acidentalmente estes peixes de fundo.
O comércio internacional de produtos à base de viola-de-espinhos foi regulado em 2019, ao abrigo da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), que exige que todos os envios transfronteiriços sejam registados pelas autoridades. O comércio só é permitido se não afectar a sobrevivência da espécie – um requisito difícil de cumprir, uma vez que a extensão total deste comércio ainda é desconhecida.
O tráfico de vida selvagem online explodiu nas últimas décadas. E não ocorre apenas na dark web: espécies ameaçadas de grande valor comercial são anunciadas abertamente nas redes sociais e em sites de comércio electrónico. (Em contraste, a maioria dos anúncios na dark web são de espécies que podem ser usadas como droga, nomeadamente plantas e cogumelos alucinogénicos.)
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Juvenis de raia-viola-de-espinhos são preparados para um leilão na província de Ranong. O mercado de espinhos é, provavelmente, derivado do mercado mais lucrativo das barbatanas.
“É inquietante ver que existe um comércio organizado para uma espécie que já está em declínio”, diz Matthew McDavitt, membro do conselho da Sawfish Conservation Society, que alertou Pytka e os seus supervisores para a existência de jóias à base de espinhos de viola-de-espinhos.
Quem move o negócio
Os espinhos de viola-de-espinhos têm importância cultural para o budismo, a religião predominante na Tailândia. Transformados em anéis, crê-se que protegem quem os usa de águas perigosas e outras ameaças. Alguns espinhos têm o Garuda esculpido – um símbolo budista de protecção.
O mercado dos espinhos é, provavelmente, derivado do comércio global mais lucrativo das barbatanas – e as das raias semelhantes a tubarões são particularmente procuradas. “Os habitantes das aldeias mais remotas estão atentos a estes animais devido ao valor das suas barbatanas”, diz Luke Warwick, director de conservação de tubarões e raias da organização sem fins lucrativos Wildlife Conservation Society. A procura por espinhos de viola-de-espinhos é muito preocupante porque “os espinhos conferem um valor adicional à cabeça da espécie – literalmente”.
A história é semelhante à dos peixes-serra, parentes próximos da viola-de-espinhos, que foram caçados quase até à extinção devido às suas barbatanas. Há centenas de anos que existe um mercado secundário das “serras” repletas de dentes do animal, que se crê afastarem os demónios, no Sudeste Asiático, diz McDavitt.
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Os espinhos, que crescem ao longo de uma crista sobre o olho da raia-viola-de-espinhos são cortados num local de atracagem costeiro em Ranong, uma província do sul da Tailândia.
Com os números de viola-de-espinhos a descerem a pique na Tailândia, os vendedores estão a obter espinhos noutros locais. Pytka diz que tomou conhecimento da extracção de espinhos na Indonésia, na Malásia e no Myanmar. Segundo as entrevistas que fez a comerciantes, os trabalhadores atravessam a fronteira tailandesa com espinhos nos bolsos.
‘Uma quebra na aplicação da lei’
Em 2018, a Tailândia atribuiu protecção total à raia-viola-de-espinhos ao abrigo da lei Wild Animal Preservation and Protection Act. Todas as peças de joalharia existentes tinham de ser registadas junto do Departamento das Pescas e foi proibido o fabrico de novas peças. As peças registadas poderiam ser comercializadas depois de Novembro de 2018, mas só em território tailandês.
Segundo a WildAid, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para reduzir o comércio ilícito de vida selvagem, foram registados mais de 10.000 produtos à base de viola-de-espinhos junto do Departamento das Pescas em 2018. Não há registos de importação de produtos à base viola-de-espinhos para a Tailândia desde 2019, segundo uma análise à base de dados da CITES efectuada pela National Geographic.
No entanto, diz Pitka, “existe, definitivamente, algum comércio na Tailândia que é absolutamente ilegal ao abrigo da sua legislação”.
O cumprimento das regras comerciais é escasso nos mercados online. No estudo realizado por Pytka, a maioria dos anúncios fora publicado após a restrição de Novembro de 2018, mas só 36 por cento tinha o registo obrigatório. Um quarto dos vendedores disseram explicitamente que a peça não estava registada, numa clara violação da lei tailandesa. (A sua investigação não incluiu grupos privados ou contrapropagandas sem fotografias ou descrição do produto.)
“O facto de os espinhos estarem publicamente disponíveis e de nem todos estarem registados indica uma quebra na aplicação da lei em algum ponto”, diz Pytka.
Alguns vendedores de espinhos também anunciavam produtos à base de outras espécies de destaque sob protecção do CITES, como tigres, elefantes, ursos, cavalos-marinhos e pau-santo.
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Uma pele seca com cristas de espinhos intactas exposta entre produtos à base de viola-de-espinhos à venda numa loja de recordações em Krabi.
O Departamento das Pescas não respondeu ao pedido de comentários da National Geographic.
Combater o tráfico online de vida selvagem
Em 2018, um grupo de empresas tecnológicas lançou a iniciativa Coalition to End Wildlife Trafficking Online, com o objectivo de reduzir o comércio ilícito de vida selvagem em 80 por cento até 2020. Em vez disso, segundo um relatório da organização sem fins lucrativos Alliance to Counter Crime Online, as vendas aumentaram no Facebook durante esse período.
Antes disso, o Facebook dissera à National Geographic que tem políticas e especificações que “proíbem anúncios e conteúdos que tentem comercializar, vender ou comprar animais em perigo”.
No entanto, os produtos à base de viola-de-espinhos continuam disponíveis online. “Tenho a certeza de que poderia ir ao Facebook neste instante e comprar algumas centenas de espinhos”, diz Pytka.
A Shopee e a Lazada não responderam ao pedido de comentários da National Geographic.
As empresas tecnológicas poderiam automatizar o rastreio de anúncios online de espinhos de viola-de-espinhos, que se distinguem visualmente e são fáceis de identificar, diz Pytka, acrescentando que isto poderia contribuir para estabelecer cadeias de fornecimento ilícitas e encontrar pontos fracos na aplicação da lei.
As alfândegas e outras agências governamentais precisam de ser consciencializadas para o comércio de espinhos – e rapidamente, diz Warwick. “Foram treinadas para identificar barbatanas de tubarão e estão à procura delas. Mas ninguém está à procura destes espinhos. Espero que não seja demasiado tarde para a raia-viola-de-espinhos. Ela não consegue suportar mais pressão”.
SIRACHAI ARUNRUGSTICHAI
Os vendedores têm de apresentar prova do registo de todos os produtos à base de viola-de-espinhos, como estes anéis à venda numa loja em Phuket, na Tailândia, mas o cumprimento da lei varia consideravelmente. Segundo um novo estudo, muitas vendas são ilegais.
Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.