O número de casos de COVID -19 alastrava à velocidade do fogo quando outra má notícia chegou inesperadamente da Guiné-Bissau. Primeiro às centenas e depois aos milhares, os abutres-de-capuz ou jagudis, como são localmente conhecidos, estavam a aparecer mortos.

Aquele país é um importante reduto da espécie e a tragédia era um rude golpe para uma população fragilizada. Num dos últimos voos que saíram do país antes do confinamento, foram enviadas algumas carcaças para análise na Universidade de Lisboa. O resultado apontou para um envenenamento por Methiocarb, um insecticida desenvolvido na década de 1960 e hoje interdito na Europa. Pensa-se que o episódio terá sido provocado por uma tentativa de controlar cães assilvestrados. O veneno terá sido deixado em lixeiras onde os abutres também se alimentam. Nunca fora documentado um episódio desta magnitude, mas este final funesto não afecta só os abutres em África.

Chamamos abutres às 23 espécies de aves de rapina cuja dieta é essencialmente necrófaga, embora filogeneticamente as que estão presentes no Novo Mundo sejam muito diferentes das que habitam do lado de cá do Atlântico. Na Europa, residem quatro espécies distintas que historicamente estavam presentes em Portugal. No fim do século XX, porém, sobravam apenas duas.

ABUTRES PENALIZADOS

Em 2018, um artigo assinado por ornitólogos portugueses e espanhóis tornou-se viral. Mostrava como um grupo de 60 grifos e 11 abutres-negros marcados em Espanha com transmissores com GPS evitava activamente o território português. A principal explicação avançada para este padrão de distribuição prendia-se com diferentes regras na gestão do gado morto depois do surto de encefalopatia espongiforme bovina (comummente conhecida como "doença das vacas loucas").

Em teoria, as autoridades portuguesas mostravam-se mais eficazes a descartar os animais mortos para evitar o contágio, mas, em contrapartida, penalizavam os abutres. Como espécie nidificante, o abutre-negro extinguiu-se na década de 1970. Os registos arqueológicos confirmam a presença de quebra-ossos em várias regiões e recentemente foi possível confirmar que há 29.000 anos existiam na região de Leiria.

No Museu de História Natural de Coimbra, também se pode ver um macho e uma fêmea da colecção do rei Dom Carlos, abatidos no Guadiana em Junho de 1888. Na sua documentação, o monarca aludia a testemunhos de que a espécie poderia ainda estar presente noutras regiões montanhosas como o Gerês, o Marão e até Monchique. Não sabemos quando se terá extinguido, mas os pioneiros da ornitologia moderna no início do século XX já não fizeram referência à sua presença em território nacional e é provável que a regressão tenha precedido a chegada de venenos poderosos, como a estricnina, que teve um efeito devastador em muitas espécies.

A diminuição das populações destas aves não resulta apenas dos venenos usados para controlar predadores por parte de gestores cinegéticos ou produtores pecuários sem escrúpulos. A diminuição do número de grandes herbívoros reduziu o alimento disponível. O biólogo Carlos Pacheco, que integra uma equipa de investigadores do CIBIO, ainda se recorda de ouvir na zona raiana os mais velhos contarem que, em alturas de crise, havia quem pilhasse os ninhos de abutres para se alimentar. O biólogo lembra ainda estratégias de conservação que tiveram de ser afinadas. Inicialmente, os alimentadores de abutres descarregavam sobras dos matadouros em grandes quantidades e em dias fixos, criando rotinas perniciosas nos abutres e favorecendo os grifos em detrimento dos ameaçados abutres-negros e abutres do Egipto. “Hoje, sabemos que temos de dispensar menos alimento, mais disperso e sem cumprir um calendário regular que desencoraje os abutres de procurar alimento naturalmente”.

A RECUPERAÇÃO EM CURSO

Nos últimos anos, as populações recuperaram e os abutres-negros voltaram a nidificar em Portugal. Carlos Pacheco tem a pele queimada, indício de que acabou de regressar do campo. Trabalha com abutres desde 1997 e sabe que os transmissores de satélite dos quebra-ossos libertados na Andaluzia comprovam que eles já entraram diversas vezes em território nacional. Alguns observadores até já tiveram a sorte de os ver e fotografar. No final de 2022, iniciou-se o Projecto LIFE “Corredores Ibéricos para o Quebra-ossos”. Quando se pergunta a Calos Pacheco se está ansioso por ver um em Portugal, o biólogo sorri de orelha a orelha e responde: “Vou estar atento.”

Artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2023 da revista National Geographic.