A erupção dos cabrestante deixou pela primeira vez o magma em contacto directo com a atmosfera há cerca de seis milhões de anos. A ilha de Santa Maria foi a primeira do arquipélago dos Açores a emergir das águas do Atlântico e, com ela, emergiram também os primórdios do complexo de habitats que constituem hoje os seus 97 quilómetros quadrados. Santa Maria e uma ilha-irmã, hoje submersa a 450 metros de profundidade, 50 quilómetros para oeste da ilha das Flores, estavam na altura muito mais próximas e poderão ter servido de plataforma terrestre à expansão territorial de algumas espécies da Europa pré-glaciar. Mas a estrada da evolução tem bifurcações contínuas e esta história é um pouco mais complicada.
Estudos vulcanológicos confirmam que Santa Maria esteve submersa durante um longo período e só rasgou de novo as águas do Atlântico há cerca de 3,5 milhões de anos. A silhueta de uma ilha acabada de emergir, com um corpo de fauna e flora ainda embrionário, é particularmente sugestiva, sobretudo quando confrontada com a imagem exuberante que hoje temos da biodiversidade dos Açores. Para o biólogo António Frias Martins, especialista em malacologia da Universidade dos Açores e um dos últimos investigadores açorianos que começaram a carreira antes da fundação da própria universidade, houve um problema científico que o intrigou ao longo de toda a vida: como chegaram as primeiras espécies terrestres ao arquipélago? O caso de sucesso dos caracóis é particularmente rico e diversificado. A colonização malacológica dos Açores terá ocorrido em duas fases distintas.
Pepe Brix
Nas saídas de campo, as amostras são cuidadosamente guardadas. Em caso de dúvida sobre a identificação das espécies, os exemplares vivos são levados para laboratório e, em casos complexos, submetidos a análise genética.
O seu início remonta ao ressurgimento da ilha de Santa Maria, há 3,5 milhões de anos, num processo lento de introdução natural, dominado pelos ventos e correntes marítimas. Frias Martins propõe que estes pequenos viajantes poderão ter chegado agarrados a folhas secas sopradas pelo vento, entrelaçadas nas penas de aves migratórias ou à boleia de materiais à deriva. As hipóteses, aliás, não são exclusivas.
O muco espesso produzido por algumas espécies de dimensões mais pequenas pode ter permitido também que sobrevivessem mesmo quando ingeridas por aves. Envoltos nesse muco, os caracóis atravessariam todo o sistema digestivo das aves e seriam depois expelidos nas fezes, alargando assim a estreita possbilidade de colonização insular. “Bastava que em cada mil anos uma espécie assim transportada se estabelecesse nas ilhas para que se pudesse explicar toda a variedade de hoje”, diz o biólogo. “Se se considerassem apenas as espécies autóctones, este espaço temporal seria muito mais dilatado.” Depois, já em época histórica, a descoberta da ilha de Santa Maria em 1427, por Diogo de Silves, e a sua posterior colonização por Gonçalo Velho Cabral, deve ter desencadeado uma segunda vaga, mais repentina e acelerada, de introdução de novas espécies.
Uma saída de campo pelo mato do Pico Alto serve de introdução a esta história de resistência e adaptação. Hoje, a vegetação é dominada por espécies exóticas como a criptoméria e o incenso, mas nem sempre foi assim. É preciso activar a imaginação, recuperar a leitura das obras clássicas de descrição da colonização e… sobretudo agarrar a lupa. Estes caracóis endémicos, cujas dimensões variam entre menos de 1 milímetro e 1,9 centímetros, não são fáceis de encontrar pelos olhos menos treinados e, quem sabe, talvez essa dimensão menos conspícua os tenha protegido. Foram identificadas até hoje 112 espécies de malacofauna terrestre e de água doce no território açoriano. Destas, 50 são endémicas, pelo que só são encontradas no arquipélago dos Açores. Nenhum outro grupo animal ou vegetal possui uma percentagem tão elevada de espécies tipicamente açorianas e, no entanto, em meados do século XX, esta diversidade incrível era quase ignorada. Há um prólogo relevante na grande narrativa dos caracóis açorianos.
Foram identificadas até hoje 112 espécies de malacofauna terrestre e de água doce no território açoriano.
Em 1857, o ano em que Darwin estudava seriamente a implicação da sua teoria da evolução para a história dos humanos, dois naturalistas franceses desembarcaram nos Açores. Henry Drouet e Arthur Morelet carregavam em si as esperanças de uma nova ciência. Na sua longa viagem pelos Açores, dedicaram uma semana a Santa Maria. Eram pioneiros em terreno bravio. Visitaram depósitos de fósseis e ficaram espantados com caracóis terrestes (vivos e fossilizados) que se apressaram a descrever. Morelet, inclusivamente, desenhou um espectacular fóssil de Helix vetusta que ainda intriga os cientistas, pois não existem certezas sobre o lugar específico da ilha onde foi colhido. Os naturalistas seguiram depois para Lisboa, onde apresentaram a Dom Pedro V os resultados das suas campanhas. Outros naturalistas dedicaram depois atenção esporádica ao tema, mas o verdadeiro impulso foi conferido na segunda metade do século XX. Os estudos publicados ao longo das últimas décadas sobre estes pequenos moluscos permitem hoje perceber, numa janela temporal de mais de 50 anos, as tendências populacionais das várias espécies em todo o arquipélago dos Açores. A mais antiga amostra desta vasta colecção de moluscos guardada no campus da Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, foi recolhida por Frias Martins em 1967, nove anos antes da fundação da própria universidade. Foi este investigador que descreveu e publicou a maioria das espécies conhecidas, incluindo uma que – em jeito de piscadela de olhos entre naturalistas açorianos – designou com o nome de Oxychilus (Drouetia) furtadoi, em homenagem ao célebre naturalista Arruda Furtado, que se correspondeu com Charles Darwin.
Pepe Brix
Esta impresssionante colecção abrange um espectro de mais de cinquenta anos de investigação malacológica, mas requer uma atenção permanente. António Frias Martins faz uma revisão aos níveis de álcool, de 70% de pureza, que garantem a devida conservação dos exemplares nos frascos.
Em comparação com os restantes arquipélagos da Macaronésia, o número de endemismos marienses é baixo, mas a idade geológica da Madeira e das Canárias é mais avançada. Em Santa Maria, a natureza apressou-se e, neste curioso cruzamento entre história natural e a história dos portugueses, a ilha contribui para a fauna malacológica açoriana com 19 endemismos intra-insulares, previsivelmente diferenciados nos últimos 3,5 milhões de anos.
Os estudos realizados e a colecção acumulada expressam o papel preponderante que estes organismos desempenham na transformação de matéria orgânica em matéria inorgânica nos solos. É, aliás, bem conhecido o seu papel na mineralização do material biológico em putrefacção, fornecendo nutrientes preciosos para as plantas.
Este catálogo de informação com cinco décadas também já fez soar sinais de alarme: algumas espécies já entraram em declínio e outras poderão mesmo já se ter extinguido, pois não são avistadas há mais de vinte anos. Durante os primeiros séculos de colonização, os mantos de floresta laurissilva foram dizimados. Essa lenha aqueceu fornos e casas durante o Inverno. Gradualmente, tal como nas restantes ilhas, a floresta autóctone foi desaparecendo da paisagem de Santa Maria, dando lugar a áreas de pastagem e a povoamentos de espécies exóticas como a criptoméria.
Neste processo de desflorestação, os pequenos moluscos foram perdendo o habitat ao qual se tinham adaptado ao longo de milhares de anos. Uma mudança tão radical como essa em tão poucos séculos ultrapassou os contornos da paisagem e desencadeou um novo espectro de alterações importantes – a água começou a faltar, o pH dos solos alterou-se. E os caracóis? Extremamente sensíveis à acidez dos solos, foram certamente afectados, e esta é “a maior ameaça à sua sobrevivência”, diz Frias Martins. “Mas não é a única.” À medida que o fluxo de transportes para a ilha acelerou, muitas outras espécies foram chegando e acabaram por ser introduzidas acidentalmente. É o caso de uma planária robusta e voraz, a Obama nungara, que terá entrado na ilha a reboque de outras espécies ou misturada em terra importada. Em pouco tempo, esta espécie sul-americana poderá tornar-se um dos maiores predadores de caracóis.
Pepe Brix
Apesar da sua rápida decomposição nos solos húmidos, as conchas vazias ajudam a equipa a obter um retrato mais amplo da distribuição de cada espécie ao longo dos anos.
Procurando proteger os habitats destes pequenos moluscos, um consórcio liderado pela Secretaria Regional do Ambiente e Alterações Climáticas iniciou em 2022 o Projecto LIFE SNAILS, um programa que procura sensibilizar para a importância dos caracóis endémicos da ilha de Santa Maria e restaurar os habitats destes moluscos na zona protegida do Pico Alto, outrora o grande núcleo dos endemismos da ilha.
Das três espécies endémicas em que o projecto se foca, a Leptaxis minor, o Oxychilus agostinhoi(também ela uma homenagem a um naturalista e cientista açoriano, o tenente-coronel José Agostinho) e a Plutonia angulosa, as duas últimas estão actualmente classificadas como criticamente ameaçadas. Com sinais de conservação mais favoráveis, a Leptaxis minor desenvolveu um comportamento curioso que a pode ter deixado a salvo das ameaças: a equipa do projecto observou que esta espécie de rara beleza, cuja espiral da concha deve as suas linhas definidas à separação das cores de fogo e um castanho esbranquiçado, expandiu o seu habitat original. Abandonando as zonas baixas do solo para ocupar zonas mais elevadas do mato, como troncos de árvores e folhas de conteira, desenvolveu uma notável adaptação que evita que os indivíduos estejam tão expostos aos predadores que se movem pelos solos húmidos do Pico Alto. Perante as ameaças do solo, trepou. A passo de caracol, mas trepou!
A única forma de avaliar o estado de conservação das populações das espécies-alvo do projecto é arregaçar mangas e desbravar o mato denso do Pico Alto. Dominado pela conteira, que nos meses de Verão inunda a floresta de um amarelo-vivo proveniente da sua flor e espalha no ar um característico cheiro doce, este corpo montanhoso de vegetação cerrada eleva-se no centro da ilha e dificulta a busca destes seres minúsculos. No mato, a equipa divide-se em diferentes grupos para que a zona de amostragem seja o mais ampla possível, concentrando os olhos no manto húmido de folhas. No decurso da busca, o som dos pássaros e do vento, que leva as copas das árvores a dançar, é interrompido pelas gargalhadas dos biólogos, sempre que Frias Martins está por perto. Aos 77 anos de idade, o biólogo nascido em Água d’Alto, na ilha de São Miguel, mantém uma paixão inspiradora pelo estudo destas pequenas criaturas da malacofauna açoriana. O seu sentido de humor refinado torna o mato denso do Pico Alto menos penoso para todos os que trabalham a seu lado. Equipado a rigor com fato de água e botas de cano, como são conhecidas as galochas no arquipélago dos Açores, é o primeiro a curvar-se e a deixar cair os joelhos no chão para começar então a minuciosa procura: desvia cuidadosamente cada folha que compõe a densa camada de matéria morta que forma o substrato e recolhe amostras.
Pepe Brix
Dinarte Teixeira e Ricardo Abreu recolhem dados importantes sobre o ambiente das capturas, registando dados como o pH, a temperatura e os níveis de humidade do solo.
Para Ricardo Abreu, gestor do projecto, a urgência é criar bolsas de floresta primordial, reduzindo gradualmente a vastidão de espécies exóticas. “Só assim se garantirão espaços de condições óptimas para que as populações de moluscos possam recuperar”, diz. A desflorestação para conquista de mais área de pastoreio é outra preocupação. Os subsídios que chegam da Europa favorecem os que vão somando mais área de pastoreio à sua exploração bovina, motivando os agricultores ao desmatamento. É por isso que os produtores de gado marienses foram chamados a fazer parte da solução para a conservação destas espécies. Para Ricardo Abreu, o próximo passo poderá passar por incentivos financeiros para que os agricultores preservem corredores de laurissilva ao longo das novas pastagens que vão sendo abertas, assegurando que não há estrangulamento dos habitats dos caracóis.
O Verão de 2023 marcou o arranque desse processo sensível de intervenção florestal e foram removidas as primeiras espécies exóticas em algumas zonas do Pico Alto para reintrodução de espécies nativas. Deu-se início a um processo longo que se espera trazer de volta um novo equilíbrio na ilha, não só para os moluscos terrestres, mas para muitas outras espécies. A ilha de Santa Maria não se limita a um somatório de quilómetros quadrados. Tal como a vida é feita de pequenos nadas, como diz a canção de Sérgio Godinho, esta ilha é do tamanho de toda a vida que guarda. A pequenez das suas criaturas ancestrais e o seu tempo lento ampliam a magia e a verdadeira dimensão da ilha. Uma ilha é também ela feita de pequenos nadas.