“Agora!”, gritou Mónica Silva, à proa. Agarrando firmemente uma arma de pressão e de olhos presos  no animal gigantesco, Rui Prieto pressiona o gatinho. 

Em milésimos de segundo, o foguete projectado pela arma embate numa baleia, fixando no seu dorso azulado um transmissor de satélite.  Os rostos felizes dos investigadores a bordo de um semi-rígido, ao largo da ilha do Pico, confirmam o sucesso da operação, mas um viajante no tempo teria dificuldade em compreender a cena jovial protagonizada pelos investigadores do Grupo de Ecologia de Cetáceos do Instituto Okeanos da Universidade dos Açores.

As baleias-azuis  são conhecidas por seguirem a chamada “onda verde” para encontrar alimento.
JOÃO RODRIGUES

As baleias-azuis são conhecidas por seguirem a chamada “onda verde” para encontrar alimento. Essa expressão refere-se à migração anual do krill, que ocorre em resposta à disponibilidade de nutrientes e fitoplâncton na água. 

 

Durante séculos, estas águas assistiram a outro tipo de confrontos com estes e outros cetáceos. Agora, porém, o disparo certeiro é comemorado sem ferir o animal. Através da implantação cutânea de dispositivos de seguimento, capazes de comunicar por satélite as coordenadas do animal sempre que este emerge à tona, os cientistas pretendem compreender melhor os padrões de migração e comportamento das baleias-azuis (Balaenoptera musculus) que visitam o arquipélago dos Açores. A informação é essencial para os esforços de protecção desta espécie ameaçada, mas primeiro é preciso dar resposta ao grande dilema associado à investigação de alto mar – por onde se movimenta a baleia-azul ao longo do ano? Ao rastrear movimentos e rotas migratórias desde 2009, a equipa de Mónica Silva tem identificado áreas críticas para a reprodução, alimentação e descanso desta e de outras baleias.

Investigadores do Grupo de Ecologia de Cetáceos do Instituto Okeanos da Universidade dos Açores têm estudado os padrões de migração das baleias-azuis ao largo dos Açores, mas também no Atlântico Nordeste Central. 

Em 2013, a equipa publicou um primeiro artigo, dando conta de uma novidade: as baleias-azuis e baleias-comuns marcadas pareciam suspender a migração de Primavera em latitudes médias do Atlântico, como se estivessem a acumular reservas de energia para o resto da viagem. Nunca a metáfora dos Açores como área de serviço do Atlântico fizera tanto sentido. Desde então, Mónica Silva e Rui Prieto, com outros investigadores, têm acumulado informação com voracidade. Em pouco mais de uma década publicaram artigos sobre movimentos, épocas do ano, destinos e comportamentos antes e durante as grandes viagens oceânicas, combinando diferentes metodologias de monitorização.

 

aLIMENTAÇÃO baleia-azul
JOÃO RODRIGUES

A baleia-azul pertence à família das baleias de barbas, que se distinguem no reino animal pela sua singular técnica de alimentação: a alimentação por filtragem, com  recurso a barbas.

OS MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO

Durante muitos anos, o método principal de investigação foi a foto-identificação: através de fotografias captadas por turistas, pescadores ou investigadores, comparavam-se elementos distintivos de cada animal, de forma a inferir o movimento de cada espécie. Seguiu-se a monitorização por transmissores de satélite, capazes de documentar com maior rigor a deslocação de uma baleia sempre que esta assomava à superfície. A estes métodos, juntou-se a técnica de análise de isótopos estáveis em pequenos pedaços de pele extraídos das baleias. É um pouco como se a pele das baleias contasse a sua história gastronómica. 

Os isótopos estáveis nos tecidos de um animal dão pistas sobre a sua dieta específica e a região onde consumiu alimento. Ao compararem as assinaturas isotópicas da baleia-azul com as de diferentes fontes de alimento, Mónica Silva e Rui Prieto têm conseguido inferir a origem do alimento. Se hipoteticamente a assinatura isotópica de uma baleia for semelhante à do krill antárctico, isso sugere que ela se alimenta principalmente desse tipo de presa.

Com a confiança solidificada por uma década de amostras, sabe-se hoje que as baleias-azuis que visitam os Açores são, na verdade, oriundas de várias regiões do oceano. O estudo de longo curso detectou indivíduos que passam o Inverno em zonas de upwelling da costa ocidental africana, mas também animais provenientes de zonas de oceano aberto do Atlântico Norte, com características biogeoquímicas idênticas às dos Açores. Depois de uma curta estada nas águas do arquipélago, percorrem mais de três mil quilómetros para terminar a sua longa jornada no Atlântico Nordeste Central, entre a Gronelândia e a Islândia.

O sorriso de Mónica Silva cresce à medida que partilha os resultados. “Um dos maiores trunfos que nos permitiu completar este puzzle de enigmas foi a monitorização acústica”, explica. Em 2020, a bióloga foi co-autora, com Miriam Romagosa e outros cinco investigadores, de um artigo pioneiro publicado na revista Scientific Reports.

ESTES GIGANTES DO MAR PODEM PERCORRER 3.000 QUILÓMETROS OU MAIS

Havia novidades saborosas a comunicar: pela primeira vez, confirmava-se a presença deste animal no mar dos Açores no final do Outono e durante o Inverno. Como as águas são mais tempestuosas, impossibilitando as operações embarcadas, não havia informação sólida sobre o tema, mas os hidrofones instalados no fundo do mar não mentiam: gravaram dezenas de vocalizações das baleias ou, como a equipa gosta de brincar, “os resultados foram ruidosos”.

Os vigias de baleias são um exemplo extremo de adaptação.
JOÃO RODRIGUES

Os vigias de baleias são um exemplo extremo de adaptação. Muitos ainda trabalharam na indústria da caça, mas, com a moratória global imposta às capturas, foram contratados pela indústria de observação de cetáceos. A sua capacidade  de discernir a silhueta  de um espécime no horizonte é lendária. 

Os hidrofones captaram diligentemente centenas de canções de alimentação e acasalamento, registadas ao longo de praticamente todo o ano. Até aqui, acreditava-se que o ciclo de vida destes animais alternava entre uma fase de alimentação intensiva nas zonas polares e uma fase de menor actividade alimentar desde o fim do Outono até ao fim do Inverno. No entanto, o cruzamento dos dados obtidos a partir de todas as técnicas de monitorização, desde a telemetria de satélite à análise de isótopos estáveis, passando pela bioacústica, mostraram que a espécie também se alimenta durante a fase de reprodução.  Do ponto de vista de conservação, o estudo começou a mudar o paradigma: se há baleias-azuis na região ao largo dos Açores durante praticamente todo o ano, torna-se fundamental proteger esta área de alimentação utilizada na sua migração e que também pode ser usada na reprodução.

 

O MAIOR ANIMAL DO PLANETA 

Ao emergir das profundezas do oceano, depois de mergulhos que duram 12 a 15 minutos a uma profundidade máxima de quinhentos metros, a majestosa baleia-azul anuncia a sua presença com um poderoso bufo, que se eleva aos céus, atingindo dez metros de altura. É o maior animal que já existiu no planeta e nem os monstruosos saurópodes do Jurássico lhe conseguem tirar esse título. Com uma envergadura que rivaliza com as asas de um avião Cessna 172, a baleia- -azul desliza pela imensidão azul com os seus 30 metros de comprimento. O corpo maciço pode pesar 190 toneladas – equivalentes a duas mil pessoas juntas. Com uma longevidade notável, pode viver 80 a 90 anos.

Quando a fome se intensifica (o que acontece praticamente sempre com a baleia-azul), nasce o maior camaroeiro natural dos oceanos. Mergulhando de boca aberta nas densas nuvens de krill que pintam o mar de vermelho, consegue engolir de uma só vez 90 toneladas de água com milhões destes pequenos crustáceos, a sua presa predilecta.

Este animal pode pesar 190 toneladas, viver até aos 90 anos e chegar aos 30 metros de cumprimento. 

MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DA UNIVERSIDADE DO PORTO BALEIA AZUL
CORTESIA: MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DA UNIVERSIDADE DO PORTO

Esta baleia-azul arrojou na Praia do Paraíso em Matosinhos, em Novembro de 1937. Foi doada à Universidade do Porto por um industrial. Sophia de Mello Breyner inspirou-se nela para  o  conto “Saga”, publicado em 1995.

Utilizando a língua para empurrar a água através das centenas de barbas que preenchem a mandíbula superior como estalactites, formando uma barreira de longas e flexíveis placas de queratina que retêm o alimento, este animal pode ingerir quatro toneladas de alimento todos os dias

Mestres da comunicação subaquática, emitem sons de baixa frequência que se propagam a uma distância máxima de 1.600 quilómetros. São das vocalizações mais poderosas do reino animal, embora o cachalote emita vocalizações com maior intensidade de som. Vivendo numa busca perpétua por alimento e reprodução, trocam entre si canções que expressam a beleza de lugares onde cardumes de peixes e crustáceos dançam ao sabor das correntes, e sonatas que atraem pares enamorados num ballet de cortejo aquático.

A baleia-azul pode ingerir quatro toneladas de alimento todos os dias. 

Após uma gestação de 10 a 12 meses, a fêmea dá à luz uma única cria, com cerca de sete metros de comprimento e um peso superior ao de um tubarão-branco adulto, ou seja, cerca de dois mil e quinhentos quilogramas. A sua voracidade é surpreendente. O maior animal recém-nascido do mundo cresce a olhos vistos, bebendo seiscentos litros de leite materno por dia, e ganhando quatro quilogramas por hora durante o período de amamentação que dura cerca de oito meses. 

Meganyctiphanes norvegica
JOÃO RODRIGUES

Existem cerca de 85 espécies de krill. Nos Açores, é a concentração da espécie Meganyctiphanes norvegica que atrai as baleias-azuis. 

 

As baleias-azuis desempenham um papel fundamental na manutenção do equilíbrio dos oceanos. O seu consumo de zooplâncton influencia indirectamente a diversidade e a abundância de outras espécies. E, ao limitarem a ocorrência de explosões de krill, que poderiam diminuir drasticamente a disponibilidade de fitoplâncton, as baleias estão também a salvaguardar este manjar para um leque de outros apreciadores.

As baleias-azuis são também gigantescas fábricas ambulantes no oceano, absorvendo toneladas de nutrientes, processando-os e distribuindo-os, através das suas fezes, a uma escala global. Durante as migrações, transportam nutrientes de áreas mais ricas em alimento para áreas mais pobres. O processo contribui para a dispersão de nutrientes essenciais pelo oceano, beneficiando ecossistemas distantes e promovendo a produtividade marinha

O(S) DESTINO(S) DAS BALEIAS-AZUIS

Apesar dos sinais positivos, a fragilizada população do Atlântico Nordeste tem mostrado sinais animadores. Na Galiza, por exemplo, as baleias regressaram em 2017 após 40 anos de ausência. Ao primeiro indivíduo de 2017, seguiu-se outro no ano seguinte e, em 2020, os mesmos dois animais foram de novo identificados nas águas galegas. “Infelizmente, não conseguimos descobrir a sua origem”, conta Mónica Silva. “Uma vez que estes dispositivos só permanecem com os animais durante dois meses, não foi possível acompanhar o seu ciclo anual”, explica. Parece hoje claro que as baleias-azuis do Atlântico se dividem pelo menos em dois grandes grupos – um mais limitado ao triângulo entre a Gronelândia, a costa americana e a Terra Nova, e outro, mais extenso, com movimentos documentados entre a costa oriental da Gronelândia, a Islândia, a Irlanda, os Açores, as Canárias e até a Mauritânia. Não são inéditos, mas são raros, os movimentos entre as duas regiões atlânticas.

Durante as migrações, as baleias-azuis transportam nutrientes de áreas mais ricas em alimento para áreas mais pobres.

Em Junho de 2014, uma baleia-azul foi fotografada no Pico durante dois dias. Tinha sido documentada em Setembro de 1984 no golfo de São Lourenço! Até à data foi o único caso comprovado de um espécime avistado nas duas regiões. A misteriosa força motriz por trás de cada movimento do maior animal do planeta, é, na verdade, um elemento essencial que nos move a todos – a busca por alimento. “Onde existe alimento em quantidade suficiente? Tenho de ir para lá.’ No fundo, é nisto que uma baleia-azul pensará”, resume Mónica Silva.

Artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2023 da revista National Geographic.