Cigarra. Chicharra. Sars soura. Tyiab Llanab. Bourjois. Estes são apenas alguns dos nomes dados a estes pequenos insectos conhecidos por animar os Verões do Mediterrâneo, até porque o Verão só começa realmente depois de a primeira cigarra cantar.

Existem mais de três mil espécies de cigarras espalhadas pelo planeta, com formas e dimensões que vão desde a enorme Pomponia imperatoria, que habita no Sudeste Asiático e que pode medir 20 centímetros de envergadura, até à portuguesa e muito ameaçada Euryphara contentei que cabe na ponta de um dedo mindinho. Só o macho da cigarra canta, fazendo da sua performance musical a melhor estratégia para atrair a atenção das fêmeas. Na verdade, o som inconfundível é produzido com recurso a um conjunto de membranas no abdómen do macho — os tímbalos. Cada cigarra tem uma canção única e é inegável a sua presença no imaginário colectivo, expresso em provérbios populares, fábulas ou como fonte de inspiração para obras artísticas.

Curiosamente, apesar da sua conspíqua canção, do seu mimetismo e da sua capacidade de interromper a sinfonia quando uma ameaça potencial se aproxima, milhões de pessoas conseguem ouvi-las, mas poucos as viram ou lograram identificar cada espécime. Com o desejo de registar, analisar e transmitir este legado de património natural, musical e etnográfico à ciência e ao público, nasceu o Grupo das Cigarras da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Na sequência de algumas incursões exploratórias a Marrocos, as canções gravadas pelo grupo revelaram que, na outra margem do estreito de Gibraltar, as canções eram, no mínimo, curiosas…

 

ouvir, conhecer, DESCREVER

O conhecimento de cigarras marroquinas era quase inexistente e alicerçava-se num punhado de descrições antigas, sem registo e descrição dos seus cantos únicos. Em teoria, a extraordinária diversidade de habitats em Marrocos deveria poder albergar mais espécies de cigarras do que as conhecidas e foi com esta teimosia científica que, em 2017, se descreveram duas novas espécies de cigarras para Marrocos. Posteriormente, com o apoio da National Geographic Society, lançou-se o projecto “The Final Cries of The Unheard Moroccan Cicadas” que serviu de base para o doutoramento do autor. A proposta da investigação era simples, mas extraordinariamente ambiciosa: descrever e listar todas as cigarras marroquinas e atribuir-lhes estatutos de conservação adequados. Para o projecto chegar a bom porto, seria também necessário estreitar laços com investigadores marroquinos, guardas-florestais e decisores locais.

Tatiana Moreira
TERESA PAMPLONA

Os ouvidos treinados e a mão ágil de Tatiana Moreira, membro da equipa de campo do projecto, são essenciais para capturar estes ágeis e discretos insectos.

Em Junho de 2022, com o apoio do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da Faculdade de Ciências de Lisboa, uma equipa partiu para o Norte de África munida de redes entomológicas e gravadores para explorar o território. A missão trouxe desafios inesperados que incluíram a deportação de uma bióloga, a pior seca em muitos anos, uma grande emergência médica e perseguições por traficantes, mas nem tudo foram espinhos e em breve novas espécies de cigarras serão formalmente descritas e as suas canções, antes conhecidas de poucos, poderão ser escutadas por todos.

Cada nova espécie descrita ajuda a contar uma longa história com milhões de anos de evolução. A Tettigettalna afroamissa é uma das duas espécies descobertas em 2017, cujo nome significa “a perdida em África”. É a única cigarra africana de um género que se pensava ocorrer exclusivamente na Europa. Foi a ajuda da informação codificada no DNA desta cigarra e da relação dela com as suas congéneres que permitiu chegar a esta descoberta. 

Muitas espécies passam anos debaixo da terra como ninfas, alimentando-se de raízes e, numa noite quente de Verão, emergem do solo, largam a pele antiga e ganham asas durante escassas semanas. 

Entre dois continentes

O ancestral desta espécie terá vivido durante o Messiniano, altura em que o mar Mediterrâneo esteve quase seco e formaram-se extensas pontes de terra entre a Europa e África, permitindo o fluxo de fauna e flora entre os dois continentes. De súbito, há cerca de 5,3 milhões de anos, o oceano Atlântico irrompeu entre Gibraltar e Ceuta, deixando a T. afroamissa isolada em África e separada das suas irmãs na Europa, não havendo evidências genéticas de reencontros posteriores.

Infelizmente, estas fascinantes histórias de evolução e sobrevivência poderão ser apenas notas de rodapé da história, num futuro que parece cada vez mais dramático. Os insectos estão a desaparecer a uma velocidade alucinante. É difícil identificar uma única causa. As mudanças no uso do solo e da paisagem, a industrialização da agricultura e o uso de pesticidas, bem como as alterações climáticas, têm vindo a modificar equilíbrios delicados. Um terço das espécies de insectos estão ameaçados e as cigarras não são imunes a esta tendência. É por isso urgente saber o que está a perder-se e como estão elas a reagir a um mundo em vertiginosa mudança para se poder reverter ou no mínimo abrandar esta tragédia com implicações… bíblicas. Afinal o castigo não é uma praga de gafanhotos, mas sim o desaparecimento de muitos insectos.

A ECOLOGIA DAS CIGARRAS 

A ecologia das cigarras é complexa e isso não facilita o seu estudo. Muitas espécies passam anos debaixo de terra como ninfas, alimentando-se de raízes e, numa noite quente de Verão, emergem do solo, largam a pele antiga e ganham asas durante escassas semanas. Quase todo o nosso conhecimento sobre cigarras advém destes breves e fugazes momentos acima do solo, tornando o resto da sua vida um mistério à espera de ser revelado. Mesmo estando no local e na estação certa, um investigador pode falhar a emergência das cigarras, já que estas podem permanecer no subsolo quando as condições climáticas não são as ideais. O estudo das cigarras pode ser uma verdadeira penitência.

A proposta da investigação era simples, mas extraordinariamente ambiciosa: descrever e listar todas as cigarras marroquinas e atribuir-lhes estatutos de conservação adequados.

 Em Marrocos, há espécies  de cigarras que só vivem em pradarias, outras preferem arbustos e outras ainda só cantam nos cedros mais altos do Médio Atlas. Todos estes habitats estão a ser severamente afectados por processos de desertificação. Este é um país na linha da frente das alterações climáticas e o ano de 2022 foi o mais seco em três décadas. O Saara expande-se cada vez mais para norte. Ironicamente, a maior ameaça para as cigarras não parece ser o apocalipse climático, mas sim as simpáticas ovelhas que comem o coberto vegetal e as cabras que, empoleiradas em árvores raquíticas à procura dos últimos vestígios de clorofila, se tornaram uma atracção turística. Nas montanhas do Atlas, os rebanhos limpam a parca vegetação herbácea que sobrevive a um clima cada vez mais seco e quente, acelerando a erosão do solo.

Se uma cigarra se extinguir e ninguém estiver lá para ouvir o silêncio, será que ela realmente existiu? 

Uma alimentação limitada

As cigarras que necessitam das raízes como sustento podem ver as suas vidas encurtadas, e as poucas que chegam a adultas cantam numa paisagem sem vegetação ao som dos badalos dos rebanhos. Uma solução de emergência pode passar pela criação de micro-reservas, pequenas zonas cercadas que impeçam a entrada do gado, protegendo plantas, cigarras e toda a comunidade de animais. Contudo, o sucesso das mesmas depende da articulação da comunicação entre todas as partes interessadas, desde os pastores aos decisores locais. Além das descobertas científicas, o contacto com os locais tornou-se uma ajuda preciosa. Existe potencial para usar a ciência colaborativa e cidadã no mapeamento das cigarras de Marrocos. A premissa é simples, requerendo apenas um smartphone para gravar a canção da cigarra e o ponto GPS inseridos numa plataforma como o iNaturalist. Com este conhecimento, pretende-se criar um guia das cigarras de Marrocos, publicado em francês, árabe e amazigh para ser entregue aos locais, tornando-os também embaixadores na protecção das cigarras. Se uma cigarra se extinguir e ninguém estiver lá para ouvir o silêncio, será que ela realmente existiu?

 

Artigo publicado originalmente na rubrica "Grande Angular" da edição de Julho de 2023 da revista National Geographic.