O espanto com a riqueza do Serengeti, na primeira pessoa

A migração no parque nacional do Serengeti constitui um dos grandes espectáculos do planeta e é essencial para a vida numa região de magníficas paisagens e culturas vibrantes, defende a bióloga queniana Paula Kahumbu.

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Serengeti

Há predadores esfomeados nas proximidades e, por isso, as zebras mantêm-se perto dos gnus. Nas planícies setentrionais, os dois herbívoros tendem a procurar zonas de pastagem diferentes. As zebras precisam de mais alimento, preferindo comer erva mais alta com os seus compridos incisivos.

No imaginário popular, o ecossistema do Serengeti é uma paisagem africana ancestral de planícies douradas a perder de vista, desde sempre inalterada. Girafas altas deslocam-se graciosamente em sintonia. Manadas de elefantes atravessam ondas de capim. Leões perseguem antílopes com chifres espiralados em caçadas sangrentas. Linhas ziguezagueantes de gnus e zebras deslocam-se em constante movimento. E as pessoas que vivem no Serengeti, masai e outros, se é que alguém se lembra deles, são genericamente retratadas como figuras exóticas teimosamente agarradas a arcaicas tradições pastoris.

Estas representações não conseguem captar a complexidade de um vasto ecossistema que se estende desde o Norte da Tanzânia ao Sudoeste do Quénia e acolhe milhares de espécies de plantas e animais.

Até o nome, Serengeti (que se pensa derivar da palavra “Maa” que significa “planície sem fim”) é enganador. O Serengeti é constituído por muitas paisagens, incluindo savanas, bosques e florestas ribeirinhas.

É o lugar que acolhe as últimas populações prósperas de algumas espécies e onde os seres humanos vivem em equilíbrio com os animais desde o início da nossa jornada. No entanto, alguns dos animais sobre os quais já aprendemos tanto correm o risco de desaparecer à medida que nós, humanos, reivindicamos cada vez mais os seus habitats e aquecemos o clima.

Para cientistas como eu, o Serengeti é uma cápsula do tempo de uma época imemorial e um indicador do nosso futuro. É uma rede intrincada de vida, que depende de paisagens situadas para lá dos parques, reservas e zonas de conservação já criadas. À semelhança da maioria das pessoas nascidas e criadas na África Oriental, nunca visitei o Serengeti quando era pequena. Era um sítio reservado aos turistas, um sítio que considerávamos fora do nosso alcance. Contudo, ao contrário de muitos, tive a sorte de ver, enquanto crescia, na década de 1970, alguns dos animais selvagens do Quénia em estado selvagem. Eu e o meu irmão explorávamos a floresta dos arredores, trepávamos às árvores, nadávamos nos rios e atravessávamos pântanos a vau. Um dia, vislumbrámos um animal engraçado que parecia um porquinho-da-índia gigante, no alto de uma figueira. Um vizinho parou o carro ao pé de nós, abriu a janela e explicou-nos que era um hírax, um parente distante do elefante.

Disse-nos que lhe levássemos todos os que apanhássemos vivos e ele falar-nos-ia mais sobre eles. Levámos-lhe cobras, lagartos, aves, rãs, ratos e, certa vez, um rato-gigante-africano – que eu estava certa de ser uma nova descoberta. Este homem de paciência infinita era Richard Leakey, o paleoantropólogo, na altura director do Museu Nacional do Quénia.

"Ninguém esperava que os africanos fizessem investigação de campo"

Muito mais tarde, quando tinha 15 anos, consegui convencer os meus pais a deixarem-me participar, com alguns colegas, numa expedição científica no Norte do Quénia, num local distante e desabitado onde era possível morrer de sede ou por ataques de bandidos ou leões

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Alguns anos mais tarde, quando a minha mãe me mandou para a escola de secretariado, fugi e fui ter com Leakey. Ele arranjou-me um estágio que me projectou para o meu sonho de ser vigilante da natureza.

Visitei, por fim, o Serengeti já depois dos 20 anos, quando trabalhava para o Serviço de Vida Selvagem do Quénia. Certa vez perguntei a cientistas norte-americanos na Reserva Nacional de Masai Mara se tinham quenianos nas suas equipas. “Sim, claro”, responderam. “O motorista e o cozinheiro.”

Isto violava as regras das licenças de investigação: no entanto, ao regressar a Nairobi, o meu patrão limitou-se a encolher os ombros. Ninguém esperava que os africanos fizessem investigação de campo. Apesar dessas atitudes, segui em frente e concluí o doutoramento em Ecologia e Biologia Evolutiva. Adorava trabalhar como cientista, mas há alguns anos percebi que tudo aquilo que me era querido enfrentava uma grave ameaça. Então, mudei de ponto focal e concentrei-me na conservação.

Um dos meus projectos é uma série documental chamada “Wildlife Warriors”, produzida por quenianos e para o público queniano, que destaca os nossos compatriotas que desenvolvem esforços para proteger os nossos animais. Quando apresentei esta ideia pela primeira vez, disseram-me que os quenianos não iriam ver o programa. No entanto, a resposta tem sido impressionante. No ano passado, 51% do país assistiu ao documentário e recebemos e-mails e cartas de apoio, bem como sugestões para novos temas, vindas de espectadores de todas as idades. A mensagem é clara: os quenianos querem saber mais sobre a sua vida selvagem.

A preocupação é justificada porque há muito em jogo. A migração dos gnus, que percorrem uma rota circular no ecossistema do Serengeti, encontra-se sob pressão. A chegada anual de mais de um milhão de gnus às margens do rio Mara parece provar que a migração está saudável, mas as tendências de longo prazo contam uma história diferente. As populações de mamíferos de grande porte diminuíram em todo o país.

Jackson Looseyia, masai, operador de viagens e co-apresentador do programa televisivo “Big Cat Tales”, disse-me que, na última década, ele e os seus colegas guias repararam em dez espécies que quase desapareceram: o cudo, o bambi-comum, o bauala, o porco-bravo, o porco-gigante-da-floresta, o oribi, o macaco-colobo, a palanca-negra, a palanca-ruana e, claro, o rinoceronte-negro. A maioria destes animais não figura no topo das listas turísticas, mas eles são barómetros essenciais da saúde do ecossistema.

Na década de 1990, assistimos ao colapso da migração dos gnus no ecossistema de Athi-Kaputiei, imediatamente a sul de Nairobi. Nem sequer nos apercebemos do que estava a acontecer até ser demasiado tarde. Hoje, o mesmo parece estar a acontecer, em maior escala, no Serengeti. E a ameaça é aumentada pelas alterações climáticas. Leakey temia que perdêssemos a maior parte da nossa vida selvagem no nosso tempo de vida, se não enfrentássemos o problema a nível global.

Se  existir um ambiente capaz de suportar o massacre do aquecimento, é o ecossistema do Serengeti, um local com uma resiliência espantosa. Acho que somos capazes de defender estas terras bravias e preservá-las para as gerações futuras, mas isso só acontecerá se os cidadãos quenianos e tanzanianos assim o exigirem.

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Os gnus trazem consigo um ecossistema completo. As garças-boieiras, por exemplo, juntam-se aos gnus que pastam na Tanzânia. Pairam nas proximidades, chegando até a pousar no dorso deles, aguardando que, com as patas, eles levantem do solo um cocktail de insectos.

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A mortandade de gnus é um banquete para crocodilos e abutres no rio Mara. Num só dia, seis mil a nove mil gnus (que nadam mal e se confundem com facilidade) podem pisar-se uns aos outros e afogar-se nas correntes rápidas do rio.

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Os gnus atravessam o rio Mara num local abaixo de Lookout Hill, no Quénia. “Esta é a fotografia clássica de uma travessia”, diz o fotógrafo Charlie Hamilton James, mas não nos fornece a imagem completa. Se apontar a máquina fotográfica para um local diferente, poderá ver turistas em todo o lado.

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Todos os anos, em Fevereiro, antes de iniciarem uma viagem extenuante para norte, os gnus e as zebras que acompanham a manada reúnem-se para pastar e parir nas planícies junto da fronteira meridional do Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia. Meio milhão de jovens gnus nascem aqui todos os anos: uma média de 24 mil por dia. As crias conseguem caminhar poucos minutos depois de nascerem.

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Há milhares de anos que os gnus atravessam as planícies da África Oriental. As manadas não têm um líder natural, mas os trilhos ajudam a orientá-las, como uma memória de grupo de viagens anteriores. Nesta viagem anual, formam uma megamanada, rodeada por outras mais pequenas que se separam para encontrar boas terras de pasto.

 

Paula Kahumbu

A NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY está empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo. Desde 2010 que financiamos Paula Kahumbu, Exploradora do Ano Rolex National Geographic de 2021, que trabalha para proteger espécies na África Oriental. Através da Campanha Wyss for Nature, financiámos o trabalho de campo do explorador Charlie Hamilton James, que passou mais de dois anos a fotografar as pessoas e os animais do grande ecossistema do Serengeti. Ilustrações de Joe Mckendry.