O gelo que há muito define as cordilheiras do Sul da Ásia está a derreter e a formar lagos gigantescos. Aos poucos, surge o espectro de cheias catastróficas.

Se sobrevoar o Evereste de avião, verá um mar de picos brancos irregulares estendendo-se infinitamente até ao horizonte.

É uma paisagem sem igual no planeta. São os glaciares colossais dos Himalaia, que há milénios são reabastecidos por monções que abafam as montanhas com neve nova no Verão.

Se fizer essa mesma viagem de avião daqui a 80 anos, esses gigantes brancos reluzentes terão desaparecido.

No início deste ano, o Centro Internacional para o Desenvolvimento Integrado da Montanha publicou a análise mais abrangente até hoje realizada de como as alterações climáticas afectarão os glaciares das montanhas dos Himalaia, do Indocuche, do Caracórum e de Pamir: juntas, elas formam um arco que atravessa o Afeganistão, o Paquistão, a China, a Índia, o Nepal, o Butão e Myanmar. O estudo alerta que, dependendo da velocidade do aquecimento global, um terço a dois terços dos cerca de 56 mil glaciares da região desaparecerão até 2100.

Os glaciares contêm cerca de 3.850 quilómetros cúbicos de água. A questão imediata que se coloca na região é: quando os glaciares derreterem, para onde irá toda a água?

É uma previsão terrível para aproximadamente 1.900 milhões de habitantes do Sul da Ásia, que dependem dos glaciares como fonte de água essencial não só para consumo e efeitos sanitários, mas também para a agricultura, energia hidroeléctrica e turismo. O estudo também se debruçou sobre uma questão mais imediata. Com o degelo rápido dos glaciares, para onde irão esses 3.850 quilómetros cúbicos de água?

Na verdade, os Himalaia, há muito definidos pelos seus glaciares, estão a tornar-se uma cordilheira definida por lagos. Outro estudo concluiu que entre 1990 e 2010 formaram-se mais de novecentos novos lagos alimentados por glaciares nas cordilheiras altas da Ásia. “Está tudo a acontecer muito mais depressa do que esperávamos há cinco ou dez anos”, comenta Alton Byers, explorador da National Geographic e geógrafo especializado em montanhas da Universidade do Colorado.

Jangadas transportam os cientistas no lago Taboche em Maio, altura em que parte da superfície permanece congelada. Os lagos da região nepalesa de Khumbu são algumas das massas de água doce situadas a maior altitude do mundo. Alguns, porém, representam ameaças para as comunidades vizinhas, caso transbordem ou rompam as suas represas naturais. Fotografia: Brittany Mumma, Fisher Creative, Panorama composto por quatro imagens

Para compreender como estes lagos se formam, pense num glaciar como um bulldozzer de gelo, escavando o flanco de uma montanha, raspando o solo e deixando um rasto de detritos à medida que avança. Estes rastos chamam-se moreias e, à medida que os glaciares derretem e recuam, a água preenche o espaço vazio remanescente e as moreias funcionam como represas naturais.

“Começam por ser lagoas com a água do degelo”, explica o especialista. “Evoluem depois para constituir uma única lagoa e depois um lago de maiores dimensões. Vão ficando cada vez maiores, ano após ano, até serem um lago com milhões de metros cúbicos de água.”

À medida que enche, o lago pode transbordar água sobre as moreias que o sustêm ou, no pior cenário possível, estas podem ceder. São as cheias repentinas dos lagos glaciários, conhecidas pela sigla GLOF, em inglês, embora também exista uma palavra sherpa para designá-las: chhu-gyumha, uma cheia catastrófica.

Uma das mais espectaculares GLOF dos Himalaia ocorreu na região de Khumbu, no Nepal, no dia 4 de Agosto de 1985, quando uma avalancha de gelo rugiu pelo glaciar Langmoche abaixo, caindo sobre o lago Dig, uma massa de água com 1,6 quilómetros de extensão.

O lago teria, provavelmente, menos de 25 anos: uma imagem captada em 1961 pelo cartógrafo suíço Edwin Schneider mostra apenas gelo e detritos no sopé de Langmoche. Quando a avalancha desabou sobre o lago, criou uma onda com quatro a seis metros de altura que abriu uma fenda na moreia, libertando mais de cinco milhões de metros de cúbicos de água (aproximadamente duas mil piscinas olímpicas) a jusante.

Os sherpas que assistiram à cena descreveram-na como uma massa negra de água descendo lentamente sobre o vale, acompanhada por um estrondo semelhante ao de vários helicópteros e o cheiro de terra acabada de lavrar. A cheia destruiu 14 pontes, cerca de 30 casas e uma nova central hidroeléctrica. Segundo alguns relatos, morreram várias pessoas. Numa reviravolta benevolente, a cheia ocorreu durante um festival de celebração das colheitas, cuja época se aproximava, motivo pelo qual poucos moradores estavam junto do rio naquele dia, o que salvou indubitavelmente vidas. 

Uma equipa de cientistas recolhe uma amostra do leito do lago Taboche, no Nepal. As camadas de sedimentos contêm pistas sobre quando e como o lago se formou, permitindo estudar as mudanças em condições sazonais, ao longo do tempo. Fotografia: Tyler Dinley

“Sempre houve GLOF”, diz Alton Byers. “Mas nunca tivemos tantos lagos perigosos num período tão curto. Sabemos pouco sobre eles.” A cheia do lago Dig chamou a atenção para os riscos noutros lagos dos Himalaia. Os principais eram o lago Rolpa, no vale Rolwaling (no Nepal) e o lago Imja, junto do sopé do Evereste, a montante de várias aldeias ao longo do popular trilho de caminhada até ao acampamento-base do Evereste.


No fim da década de 1980, equipas de cientistas começaram a estudar estes dois lagos. Imagens recolhidas por satélite revelaram que o lago Imja se formara após o lago Dig na década de 1960 e estava a expandir-se a um ritmo alarmante. Um estudo estimou que, entre 2000 e 2007, a área da sua superfície aumentara quase dez hectares.

“Um dos problemas dos lagos glaciares é o facto de os riscos estarem sempre a mudar”, diz Paul Mayewski, director do Instituto das Alterações Climáticas da Universidade do Maine e líder da expedição organizada em 2019 pela National Geographic Society e pela Rolex para estudar os glaciares do Nepal. Muitas moreias que sustentam lagos glaciares estão naturalmente reforçadas por pedaços de gelo que ajudam a estabilizar a estrutura. Se o gelo derreter, uma moreia outrora sólida pode soçobrar.

Há outras ameaças escondidas sob o gelo. Com o degelo, grandes grutas podem esvaziar-se dentro de um glaciar em recuo e encher-se de água. Por vezes, estes reservatórios ocultos estão unidos a lagos de superfície através de condutas existentes no gelo. Quando uma via de fuga do reservatório derrete subitamente, dezenas de lagos interligados podem ser drenados em simultâneo, convergindo num enorme dilúvio. Embora mais pequeno e menos devastador do que os GLOF, este tipo de evento – conhecido pelos cientistas como uma cheia de condutas englaciar – ocorre com mais frequência. Pouco se sabe sobre eles. “Não é fácil descobrir como a água corre no interior dos glaciares”, afirma Paul Mayewski.

Por enquanto, os GLOF continuam a ser a nossa maior preocupação. Alton Byers aponta para a moreia do sopé do glaciar Khumbu, onde existe actualmente um aglomerado de lagoas. “É o próximo grande lago”, diz, lembrando que a moreia se encontra acima da aldeia de Tugla, junto de um trilho. “É apenas uma questão de tempo até se transformar num risco potencial.”

É difícil avaliar o perigo sem realizar operações de campo, que exigem vários dias de caminhada até aos lagos distantes, mas um estudo conduzido em 2011 identificou 42 lagos no Nepal com risco de cheia elevado ou muito elevado. Em toda a região dos Grandes Himalaia, o seu número pode ascender a mais de uma centena.

Outro país com um longo historial de problemas face ao desaparecimento dos lagos glaciares é o Peru, um país montanhoso que perdeu cerca de 50% do seu gelo glaciar nos últimos 30 a 40 anos. Milhares de pessoas já morreram em GLOF. Uma cheia devastadora, com origem no lago Palcacocha, arrasou um terço da cidade de Huaraz, matando cerca de cinco mil pessoas. Foi o momento em que os peruanos começaram a conceber formas pioneiras de drenar parcialmente os lagos glaciares. Actualmente, dezenas de lagos do Peru foram represados e o seu volume foi reduzido, criando centrais hidroeléctricas e canais de irrigação. No entanto, a implementação de tais soluções no Nepal enfrenta grandes obstáculos.

A grande diferença entre o Peru e os Himalaia é a logística, explica John Reynolds, especialista britânico em riscos geológicos que ajudou a dirigir os trabalhos de redução do Rolpa, considerado por muitos o lago mais perigoso do Nepal. “No Peru, podemos deslocar-nos de automóvel até um local a cerca de um dia de caminhada do lago”, diz. No Nepal, “podem ser necessários cinco ou seis dias de caminhada do lago à estrada mais próxima.”

O lago Rolpa é tão isolado que foi preciso desmontar a maquinaria pesada e transportá-la até ao lago em peças separadas, a bordo de um helicóptero, voltando a montá-la mais tarde. Depois de construírem uma pequena represa, os engenheiros começaram lentamente a libertar água e a reduzir o volume do lago. Por fim, o nível da água do lago Rolpa foi reduzido em 3,5 metros. Trata-se do primeiro projecto de mitigação concretizado nos Himalaia.

Em 2016, o exército nepalês participou num projecto de emergência que drenou o lago Imja num volume semelhante. Nenhuma destas medidas eliminou completamente os respectivos riscos de cheia, mas, a par da instalação de sistemas de alerta, ambas assinalam um progresso.

Nem todos os lagos representam o mesmo tipo de ameaça e, à medida que os cientistas vão desenvolvendo novas formas de estudar os lagos, aprendem como avaliar o verdadeiro risco que cada um representa. Em alguns casos, descobriram que a percepção de risco era sobrevalorizada, incluindo o lago Imja. “Não existe relação entre a causalidade de um GLOF e o tamanho de um lago”, diz John Reynolds. “O mais importante é a forma como o lago interage com a represa.”

Não são apenas os lagos grandes que representam ameaças, explica o cientista nepalês Dhananjay Regmi. “Estamos mais preocupados com os lagos de grande dimensão, mas a maioria dos desastres dos últimos anos foram provocados por lagos relativamente pequenos, dos quais nunca suspeitámos.”

Quer os lagos sejam grandes ou pequenos, ninguém duvida de que as condições capazes de desencadear cheias na região estão a agravar-se. John Reynolds salienta que, à medida que o solo permanentemente gelado (o permafrost) começar a derreter em grande escala, os desabamentos e os aluimentos em grande escala tornar-se-ão mais comuns e, se atingirem lagos vulneráveis, poderão desencadear cheias semelhantes ao episódio trágico do vale Khumbu, em 1985. “Teremos de realizar estudos de risco geológico integrado nesses vales”, comenta o engenheiro. “As GLOF representam apenas uma fracção do problema.”

Alton Byers está optimista quanto aos progressos já alcançados. “Não são apenas os grandes projectos de infra-estructuras, como a redução do Imja. As comunidades que vivem em regiões isoladas de grande altitude estão silenciosamente a desenvolver a sua própria tecnologia para se adaptarem.”

Os residentes de Khumbu começaram a construir gabiões (gaiolas de arame repletas de rochas) para ajudar a desviar as cheias das povoações. O seu esforço foi recompensado em 2016, quando ocorreu uma cheia de conduta englaciar por cima da aldeia de Chukung. Os gabiões contiveram a torrente, desviando a água em redor de várias habitações e a aldeia foi salva. 

Lagos perigosos

Segundo os cientistas, o degelo acelerado dos 56 mil glaciares da Ásia está a criar centenas de novos lagos nas cordilheiras de grande altitude. Se a represa natural que contém o glaciar soçobrar, a cheia daí resultante poderá arrasar as comunidades situadas nos vales por baixo. Engenheiros nepaleses estão a estudar formas de reduzir o volume dos lagos mais perigosos para atenuar a ameaça que eles representam.

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