“Assilvestrado”, ou “feral”, é um termo complexo, já que a maioria das pessoas o ouviu associado a animais que não são domésticos, mas também não são selvagens. O que é, então, um animal assilvestrado?

É um animal que vive em estado selvagem, “mas descende de um antepassado domesticado”, diz Kayce Bell, curadora-adjunta de mamologia no Museu de História Natural de Los Angeles. O tempo que passaram domesticados, que pode incluir gerações de criação selectiva e cuidados humanos, geralmente como animais de companhia ou gado, é “a única coisa que os distingue das criaturas selvagens”, afirma.

O termo “assilvestrado” é, por vezes, considerado pejorativo, como se o animal tivesse fracassado ou rejeitado a domesticação. Os animais assilvestrados são ocasionalmente denominados selvagens “porque, tecnicamente, são animais selvagens e vivem em liberdade”, diz Bell. A designação que se deve atribuir a animais específicos é tema de debate.

Os gatos domésticos são um bom exemplo. Um gato assilvestrado é um gato doméstico que não nasceu sob custódia humana e vive automaticamente em liberdade, enquanto os gatos vadios tiveram em tempos cuidados humanos e não estão habituados a viver em estado selvagem. Os gatos que vivem em comunidades são vadios ou assilvestrados e podem ter uma pessoa que os alimenta, mas não um dono. Os gatos domésticos têm uma casa humana, mas podem passar algum tempo fora de portas.

Independentemente da designação, os gatos que frequentam o exterior matam um número estimado entre mil e 4.000 milhões de aves por ano nos Estados Unidos da América (EUA). É por isso que a Associação Americana para a Protecção dos Animais defende a captura e a esterilização antes de se devolver ao local de origem os gatos que vivem em liberdade, para controlo das suas populações.

Pombos e papagaios

Os numerosos pombos que vivem nas cidades de todo o mundo são assilvestrados, descendentes do pombo das rochas, que é mantido sob cuidados humanos há 10.000 anos. Historicamente, as pessoas utilizavam as aves como fonte de alimento ou como animais de corrida e mensageiros; 32 até receberam medalhas por serviços militares prestados na Segunda Guerra Mundial.

Os pombos das rochas domesticados que escaparam ou foram libertados acharam as cidades muito confortáveis, sobretudo porque os edifícios, com todos os seus nichos e parapeitos, são semelhantes às vertentes rochosas onde os seus antepassados selvagens viviam, diz Bell.

Os pombos são considerados uma espécie incómoda porque desfiguram as propriedades com os seus abundantes excrementos e podem disseminar parasitas e contagiar outras aves com doenças, embora a transmissão seja considerada de baixo risco. Também podem ser benéficos para o ecossistema, sobretudo para presas como o falcão peregrino, em tempos ameaçado.

O que significa “domesticado”?

Para aumentar a confusão, vamos até à Florida.

O chamado “Estado do Brilho do Sol” é o lar de inúmeras espécies invasoras, incluindo uma população crescente de pitões-da-Birmânia que vivem nos Everglades, a maioria das quais descendentes de répteis de estimação que escaparam ou foram libertadas na natureza em tempos tão distantes como o início do século XX, diz Jacquelyn Guzy, ecologista do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) e autora principal de um novo relatório do USGS sobre os transplantes de serpentes para a Florida.

Apesar de descenderem de animais de estimação, Guzy diz que no caso da Florida as pitões da Birmânia não são consideradas assilvestradas.

“Uma espécie pode ser simultaneamente assilvestrada e invasora, como os porcos assilvestrados”, esclarece Guzy via email. A partir do início do século XVI, exploradores e colonos europeus trouxeram javalis, Sus scrofa, para o Novo Mundo em diversas ocasiões, como gado ou como animais para serem caçados por desporto ou para fins alimentares. O governo norte-americano refere-se actualmente a estes animais como porcos assilvestrados.

As espécies invasoras são animais ou plantas não-nativos, por vezes introduzidos por pessoas, que causam danos ambientais, económicos ou em propriedades. Embora as pitões da Birmânia tenham provocado um caos ecológico, Guzy “não considero[a] as pitões da Birmânia assilvestradas”, porque na verdade nunca foram domesticadas.

A domesticação é “um processo de anos e anos de selecção artificial realizado pelos seres humanos e não a selecção natural que ocorre na natureza, diz Kate Schoenecker, bióloga especializada em vida selvagem do USGS. À semelhança do que sucede com cães, galinhas ou vacas, as pessoas criam animais para influenciar o seu aspecto e comportamento.

Os animais domesticados e as pessoas têm frequentemente uma relação mútua, acrescenta Guzy. Se der comida e abrigo a galinhas no seu quintal, por exemplo, elas dar-lhe-ão ovos grátis em troca.

“Em geral, as cobras não precisam, nem procuram esse tipo de relação com os seres humanos”, diz.

“Nascido selvagem é selvagem”

Os cavalos e os burros que vivem em terras federais dos EUA estão protegidos pela Lei de Cavalos e Burros Selvagens e Assilvestrados  de 1971. São denominados selvagens porque foi esse o termo utilizado no texto legislativo e não por o serem de facto, explica Schoenecker, ela própria fã de cavalos.

Sendo descendentes de animais domésticos trazidos por colonos europeus há centenas de anos, o termo aplicável é assilvestrado, afirma.

Porém, nem todos concordam.

“Nascido selvagem é selvagem”, diz Suzanne Roy, directora executiva da American Wild Horse Campaign, uma organização sem fins lucrativos que desenvolve esforços para mudar algumas das práticas actuais da gestão de cavalos, incluindo ajuntamentos para captura com apoio de meios aéreos em terras públicas. “Há gerações que isto acontece.”

Para complicar ainda mais a situação, os equídeos evoluíram na América do Norte, há entre 59 e 34 milhões de anos, antes de atravessarem a Ponte Terrestre de Bering para a Ásia. Os equídeos norte-americanos extinguiram-se na América do Norte no Paleolítico, juntamente com os felinos dentes de sabre e os mamutes.

Uma análise de fósseis realizada em 2021 demonstrou evidências de interacções genéticas entre cavalos extintos da América do Norte e cavalos de Eurásia, o que significa que os animais atravessaram diversas vezes a ponte terrestre e acasalaram entre si ao longo de centenas de milhares de anos. No século XV, os colonos europeus começaram a trazer cavalos domesticados para a América do Norte.

Por essa razão, alguns cientistas preferem o termo “reintroduzidos” quando se referem aos cavalos que vivem em liberdade nos EUA. 

 

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