Itsaso Vélez del Burgo segurava a cria de chimpanzé nos braços. Coxa e inconsciente, a fêmea não era muito maior do que a mão humana.
O seu corpo minúsculo e a ausência de dentes revelavam que teria cerca de um mês de idade. Sofria de hipotermia e de desidratação e, se algo não fosse feito, o seu coração pararia de bater. “Foi a chimpanzé mais nova que alguma vez recebemos”, conta Vélez del Burgo, directora técnica do Centro de Reabilitação de Primatas de Lwiro, na zona oriental da República Democrática do Congo (RDC). Era o dia 16 de Junho de 2017 e Vélez del Burgo organizara uma viagem de salvamento de cinco dias, de moto, barco a motor e carro, para trazer a cria em segurança para a aldeia de Lwiro. Um contacto de um grupo contra a caça furtiva encontrara o chimpanzé na densa floresta húmida junto da aldeia isolada de Pinga, a cerca de 300 quilómetros de distância. Depois de entregar a cria, o homem revelou que a irmã mais nova desta morrera, pouco antes de lhes matarem a progenitora. No santuário, a luta pela vida desta chimpanzé acabara de começar. Vélez del Burgo cobriu rapidamente o corpo inerte com cobertores quentes e administrou-lhe líquidos por via intravenosa. Por fim, a cria estremeceu e os olhos abriram-se.
“Deixei-a dormir no meu peito para mantê-la quente”, conta Zawadi Balanda, uma congolesa jovem e sossegada, incumbida de vigiar Busakara, o nome que lhe deram naquela noite. Vélez del Burgo temia que, sem uma progenitora natural a alimentá-la e a dar-lhe apoio emocional, a cria acabasse por morrer.
Os chimpanzés, juntamente com os bonobos, são os nossos parentes vivos mais próximos. Estima-se que, em África, o seu número atinja, no máximo, a 300 mil indivíduos – muito inferior ao milhão que existiria no início do século XX – devido à caça furtiva para consumo de carne, contrabando para o mercado de animais de estimação e perda de habitat.
O Centro de Reabilitação de Primatas de Lwiro foi fundado em 2002, quando a guerra na RDC desencadeou o fenómeno da caça furtiva para consumo da carne dos animais do Parque Nacional de Kahuzi-Biega, nas imediações. As autoridades de vida selvagem confiscaram chimpanzés órfãos a caçadores furtivos e aldeãos, alojando-os em antigas salas de laboratório num centro de investigação científica belga abandonado em Lwiro.
À medida que o número de órfãos aumentava, duas instituições fundaram o santuário. Bernard Masunga, um veterinário sénior que trabalha em Lwiro desde o início, viu o refúgio crescer e transformar-se num lar para chimpanzés e macacos em recintos florestados. “Estou muito orgulhoso dos esforços locais para chegar onde chegámos”, diz. No entanto, como os primatas continuam a chegar, Bernard sabe que a estratégia de longo prazo passará pela libertação de tantos quanto possível na natureza assim que tenham recuperado a saúde e a confiança.
Certo dia de 2020, Vélez del Burgo, sentada com um grupo de chimpanzés, pôs a câmara do telemóvel em modo de auto-retrato e apontou-a aos símios curiosos. Billi, um macho de 6 anos, olhou para a imagem do ecrã com uma expressão aparentemente divertida. Outros chimpanzés espreitaram sobre o seu ombro. Billi recolheu os lábios para examinar e limpar os dentes. Depois, apertou as bochechas com os dedos, como se estivesse a espremer borbulhas. Vélez del Burgo riu-se enquanto Billi enfiava um dedo no seu próprio nariz.
“ O meu sonho sempre foi trabalhar em conservação de primatas”, diz a afável Vélez del Burgo, que chegou a Lwiro no início de 2014, quando o santuário tinha cerca de 55 chimpanzés. Nascida em Victoria, no Norte de Espanha, sentia uma vocação para proteger animais. “Mesmo quando andava na escola, encontrava insectos em dificuldades e afastava-os dos perigos”, diz. A sua mãe, uma imigrante da Colômbia com poucos recursos, ajudou-a a pagar a universidade em Barcelona, onde concluiu um mestrado em primatologia. O interesse de Vélez del Burgo pelo comportamento dos primatas levou-a à Guiné, na África Ocidental, para investigar chimpanzés em ambiente selvagem.
Quando apareceu vaga para um voluntário em Lwiro, ela aproveitou a oportunidade e aproximou-se ainda mais dos chimpanzés selvagens. No entanto, nada a preparara para os desafios de viver numa região dilacerada por antigas guerras e conflitos ainda em curso. No seu terceiro mês, “rebeldes Mai-Mai vieram da floresta para atacar os soldados”, recorda. Houve noites em que Vélez del Burgo ficava deitada na cama, a tremer, enquanto o estrondo de bombas, granadas e disparos de metralhadoras tornava o sono impossível.
Certo dia, o director de Lwiro foi afectado por uma doença grave e quase morreu. Teve de ser transportado por via aérea. “Foram tempos de muito stress”, diz Vélez del Burgo, que assumiu a direcção do santuário, ficando responsável por diversos primatas órfãos, pela manutenção das instalações e pela gestão da equipa do santuário, que contava então com 31 pessoas.
Quando a pequena Busakara chegou, embrulhada em trapos, em meados de 2017, o santuário alojava cerca de 75 chimpanzés e os números aumentavam a cada mês. Vélez del Burgo viu no animal algo especial que lhe deu força, numa época em que o isolamento extremo e as constantes ameaças à sua segurança pesavam imenso. Busakara estava completamente indefesa, mas “fiquei surpreendida com a sua resiliência. Ela queria mesmo viver”, conta.
Depois de Busakara sobreviver à sua precária primeira noite, foi-lhe atribuída uma equipa de tratadoras (as progenitoras substitutas) para cuidar da cria 24 horas por dia, tal como a sua própria progenitora teria feito. Balanda era uma delas. Crescera numa quinta onde a sua família praticava agricultura de subsistência e nunca sonhou que um dia trataria de chimpanzés órfãos.
Durante a adolescência e já na idade adulta, suportou uma sucessão de ataques brutais perpetrados por soldados rebeldes que acabaram por levá-la ao hospital, onde foi submetida a cirurgia reconstrutiva. Foi então que conheceu alguém de Lwiro e lhe foi oferecida a possibilidade de se juntar ao santuário como tratadora.
“Ela chegou a Lwiro devastada”, diz Vélez del Burgo. “Não falava, não socializava com seres humanos.” O apoio aos colaboradores para que estes lidem com as suas próprias experiências traumáticas é uma componente do trabalho que Vélez del Burgo não esperara. “Existe tanto sofrimento no Congo, nos animais e nas pessoas”, diz. “Sou uma pessoa muito sensível, por isso costumo fechar-me em relação ao sofrimento humano. Acho que não consigo lidar com tudo.”
A princípio, Balanda tinha medo dos chimpanzés, mas foi pouco a pouco descobrindo as suas subtis formas de comunicação, como tratam da sua higiene, como se riem histericamente quando lhes fazem cócegas e as vocalizações que significam sim e não.
Balanda diz que Busakara teve diarreia nos primeiros dias passados no santuário. “Eu limpava-a e dormia com ela para a manter quente”, diz com um sorriso carinhoso. “Por vezes, ela chorava quando eu me vinha embora de manhã.” O amor e a atenção humana foram essenciais nos primeiros meses da recuperação de Busakara, mas uma recuperação ainda mais importante começou quando ela se juntou a meia dúzia de outros chimpanzés jovens num berçário cheio de lutas fingidas. Ali desenvolveu a sua própria personalidade.
A confiança de Balanda também foi aumentando e ela começou a cuidar dos órfãos mais velhos. A sua nova relação com os chimpanzés estava a ajudá-la a emergir de uma depressão sombria. “Aos poucos, podíamos vê-la a sorrir e a conversar mais comigo”, diz Vélez del Burgo. “Conseguiu finalmente falar mais sobre a sua experiência.”
A recém-descoberta paixão de Balanda pelos chimpanzés inspirou-a a matricular-se num curso de ciência veterinária na Universidade de Lwiro. “Sempre achei que seria veterinária de animais domésticos”, diz Balanda. “Nunca pensei que trabalharia com chimpanzés selvagens!” Passados dois anos, Busakara foi libertada num dos recintos naturais florestados de Lwiro. Aprendera a viver com uma família substituta de chimpanzés em recuperação, ficando livre para desenvolver uma hierarquia natural e a unidade familiar. Busakara não tardou a criar boas relações com os outros chimpanzés. “Tornou-se muito carinhosa”, diz Vélez del Burgo. “Pusemos chimpanzés novos e muito traumatizados a seu lado, por ela ser a mais acolhedora.”
Em 2019, registou-se uma vaga de chegadas de novos chimpanzés – um recorde de nove. O Parque Nacional de Virunga, parceiro de Lwiro, ofereceu o custo dos voos e um piloto para ajudar a fazer as transferências aéreas de órfãos recuperados em regiões isoladas da RDC. Depois, em Dezembro, um surto grave de gripe abateu-se sobre o santuário. Mais de 90% dos chimpanzés contraíram o vírus e dois morreram. Busakara ficou muito doente, mas os veterinários de Lwiro ajudaram-na a sobreviver.
Em Março de 2020, quando o novo coronavírus chegou em força à RDC, Vélez del Burgo ficou preocupadíssima com os chimpanzés, os macacos e os seus colaboradores. “Os chimpanzés são altamente susceptíveis a doenças respiratórias”, diz. “Não sabíamos qual seria o efeito do coronavírus.” Houve relatos de vários chimpanzés órfãos em diversas zonas do país, mas, durante o confinamento, ninguém pôde recolhê-los para o santuário. A incerteza, associada a uma diminuição dos donativos recebidos, aumentou a pressão. Foi então que surgiu um salva-vidas sob a forma do apoio da Aliança Ivan Carter para a Conservação de Vida Selvagem, uma organização de conservação que organizou uma angariação de fundos para manter o santuário em funcionamento. “Houve dias em que pensei que já não conseguia fazer isto”, diz Vélez del Burgo. Em contrapartida, também houve dias gratificantes, passados frequentemente na presença de Busakara, que inspirava Vélez del Burgo a ser perseverante. “Busakara é um dos poucos chimpanzés que vem ter comigo caminhando sobre as patas traseiras”, diz, rindo-se. “Veio ter connosco tão nova que aprendeu a caminhar como um ser humano.”
Vélez del Burgo acabou por perceber quão importante Lwiro é para os seus colaboradores, como Balanda, que, ao contribuírem para a recuperação dos chimpanzés, descobrem que estes também os ajudam na sua própria recuperação. O mesmo se aplica a Vélez del Burgo. A primeira lição que os chimpanzés lhe ensinaram foi como ser forte face à adversidade. “Eles nunca desistem.” A vida aqui não é fácil, diz, “mas não vou abandonar nem os chimpanzés, nem a equipa”.
A National Geographic Society, empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo, financia as reportagens do explorador Brent Stirton sobre os seres humanos e o ambiente desde 2017. Ilustração: Joe Mckendry