Criado em 1998, o Parque Marinho Luiz Saldanha, na Arrábida, gerou polémica, discórdia e muitos protestos. Num balanço científico, há razões para celebrá-lo.

Março de 2003. Num auditório em Setúbal, a temperatura da sala não corresponde ao frio que se faz sentir lá fora. O director do Parque Natural da Arrábida acabou de fazer uma exposição pública sobre as normas recém-propostas para regulamentar a pesca nos 53km2 da reserva, o primeiro parque marinho em Portugal continental. Falou perante cerca de 400 pescadores e representantes da navegação de lazer de Setúbal e Sesimbra e a indignação foi aumentando. Aqui, como em muitas áreas protegidas, ressurge o velho confronto entre Ambiente e Economia, entre postos de trabalhos e protecção da natureza, entre necessidades reais e vantagens futuras. Ergue-se o espectro do desemprego nesta região fortemente dependente da pesca. E em surdina sugere-se mesmo que as medidas não terão qualquer impacte na gestão da biodiversidade marinha da região.

 Avançamos no tempo. No porto de abrigo de Sesimbra, são quatro horas da madrugada. Eduardo, pescador local e proprietário de uma embarcação de pouco menos de cinco metros, reconhece sem esforço que a reserva integral proporcionou nos tempos recentes mais peixes e com maiores dimensões. A pesca de rede de um pano tem-lhe rendido robalos, sargos e douradas (a menores profundidades) e pescadas, fanecas e besugos quando lança a sua arte de pesca tradicional para lá dos 50 metros de profundidade. Esta é uma das cerca de oitenta embarcações licenciadas para operar na zona do parque, metade das quais com assiduidade de descarga em lota. Aos poucos, cumprem-se assim os desígnios para os quais o parque marinho foi concebido, particularmente o objectivo de garantir a sobrevivência da enorme variedade de habitats e espécies que aproveitam a dinâmica biogeográfica das águas da Arrábida e fazem dela um refúgio natural, onde se cruzam espécies de águas frias e quentes e onde se regista mais biodiversidade e biomassa marinha do que nas áreas envolventes.

Há séculos que existe uma forte tradição pesqueira na região. No final do século XIII, D. Dinis criou a Póvoa da Ribeira de Sesimbra, reconhecendo nela uma aldeia de pescadores. A tradição da náutica de recreio é mais recente, mas nem por isso menos intensa. “É uma zona extremamente utilizada”, reconhece Emanuel Gonçalves, biólogo do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA) que estuda estes fundos há mais de duas décadas. “Desse ponto de vista, era uma das piores zonas para fazer uma área protegida. Por outro lado, olhando apenas para os valores naturais, até poderia ter protecção total.”

Entre 1998 e 2005, o parque só funcionou no papel. Em Agosto de 2005, porém, foi finalmente publicado o Plano de Ordenamento, que previa um regime transitório de quatro anos para a pesca, dada a complexidade da zona. Em Portugal, não há tradição de monitorização do resultado dos planos de ordenamento para posterior correcção. Na Arrábida, porém, esse esforço foi permitido pelo projecto Biomares, que decorreu entre 2006 e 2010, financiado pelo programa Life-Natureza, com o objectivo de contribuir para a gestão e recuperação da biodiversidade do parque marinho.

Perspectiva da costa da Arrábida, com a baía do Calhau da Cova em primeiro plano.

 Logo no segundo ano de actividade, ainda a meio do regime transitório do ordenamento, a pesca experimental, orientada por Karin Erzini, do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve (UALG), registava já um claro aumento da biomassa nas áreas mais protegidas, incluindo de espécies comerciais. Segundo a experiência internacional, sinais como estes só eram esperados três a cinco anos após o ordenamento implementado em pleno.

O resultado mais impressionante, porém, foi a identificação de 220 espécies desconhecidas na área do parque. São 37 peixes, 21 crustáceos, 21 bivalves, 76 poliquetas e quatro equinodermos que se acrescentam à lista do parque, agora com 1.320 espécies recenseadas. As alterações da biodiversidade não são ainda conclusivas em relação às medidas de conservação, mas tanto os dados recolhidos pelo ISPA como pela UALG, mostram um índice maior de biodiversidade na área de protecção total. Estas zonas, muitas vezes mal aceites, são a única maneira de criar um sistema de comparação para separar os efeitos da acção humana dos efeitos climáticos ou outros efeitos globais.

O habitat marinho até à batimétrica dos 100 metros foi caracterizado pela equipa de Alexandra Cunha, coordenadora executiva do Biomares. Foi feito um levantamento acústico das características físicas dos fundos, realizaram-se dragagens para determinar a estrutura dos sedimentos e a fauna bêntica aí existente e captaram-se imagens em vídeo da morfologia do fundo.

O modelo digital tridimensional do fundo que resultou das sondagens confirmou a percepção da bióloga, ao mostrar que as zonas do parque deveriam ter seguido as linhas batimétricas em vez de ser traçadas a esquadro. Mas verdadeiramente surpreendentes foram o resultado das dragagens, responsáveis por cerca de setenta das novas espécies inventariadas no parque, e as filmagens do fundo, que revelaram enormes campos de pinas (Atrina pectinata) até agora ignorados.

Um cardume de sargos junto da superfície revela o aumento da biomassa, bem como a sua tranquilidade na presença do ser humano, uma novidade proporcionada pelo parque marinho. 

 O volume de conhecimento científico produzido desde 2005 sobre a biodiversidade do parque tem sido incomparável. O projecto Biomares concentrou-se num esforço para replantar as pradarias marinhas do parque que rapidamente evoluiu também para um levantamento cartográfico exaustivo sobre a sua localização. O programa de replantação começou em 2007 com testes de métodos e materiais, sob orientação de Mark Fonseca, autoridade mundial na recuperação de pradarias marinhas. Seguiu-se a difusão de sementes, para garantir diversidade genética, e finalmente foram colocadas 375 unidades de plantação, formadas por gradeamentos de ferro onde as plantas estavam presas com ráfia.

No ano seguinte o trabalho começou mais cedo para avaliar qual a melhor época de transplante e cobrir uma área maior. Devido às correntes locais, o método também mudou e passaram a ser transplantados blocos de plantas com sedimento e raiz.

No total, entre 2007 e 2010, foram replantadas 60 parcelas ao longo de quatro quilómetros, com plantas da ria Formosa e do estuário do Sado, que deveriam crescer e unir-se para formar manchas contínuas. Os melhores resultados registavam-se na praia de Galapinhos, com raízes e sedimentos oriundos da Ponta do Adoche. Era já visível o aumento de fauna (peixes e moluscos) nas zonas plantadas.

Porém, a recuperação não teve o resultado esperado. Apesar da 80% das plantações estarem estabilizadas no Outono de 2009, os violentos temporais desse Inverno, os piores dos últimos 50 anos, tiveram efeitos desastrosos. Na Primavera de 2010, apenas resistiam cinco das 60 parcelas plantadas.

A investigação de Bárbara H. Costa comparou densidade e biomassa entre as zonas de pesca e a zona de reserva. Concluiu que muitas espécies (sobretudo de valor comercial) existem com mais abundância na zona da reserva.

 A extensão do projecto por mais seis meses permitiu continuar a plantar em 2011, mas apostando agora em concentrar densas parcelas onde as plantações resistiram, em vez de espalhar pequenos blocos numa vasta área. A iniciativa trouxe importantes ensinamentos para a conservação deste habitat, juntando-se porém à lista de áreas europeias onde não se conseguiu ainda recuperar uma pradaria marinha, um dos habitats mais vulneráveis e decisivos para a conservação da biodiversidade marinha.

Trabalhando noutro espectro, o ISPA e o CCMAR estudam a conectividade e os factores de ocorrência e dispersão das larvas no parque marinho, enquanto outra equipa do ISPA desenvolve investigação através da genética para perceber se os juvenis provêm dali ou de outros locais, para saber se a área se auto-sustenta ou acolhe recrutas de outros lados. “A conectividade é o fundamento das redes de áreas protegidas, que não são apenas um conjunto de locais, mas sim uma rede de funcionalidades entre áreas”, esclarece Emanuel Gonçalves.

O outro factor é o efeito spillover, em que as zonas protegidas produzem peixes que se difundem, uma noção fundamental uma vez que o parque pode actuar como fonte de recrutamento para os stocks pesqueiros. A experiência internacional mostra que as espécies mais pescadas beneficiam mais com as áreas protegidas. Um dos objectivos é estudar que efeito tem no sistema a reposição dessas espécies devido às medidas de protecção.

Inês Sousa, bióloga do CCMAR, já possui alguns dados para fundamentar essa resposta. Ao analisar os dados da lota de Sesimbra na última década, verificou que, desde 2008, 18% das embarcações tradicionais a operar na área do parque marinho aumentaram a sua captura diária média para o dobro. Registaram-se também observações de mais abundância de várias espécies com valor comercial, como a raia-lenga, a cabra-cabaço e a azevia, e um aumento do tamanho médio dos exemplares destas espécies. “O plano de ordenamento só ficou completamente implementado em Agosto de 2009 e sabemos que ainda ocorre alguma pesca ilícita nas zonas protegidas, pelo que são resultados que surpreendem pela positiva.”

O mesmo foi apurado por Bárbara Costa, estudante de doutoramento do ISPA que analisou o efeito da reserva no parque marinho. Amostrando quatro locais em cada uma das três zonas de protecção, a bióloga contabilizou um aumento considerável da densidade de peixes com valor comercial na zona da reserva face às zonas de pesca (as zonas de protecção complementar do parque). O mesmo resultado foi verificado relativamente à biomassa verificada, o que sugere que “os peixes estão a aumentar mais em tamanho e consequentemente em peso do que em número”, diz, lembrando exemplos internacionais nos quais a biomassa foi um indicador que reagiu primeiro e melhor à protecção. Além disso, algumas espécies com interesse comercial, como o sargo ou o polvo, são mais abundantes e maiores na reserva, ao passo que a safia deverá usar a área de protecção total como zona de crescimento.

Em algumas espécies, foi documentado o uso da área de protecção total como zona de crescimento. As espécies com valor comercial podem circular depois para outras áreas, contribuindo para o aumento dos índices de pesca.

E depois há o vector adicional: uma reserva marinha tem tendência a gerar condições para aumentar a riqueza de espécies. O mesmo estudo deu conta de um aumento razoável no avistamento de espécies antes e depois do plano de ordenamento, sugerindo uma melhoria rápida. A análise tem abrangido espécies com e sem valor comercial até porque, como resume Emanuel Gonçalves, “olhamos para a biodiversidade como um todo, para além de olharmos para as espécies da pesca”.

Para Miguel Henriques, responsável pela gestão do parque marinho, o futuro da zona depende da continuidade da investigação, pois falta fazer monitorização de longo prazo, conhecer o modelo de circulação costeira, estudar o efeito de reserva, avaliar a conectividade com áreas adjacentes, associar as espécies aos diferentes habitats, perceber o impacto de espécies exóticas, determinar a capacidade de carga do sistema e gerir a integração da pesca e outras actividades.

Os resultados palpáveis das medidas de conservação atenuaram a contestação local ao parque marinho, embora ela ainda exista. Restam ainda várias etapas de monitorização e sobretudo falta aguardar alguns anos, pois, como o comprovou o acidente com as pradarias marinhas, um acontecimento extraordinário pode modificar o frágil equilíbrio do ecossistema. Porém, à medida que mais, maiores e novas espécies de peixe emergem da zona de protecção total, é inegável sublinhar que o parque marinho já está bem longe do cenário construído naquela noite fria de Março de 2003.