Segundo as estatísticas e o bom senso, há uma probabilidade elevada de o leitor estar perante esta reportagem algures numa praia do Algarve. Se for o caso e levantar os olhos do papel, é também provável que possa ver gaivotas a sobrevoar a praia e o mar. Ainda neste exercício de dedução, mesmo que não resida no Algarve, o mais certo é que tenha uma ideia que vamos tentar desconstruir tanto acerca do Algarve como das gaivotas em geral. Se não for um ornitólogo ou um entusiasta da observação de aves, talvez imagine que as gaivotas são aves comuns e aborrecidas que poisam em cima dos monumentos e que os danificam com os seus dejectos corrosivos. Mas a história é muito mais complexa do que isto.

Existem no mundo cerca de cinquenta espécies de gaivotas adaptadas a habitats muito distintos. Sensivelmente metade destas já foram avistadas pelo menos uma vez em território português, mas aqui a espécie mais comum é de longe a gaivota-de-patas-amarelas. Em alguns casos, como nas Berlengas, as colónias atingiram números tão elevados que tiveram de ser controlados para não comprometerem a sustentabilidade de outras espécies. Nas últimas décadas, estas gaivotas têm-se adaptado ao meio urbano, reproduzindo-se nos telhados de muitas cidades do país. Parte deste sucesso deve-se à forma como souberam aproveitar os desperdícios dos humanos tanto na mesa de uma esplanada ainda por levantar como num enorme aterro de resíduos. Por outro lado, se nem todas as gaivotas são iguais, também o Algarve não se resume às praias cheias de turistas, aos hotéis, piscinas e campos de golfe, nem tão-pouco à beleza remota do interior. Mesmo no coração da região, situa-se uma zona húmida de beleza ímpar onde há praias e sapais que reúnem uma biodiversidade riquíssima e onde é raro avistar vivalma.

A ria delimita Faro a sul e é aqui que o rendilhado do sapal assume a sua máxima extensão. Apesar de ser uma cidade costeira, de Faro não se avista o mar. O labirinto de canais estende-se por mais de quatro quilómetros e, para chegar às ilhas-barreira, é necessária uma embarcação. A complexidade da paisagem é uma boa metáfora para os desafios que se lhe colocam. O barco que nos vai levar à ilha Deserta, o ponto mais meridional de Portugal continental, demora 20 minutos desde aquela cidade. Para oeste, o belíssimo areal prolonga-se até Quarteira, mas nós desembarcamos no canal que separa aquela ilha da do Farol, onde se mantém um aglomerado populacional que dá que falar há décadas por causa das tentativas de remoção das construções clandestinas.

gaivotas

Fonte do Censo e dos dados de movimentação: Equipa Mare-Univ. de Coimbra

As ilhas-barreira da ria Formosa são estruturas dinâmicas que dificilmente toleram por muito tempo as construções permanentes e a mais do que provável subida do nível médio das águas do mar obriga a que se equacionem seriamente cenários de recuo da linha de costa onde as dunas saudáveis poderão dar um inestimável contributo para a mitigação dos impactes de fenómenos climáticos extremos.

Desde 2019 que a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) coordena o Projecto LIFE Ilhas Barreira. O caderno de encargos é ambicioso e a pandemia não facilitou a tarefa.

Apesar do seu nome, esta ilha não é realmente deserta. Pescadores e veraneantes chegam aqui nas embarcações que fazem as ligações regulares. Em Maio, porém, quando desembarcamos com o Sol já perto do horizonte, temos esta paisagem idílica só para nós. Ou quase. Ao longe, avistamos uma silhueta. À medida que nos aproximamos, ficamos perplexos: alguém empunha uma vassoura e varre a areia das dunas. Quando chegamos perto e trocamos palavras, o mistério desvanece-se. Chiara é uma voluntária italiana e está a trabalhar na monitorização dos predadores na ilha, que na sua maioria são gatos assilvestrados. A vassoura serve para eliminar as suas pegadas depois de contabilizadas, evitando assim a duplicação do procedimento. As câmaras de foto-armadilhagem são outra ferramenta essencial para compreender o que aqui se passa e há mais voluntárias no terreno entregues a esta tarefa, à remoção de chorão e outras espécies de plantas invasoras ou à recolha de regurgitações que, depois de analisadas, permitem conhecer a dieta das gaivotas. Mas o que fazem aqui os gatos e de que se alimentam?


Haverá uma ementa variada, mas a SPEA está particularmente interessada nas aves. As dunas da ria Formosa são o local de nidificação privilegiado de algumas espécies e o que aqui se passa tem forte impacte à escala nacional. A andorinha-do-mar-anã é uma dessas aves e um dos focos do Projecto LIFE que se propõe avaliar os riscos que as ilhas-barreira enfrentam face às alterações climáticas, o efectivo e dinâmicas das populações de gaivotas e ainda o impacte das actividades de pesca na pardela-balear. Esta última reproduz-se no arquipélago que lhe dá nome, mas é nestas águas que se alimenta e de que depende para ser bem-sucedida.

gaivota

Nesta viagem, porém, viemos ver gaivotas. Na ilha Deserta, reproduzem-se duas espécies que, para os mais distraídos, podem confundir-se, mas que na realidade são muito diferentes no seu estatuto, hábitos e até na aparência. As gaivotas-de-patas-amarelas têm uma distribuição ubíqua e podem ser observadas não só ao longo de toda a costa como até no interior e nas cidades. Nesta ilha, dividem as dunas com uma congénere muito mais rara.

A gaivota de Audouin tem o estatuto de vulnerável e distribui-se pelo Mediterrâneo e pela costa ocidental de África. Só foi observada pela primeira vez em Portugal em meados da década de 1990. Assim apelidada em homenagem ao naturalista francês Jean Victor Audouin, estas gaivotas são mais elegantes, têm menor dimensão e em adultas apresentam um bico vermelho-vivo e patas cinzento-esverdeadas. Depois de algumas tentativas para estabelecimento de colónias em Castro Marim e no extremo mais oriental da ria, em 2008 elas chegaram à ilha Deserta. São raras e em vez do comportamento oportunístico das gaivotas-de-patas-amarelas, dependem quase exclusivamente das presas que conseguem no mar. Joana Andrade é a coordenadora deste Projecto LIFE e sublinha que a espécie parece aproveitar bem as rejeições das actividades piscatórias, mas esse pode ser um problema. A conservação dos stocks piscatórios condicionará fortemente a pesca nas próximas décadas. A dúvida é “saber que impacte pode ter nesta espécie uma melhoria das práticas dos pescadores que reduza esses desperdícios”.

Em 2014, a equipa do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente da Universidade de Coimbra, que também é parceira deste Projecto LIFE, começou a contabilizar aqui anualmente as gaivotas. Os números têm crescido de tal forma que, em poucos anos, Portugal passou de ser um país onde a espécie não existia para concorrer hoje com cerca de um terço ou um quarto de todos os adultos reprodutores.

Este facto é mais relevante se tivermos em conta que, na maioria das colónias, os números têm vindo a decrescer de tal forma que a maior colónia até há poucos anos no delta do Ebro, praticamente desapareceu. Hoje, a maior colónia é esta. Não sabemos ainda o que está a motivar esta deslocação para ocidente, mas no Mediterrâneo o decréscimo da espécie, que levou ao agravamento do seu estatuto de conservação, tem sido pelo menos em parte explicado com a degradação dos stocks piscatórios.

O sucesso na ria Formosa é um bom sinal de que outras espécies, como a pardela-balear, podem beneficiar, mas a conservação da natureza não se pode orientar apenas por uma folha de cálculo onde se alinham os números das diferentes espécies. Em tempos de pandemia, vimos bem quanto dependemos do turismo e este projecto inclui essa valência porque tem a ambição de compatibilizar um turismo sustentável com a preservação dos valores naturais, mas a eventual disputa de valores conflituantes não opõe apenas a conservação às actividades económicas.

O centro de investigação marinha e ambiental da Universidade do Algarve também participa no LIFE e tem estado a acompanhar a dinâmica dunar e os resultados, ainda que preliminares, já colocam os conservacionistas perante alguns dilemas difíceis. Com recurso a um drone com câmara multiespectral, fazem-se levantamentos cíclicos para traçar a evolução da cobertura de vegetação e desenhar modelos de elevação de terreno. A informação é cruzada com dados mais antigos e isso permitiu já concluir que, nos últimos anos, tem havido uma degradação da vegetação dunar.

Em muitas zonas do país, as dunas têm sofrido com o pisoteio por parte de veraneantes ou em casos mais graves até por praticantes de desportos motorizados em terrenos interditos, mas nesta ilha a maioria das pessoas não sente necessidade de se aventurar no interior. Aqui, os responsáveis pela degradação da vegetação são outros.

Quando converso com os biólogos Óscar Ferreira e Lara Talavera, percebo que estão de acordo no essencial mas revelam subtis divergências que só mostram que o trabalho ainda não terminou. O projecto, de resto, ainda tem mais dois anos pela frente. As zonas onde a vegetação tem vindo a sofrer mais foi onde se instalaram as colónias de gaivotas. Curiosamente apesar da sua maior dimensão e do comportamento mais agressivo, as gaivotas-de-patas-amarelas estão a perder terreno para as de Audouin.

Os motivos ainda não são claros e podem resultar de um deslocamento para zonas urbanas, mas os biólogos têm encaminhado cada vez mais gaivotas-de-patas-amarelas para o Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens, apresentando sinais de síndrome parética que se traduz num estado de apatia e inactividade. As causas não são claras, mas o botulismo (talvez relacionado com a alimentação em lixeiras e aterros) é uma hipótese.

Quando falamos da degradação da vegetação dunar, Óscar Ferreira aponta o dedo a estas gaivotas, não só pela sua maior dimensão e peso, mas também pela selecção de locais para construção de ninhos e sobretudo pelo facto de “ao contrário das gaivotas de Audouin, que aqui se reproduzem mas depois migram para sul, as de patas amarelas permanecem todo o ano, impondo por isso maior stress à vegetação”.

Os investigadores da Universidade de Coimbra têm colocado marcadores em alguns indivíduos e agora sabemos que as gaivotas de Audouin fora do período de nidificação descem a costa africana até ao Senegal. O pisoteio por parte das gaivotas tem impactes na vegetação, mas Lara sublinha que a acção delas não se esgota aqui: “Os nutrientes dos dejectos das gaivotas produzem a prazo alterações profundas na estrutura química do substrato, tornando-o inadequado para algumas espécies de plantas e favorecendo outras”. Lara reconhece que actualmente as zonas onde a vegetação parece mais degradada são onde estão instaladas as gaivotas maiores, mas todo o processo é demasiado recente para que se possam retirar conclusões definitivas e ilibar as gaivotas de Audouin. Em sistemas complexos, quando se puxa a manta para cima para tapar o pescoço, destapam-se os pés. As ilhas-barreira garantem a existência da ria onde se reproduzem inúmeras espécies de pescado, mas também constituem a primeira linha de defesa contra fenómenos climáticos que ameaçam a maior cidade do Algarve. Oferecem ainda as praias que são o principal motor económico da região. Mas as ilhas são também o local de que depende uma das gaivotas mais raras da Europa. Se o número de gaivotas de Audouin continuar a crescer, é possível que a vegetação naquela duna venha a sofrer. Em ecologia, os desequilíbrios conduzem a novos equilíbrios e a sacrifícios. É entregues a estas elucubrações mais filosóficas do que ecológicas que nos sentamos a assistir a mais um final de dia neste paraíso do Sul.

As gaivotas elevam-se no ar sem motivo aparente e vocalizam de forma estridente. Dou por mim a trautear a melodia que Alain Oulman compôs e a que Amália emprestou a sua voz. “Nesse céu, onde o olhar é uma asa que não voa, esmorece e cai no mar.”