Com um papel relevante na história da humanidade, o cavalo foi utilizado desde cedo em variadíssimas actividades, quer como animal de carga, quer como meio de transporte ou até de guerra
O antepassado longínquo de todos os cavalos domésticos, ou seja, o primeiro representante do género Equus, terá surgido no continente americano, atravessando entre o Pliocénico tardio e o Pleistocénico o estreito de Bering (Beríngia) rumo à massa euroasiática e daí espalhando-se por todo o Velho Mundo. Um estudo de 2021 publicado na revista Molecular Ecology, tendo como base a análise de DNA antigo de fósseis de cavalos encontrados nos territórios norte-americano e euroasiático, revela inclusive movimentações nos dois sentidos. 

Curiosamente, o Equus vir-se-ia a extinguir na sua zona de origem, só voltando a lá existir trazido pelos europeus após a chegada de Cristóvão Colombo ao chamado Novo Mundo.

Entretanto, um dos ramos dos seus descendentes espalhou-se e diversificou-se pela Eurásia, dando origem aos animais que seriam, mais tarde domados e domesticados nas estepes da Ásia Central

Só chegaram ao século XX duas subespécies de cavalo verdadeiramente selvagem – o Tarpã (Equus ferus ferus), visto pela última vez em 1909 e que sabemos que estava já em fase de domesticação, e o Cavalo de Przewalski (Equus ferus przewalskii) que, ainda que raro, resiste nas estepes da Mongólia.

Na Península Ibérica, os primeiros registos fósseis de cavalos selvagens dão-se há cerca de 2 milhões de anos, registos que persistem ininterruptamente até durante o Mesolítico, altura em que os cavalos europeus se extinguem a Norte dos Pirinéus.

Representados com um aspecto muito próximo do moderno, inclusive em pinturas rupestres de há cerca de 20 mil anos, os cavalos selvagens (assim como outro equídeo, o misterioso zebro) parecem ter estado presentes na Península desde muito antes da presença humana. Os sucessivos movimentos de colonização humana na Península farão, no entanto, com que os nosso antepassados tenham trazido com eles os próprios cavalos, que se vão até certo ponto misturar com os cavalos já presentes. Existem actualmente três raças autóctones de cavalos em Portugal: os Garranos, os Sorraias e os Puro Sangue Lusitanos (estes dois últimos com ascendentes comuns).

O Puro Sangue Lusitano

No período romano, os cavalos ibéricos já eram conhecidos como sendo de excelência, tendo Xenofonte, no seu “Da Equitação” elogiado os ditos, assim como os guerreiros que os cavalgavam. Segundo a Associação Nacional de Criadores do Puro Sangue Lusitano, deram inclusive origem aos mitos gregos dos centauros e à lenda de que eram fruto da inseminação de éguas selvagens pelo vento.

Uma coisa é certa: há evidência de que vários povos de presença pré-romana na Península, como os Celtas/Celtiberos ou os Fenícios, já reconheciam e apreciavam a qualidade dos cavalos aqui existentes, e os capturavam e cruzavam com os seus próprios para obter animais superiores. Deste stock, surge o Puro Sangue Lusitano, um cavalo adaptado ao uso de estribos curtos e seleccionado não só para o combate, mas também para a caça, para o toureio ou para o manejo de gado, tudo actividades tradicionais de grande valor na Península Ibérica.

Fisicamente, o Puro Sangue Lusitano apresenta tipicamente uma só cor, sendo mais comum o "ruço" ( acizentado) ou de tons de castanho, embora também haja alguns negros. Os cavalos desta raça têm cerca de 1,6 metros de altura, no geral, com cabeças finas e bem proporcionadas, de perfil ligeiramente convexo. São equídeos poderosos, mas ágeis, com peitos largos e costas curtas e fortes e pescoços grossos e arqueados. Em termos de temperamento, são inteligentes e obedientes.

Serão os Puro Sangue Lusitano modernos descendentes dos cavalos tão prezados na antiguidade?

Tudo indica que sim: vários estudos levados a cabo por diferentes entidades apontam nesse sentido. Não só estes cavalos apresentam uma diversidade genética maior do que seria de esperar se fossem somente parte dos stocks da Europa Central, como apresentam vários haplotipos (variantes genéticas que tendem a ser herdadas em conjunto) únicos nas populações estudadas (com, por vezes, excepção das populações modernas norte-americanas, das quais sabemos terem sido parte do stock que lhes deu origem), o que indicia uma origem distinta dos demais. Além disso, algumas amostras do Neolítico revelam a presença de haplotipos que hoje só são encontrados nestas raças.

Alter Real Cavalo Lusitano Portalegre
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Alter do Chão, Portalegre, Portugal. Égua prenhe da raça Sorraia na Coudelaria de Alter, onde existe um programa de preservação desta raça rara e ancestral. Nesta Coudelaria (semi-estatal) são criados sobretudo cavalos de raça Lusitana, tendo um deles chegado ao nível olímpico em 2012 na disciplina de dressage em Londres. Na Coudelaria de Alter são criados os cavalos utilizados pela Escola Portuguesa de Arte Equestre. 

É por vezes posta também a hipótese que outra raça autóctone de cavalo, o Sorraia, que apresenta algumas características primitivas, possa ser um dos ancestrais do Puro Sangue Lusitano. No entanto, a comparação do património genético de ambos não nos dá provas conclusivas neste sentido. Embora haja claramente uma ligação, esta é algo ténue e pode provavelmente ser rastreada à Idade Média, sendo também que os Sorraia sofreram um bottleneck genético (fenómeno em que a população se reduz significativamente, levando a perda de diversidade genética e a uma origem comum das gerações subsequentes a partir de um grupo reduzido) recente que torna esta ligação ainda mais difícil de demonstrar.
Assim, parece razoável ter como confirmada a origem dos Puro Sangue ibéricos parcialmente nas raças ibéricas ancestrais, sendo assim descendentes directos de um dos primeiros cavalos de sela – João Costa Ferreira alega que é o primeiro – de que existe confirmação histórica.

Uma História Conturbada

A jornada dos Puro Sangue Lusitanos até aos dias de hoje não foi no entanto fácil. Apesar de muito prezados ao longo da história, e de terem inclusive sido alvo de tratamento especial pela coroa portuguesa, com a fundação em 1748 da Coudelaria Real de Alter do Chão (que ainda hoje é responsável pela manutenção de um das linhagens mais valorizadas) com o objectivo de manter e aperfeiçoar a raça, houve escolhos no caminho destes animais até à modernidade. Não só é alvo de cruzamentos no século XIX e no princípio do século XX que visam sucessivamente produzir cavalos para fins que não os tradicionalmente atribuídos ao Puro Sangue, acabando assim por introduzir um maior poderio nestes cavalos à custa da agilidade que os caracteriza, como eventos políticos externos chegam a pôr em causa a manutenção da Coudelaria, cuja tutela é transferida sucessivamente de um organismo para outro, e de outros stocks deste cavalo. 

 

Artigo corrigido no dia 28 de Julho às 14h18.