Quem é o dono do nosso lixo? É uma pergunta polémica feita por catadores de todo o mundo que estão a unir-se numa luta pela sua sobrevivência. Aquilo que deitamos fora, insistem, deveria estar disponível para todos.
A nível global, até 56 milhões de pessoas apanham e revendem o metal, vidro, cartão e plástico que nós descartamos.
O Supremo Tribunal dos EUA decretou em 1988 que o lixo doméstico se torna propriedade pública quando chega à via pública. Isso permite à polícia procurar provas de crimes no lixo, mas essa protecção nem sempre se estendeu às pessoas que apanham materiais recicláveis.
E em locais como a cidade de Nova Iorque, que está a testar contentores municipais fechados para manter o lixo fora do alcance das ratazanas, os catadores de lixo estão a ser impedidos de obter um rendimento sustentável.
“Estes contentores são explicitamente inacessíveis”, diz Ryan Castalia, director executivo da Sure We Can, uma organização de reciclagem sem fins lucrativos e centro comunitário em Brooklyn. “Há valor no lixo e nós achamos que esse valor deve pertencer ao povo, não à cidade ou às empresas”.
A viagem de um reciclador
Josefa Marin emigrou do México para Nova Iorque em 1987, sustentando a sua filha, que ficara em casa, com os 140 dólares semanais que ganhava a limpar o chão de uma fábrica de camisolas. Começou a apanhar materiais recicláveis para complementar os seus parcos rendimentos, entregando latas a troco de cinco cêntimos cada no seu supermercado local.
Pouco depois, empurrava um carrinho de compras pelas ruas de Brooklyn ao fim de semana, vendendo latas vazias a intermediários que as trocavam por dinheiro em centros de reciclagem. Quando perdeu o emprego, em finais da década de 2000, tornou-se recicladora a tempo inteiro, sustentando os seus quatro filhos com os 80 dólares que ganhava por dia.
A história de Marin não é a única. A cidade de Nova Iorque não sabe quantas pessoas subsistem a catar lixo, mas segundo uma estimativa aproximada, o total aproxima-se de 8.000. A Sure We Can trabalha com cerca de 1.200 recicladores, que entregam cerca de 12 milhões de latas por ano nos escritórios da organização, gerando um valor estimado em 800.000 dólares para esta comunidade.
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A catadora de lixo Josefa Marin na Sure We Can, um centro de reciclagem sem fins lucrativos sediado em Brooklyn. Apelidados de profissionais das garrafas por alguns, recolhem objectos recicláveis, devolvem-nos e recebem cinco cêntimos.
Um trabalho fundamental
Os catadores de lixo são fundamentais para manter o lixo gerível. Na cidade de Nova Iorque, o departamento sanitário só recolhe cerca de 28 por cento das latas que poderiam ser recicladas. Essa percentagem desce para cinco por cento nos plásticos, incluindo garrafas de água. Os catadores impedem que milhões de materiais recicláveis adicionais acabem todos os anos em aterros sanitários.
Em países sem sistemas formais de gestão de lixo, o seu papel é ainda mais vital. Em alguns países da América Latina, até 96 por cento do lixo reutilizável acaba em aterros sanitários por não existirem programas de reciclagem. “É um serviço prestado gratuitamente” aos governos locais, diz Sonia Dias, especialista em resíduos globais da WIEGO, uma organização internacional de defesa de mulheres trabalhadoras.
Contudo, a maioria dos governos não reconhece a legitimidade dos catadores de lixo e, sem protecção legal, os recicladores não conseguem garantir acesso público ao lixo.
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Trabalhadores de uma unidade de separação de plástico dividem objectos de plástico por cor antes de os enviarem para outras cidades para serem transformados em pellets.
Vejamos o recente esforço da cidade de Nova Iorque. A pandemia teve um forte impacto no departamento sanitário. Os confinamentos fizeram com que o lixo se mudasse dos edifícios de escritórios para as residências particulares e o lixo acumulou-se. Juntando a isso o aumento dos jantares ao ar livre, o resultado foi uma praga de sacos de lixo empilhados e todas as pragas por estes atraídas. A introdução de contentores de grandes dimensões fechados com cadeados fez com que o lixo só ficasse acessível aos funcionários sanitários.
Os funcionários municipais ainda não reconheceram o direito público aos resíduos. O porta-voz Vincent Gragnani diz que o Departamento Sanitário não se opõe a que os indivíduos recolham latas e garrafas “para pagar as contas”. Contudo, o departamento não comenta se o lixo é público ou privado.
Uma breve história dos resíduos
A falta de protecção para os catadores de lixo está enraizada nas origens da recolha de resíduos, diz Lily Baum Pollans, que ensina políticas urbanas e planeamento em Hunter College.
Em finais do século XIX, os habitantes urbanos dos EUA atiravam as carcaças dos animais, cinzas, trapos e os seus próprios resíduos para as ruas e os rios locais, acabando por causar uma crise de saúde pública que levou os municípios a criarem forças laborais dedicadas à recolha e remoção do lixo.
Em São Francisco, a Sunset Scavengers, que era originalmente um grupo informal de trabalhadores, corporizou-se em 1921. A cidade de Nova Iorque formalizou a gestão de resíduos em 1896.
A gestão de resíduos financiada pelos municípios teve sempre por objectivo a limpeza e não a criação de postos de trabalho, salienta Baum Pollans. Os municípios que pagam a funcionários sanitários não são incentivados a reconhecer oficialmente ou a sustentar financeiramente os catadores de lixo quando já têm uma força laboral dedicada.
Mudança de paradigma
Sejam ou não reconhecidos, os catadores de lixo são, desde há muito, tratados com desdém. Marin recorda uma ocasião em que alguém que vivia ao lado de um edifício onde ela estava a apanhar latas lhe atirou água, gritou-lhe insultos raciais e mandou-a ir embora. “Lá porque reciclo, isso não significa que seja menos que ninguém”, diz.
Os países do hemisfério sul começam a reconhecer isso. O Brasil reconheceu a recolha de resíduos como profissão oficial em 2001. Em 2009, o Tribunal Constitucional da Colômbia reconheceu o direito a apanhar e vender lixo com valor económico. Na Argentina, os catadores de lixo redigiram uma proposta de lei no início deste ano com o objectivo de taxar as empresas que produzem produtos descartáveis. A maioria dos fundos contribuem para o sustento de recicladores e outros apanhadores informais de lixo.
Os EUA estão lentamente a acompanhar esta tendência, embora o seu foco seja obrigar as empresas a cobrirem os custos do descarte do lixo que geram. Em Julho de 2021, o estado do Maine exigiu aos produtores que pagassem uma taxa de embalamento. Os estados do Oregon e do Colorado também têm leis de “responsabilidade alargada do produtor”. E em Outubro de 2022, a International Alliance of Waste Pickers, uma organização de defesa de recicladores informais, criou a sua primeira constituição. Marin foi uma das redactoras e também pertence ao Conselho de administração da Sure We Can.
Alguns governos começam agora a perceber que a protecção do ambiente e da humanidade andam de mãos dadas. A Agenda para o Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2030, por exemplo, apela ao fim da pobreza e a todos os riscos dela derivados. “A ideia é não deixar ninguém para trás”, diz Dias.
Erradicar a pobreza seria também eliminar a necessidade de apanhar lixo. “No meu sistema ideal”, diz Baum Pollans, “temos uma rede de segurança realmente robusta, para que as pessoas não precisem de depender de taras de cinco cêntimos”.