Para os anishinaabe, a caça nunca foi um desporto e a vida nunca foi encarada com ligeireza.

Por isso, quando o grande alce macho se aproximou de Tom Morriseau Borg, ele sentiu um misto de gratidão, admiração e humildade: o alce estava a oferecer-se, uma dádiva de vida e de carne feita pela floresta, que Tom iria partilhar com a família e os amigos. Este anishinaabe praticante da caça tradicional com armadilha cresceu perto do lago Nipigon, na região ocidental da província de Ontário. Há muitos séculos que os anishinaabe ali pescam, caçam e montam as suas armadilhas. Depois de abater o alce, Tom espalhou um pouco de tabaco sobre o animal e murmurou orações de agradecimento, exactamente como o seu avô lhe ensinara.

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LAGO MICHIGAN. A água das cheias inunda um passeio pedonal em Montrose Beach, perto da baixa de Chicago. Na primeira metade de 2019, chuva- das intensas provoca- ram o aumento do nível das águas no lago em mais de 50 centímetros. Os cientistas prevêem que as condições climáticas adversas se tornem mais frequentes nesta região nas próximas décadas.

No entanto, ao cortar a carcaça, a gratidão de Tom transformou-se em repugnância. Quando tentou extrair o fígado, que deveria ser carnudo, ele liquefez-se numa pasta sangrenta. Desde então, Tom tem encontrado outros fígados doentes como este em vários animais. “Vejo-os em coelhos, castores e perdizes”, disse. “As minhas partes preferidas do coelho eram o coração e o fígado. Mas agora já não os comemos.”


Tom suspeita que a pulverização com herbicidas conduzida pelas empresas madeireiras na bacia hidrográfica do lago Nipigon esteja a provocar danos nos animais. “Os rebentos das plantas são o alimento favorito do alce”, disse. “Eles prosperam ao ingerirem essas plantas jovens.” Ou melhor, prosperavam até elas serem envenenadas. “É assim que as coisas acontecem. Os herbicidas escorrem para os cursos de água, chegando às represas dos castores. Agora, eles têm as entranhas em mau estado”, contou.

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Clique na imagem para ver detalhes. Matthew W. Chwastyk E Jason Treat; Kelsey Nowakowski Fontes: Ministério da Agricultura dos EUA; Gabinete de Agricultura e Produtos Agrários do Canadá; NASA; USGS; U.S. EPA; NOAA; Centro de Ciência Aquática do Midwest Superior, USGS.

“Quando vejo maldades e interferências, sinto uma grande tristeza. E nunca pensei que as mudanças a que tenho assistido na floresta nos últimos 15 anos pudessem ocorrer tão depressa”, disse, enquanto acabava de contar a sua história numa fresca noite de Verão, na sua casa de Nipigon.

Tom mantém-se em excelente forma física, graças a uma vida inteira de trabalho duro na manutenção de gasodutos, acompanhada pela sua actividade paralela de caça com armadilhas. De vez em quando, ouvia-se à distância um camião a rolar pela Auto-Estrada Transcanadiana.

Da casa de Tom Borg, no meio de coníferas altas, há 33 anos, avista-se o rio Nipigon, um prolongamento do lago do mesmo nome. O lago Nipigon tem uma superfície de aproximadamente 4.850 quilómetros quadrados, embora no mapa pareça um charco, comparado com o corpo de água para onde escorre: o Lago Superior, o maior dos cinco Grandes Lagos.


Enquanto a mulher de Tom, Donna, nos servia fatias grossas de bannock, o pão ázimo típico da região, barradas com doce de bagas de roseira brava, ele lamentava as transformações da terra que ama. Até as estações do ano mudaram. Por vezes, em Dezembro, os lagos ainda não têm gelo. Os ventos são mais violentos. A pelagem de Inverno dos animais que ele caça (castores, martas, arminhos, doninhas) desenvolve-se numa altura mais tardia da estação do que quando ele era novo. “Já nada é como dantes.”

LAGO SUPERIOR. O rio Hurricane desagua na margem sul do lago Superior, o maior corpo de água doce do planeta à superfície. O lago, que contém mais de metade do total da água existente nos cinco Grandes Lagos, enfrenta uma grande  variedade de ameaças, desde as espécies invasoras ao desaparecimento do gelo de Inverno.

As alterações testemunhadas por Tom Borg e muitas outras a que ele ainda não assistiu na sua bacia hidrográfica relativamente prístina estão a transformar as restantes bacias hidrográficas dos Grandes Lagos. Os cinco lagos (Superior, Huron, Michigan, Erie e Ontário) são provavelmente o recurso mais precioso do continente, incalculavelmente mais valioso do que o petróleo, o gás ou o carvão. No seu conjunto, contêm mais de um quinto da água doce da superfície do planeta (22.700 biliões de litros) e 84% da existente na América do Norte.


Quase 40 milhões de norte-americanos e canadianos vivem na bacia hidrográfica dos Grandes Lagos. Bebem água dos lagos, pescam neles, transportam mercadorias através deles, cultivam as suas margens e trabalham em cidades que não existiriam sem os lagos. E, claro, poluem-nos. Introduzem espécies invasoras  que  alteraram os lagos de forma definitiva. Devido à contínua emissão de gases com efeito de estufa, modificaram as condições climáticas existentes em grandes extensões da bacia hidrográfica dos Grandes Lagos, aumentando a frequência das tempestades violentas.

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Clique na imagem para ver detalhes. Matthew W. Chwastyk, Jason Treat E Rosemary Wardley; Kelsey Nowakowski. Fontes: Projecto de Avaliação e Cartografia Ambiental dos Grandes Lagos; Gabinete de Estatísticas do Canadá; Gabinete de Censo dos Eua; Comissão dos Grandes Lagos; EPA; NOAA; USGS; Green Marble; David Allan e Outros, Pnas, Janeiro de 2013.

“É grave o que está a acontecer aqui”, disse Tom, enquanto bebíamos chá. “Quando passamos algum tempo nesta terra, percebemos que algo está errado. Não sei se conseguiremos travá-lo.”

No que se refere à história geográfica do continente, os Grandes Lagos são meros “recém-chegados”. Constituem um legado da última glaciação da América do Norte, um período em que glaciares com vários quilómetros de espessura prolongavam-se desde o Sul do Kansas ao Árctico. Quando os glaciares recuaram, há 11 mil anos, escavaram as bacias que viriam a transformar-se nos Grandes Lagos. Contudo, os actuais contornos e o sistema de escoamento dos lagos só se formaram há três mil anos. Nenhuma outra característica da Terra rivaliza com os lagos. São o maior sistema de água doce do mundo.

Todos os lagos, sejam eles frios e profundos com margens florestadas, como o lago Superior, ou quentes e rasos e rodeados de cidades industriais, como o lago Erie, partilham uma vida secreta. Acolhem um mundo oculto que a maioria dos leitores nunca verá. Se tivermos sorte, poderemos avistar um lobo, encontrar um alce ou talvez pescar um esturjão de 95 quilogramas. Mas essas criaturas famosas roubam protagonismo a um elenco secundário muito mais humilde, sem o qual os lagos morreriam.

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LAGO HURON. Uma plantadeira distribui sementes de feijão em parte de uma exploração agrícola de três mil hectares pertencente à firma Zwerk and Sons, perto do lago Huron. Mais de cinco mil explorações agrícolas no Michigan foram certificadas por um programa voluntário apoiado pelo Estado e pelas agências locais, com o objectivo de promover práticas que reduzam a poluição.

“Respire fundo e, em seguida, volte a respirar fundo. Dessas duas inspirações, uma era composta por diátomos”, afirmou o ecologista Andrew Bramburger, colaborador da agência canadiana Environment and Climate Change Canada, actualmente responsável pela administração e aplicação de grande parte das políticas públicas ambientais do país. No ano passado, quando Andrew ainda trabalhava na Universidade de Minnesota Duluth, conversámos numa sala de aula vazia. Ele exaltou então o papel desempenhado pelos diátomos, um tipo de algas com paredes celulares feitas de sílica, como suporte de vida.

“Diz-se que a floresta tropical da Amazónia é o pulmão do planeta”, disse. “A verdade, porém, é que são os diátomos presentes nos oceanos, nos rios e nos lagos que fabricam cerca de metade do oxigénio da nossa atmosfera.” Os diátomos também bombeiam oxigénio nos lagos. Sem eles, os lagos sufocariam. E são a principal fonte de alimento dos lagos. Se os diátomos forem saudáveis, tudo o que vive nos lagos também será saudável.

Há 20 anos que Andrew Bramburger estuda as algas nos Grandes Lagos e noutros grandes lagos de todo o planeta. Na maior parte das regiões do mundo, um lago é uma superfície que se pode ver de uma margem para a outra. O entusiasmo de Andrew pelos lagos era tão grande que ele não conseguia evitar partilhá-lo e não apenas por palavras. Convidou-me a participar num evento mensal especial: convidou-me a nadar no lago Superior com um grupo de amigos. Fazem isso durante todo o ano, mesmo no Inverno, mergulhando de plataformas de gelo para os lugares onde há água livre, contou, cheio de alegria na voz. E – imaginem a minha sorte – o próximo baptismo gélido teria lugar dentro de quatro dias. Numa tentativa cobarde de escapar ao evento, murmurei que não trouxera o fato de banho. Andrew interrompeu-me de imediato: “Pode usar um dos meus.”

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Matthew W. Chwastyk, Jason Treat Y Rosemary Wardley, NGM; Kelsey Nowakowski. Fontes: USGS; NOAA

Enquanto me preocupava, em silêncio, com o sarilho em que me metera, Andrew abriu o seu computador portátil e mostrou-me imagens de alguns dos habitantes mais pequenos do lago Superior. Os investigadores identificaram cerca de três mil espécies de diátomos nos Grandes Lagos, havendo provavelmente muitas mais por descobrir. Vistos ao microscópio, são dos seres vivos mais estranhamente belos entre todos, com uma variedade caleidoscópica de formas. À semelhança das plantas, os diátomos e outras algas servem-se da luz para transformar a água e o dióxido de carbono em hidratos de carbono simples. São um alimento de alta qualidade para o zooplâncton, pois são “sumarentos e ricos em lípidos”, segundo a descrição de Andrew Bramburger.

Ele e outros investigadores documentaram uma tendência alarmante que remonta há 115 anos: os diátomos dos Grandes Lagos estão a diminuir de tamanho. Essa diminuição parece relacionar-se com as alterações climáticas. À medida que os lagos aquecem, os diátomos vão-se afundando, o que diminui a sua capacidade para captar luz. “Os maiores não conseguem manter-se a flutuar”, afirmou o investigador. “Se a tendência se mantiver, haverá diátomos mais pequenos e em menor quantidade, prevendo-se a sua substituição por organismos que serão, na melhor das hipóteses, artigos alimentares de baixa qualidade e, na pior, tóxicos.”

As espécies invasoras de moluscos, introduzidas por navios oceânicos, constituem uma ameaça ainda maior aos diátomos, tendo provocado uma redução de 90% do seu número no lago Erie ao longo dos últimos 35 anos. Uma perda equivalente de outras plantas fundamentais e mais conhecidas, como o capim da savana africana, saltaria imediatamente para os cabeçalhos das notícias. Mas os diátomos não interessam muito à comunicação social.

Como este organismo é tão abundante e insubstituível, causa surpresa que se saiba tão pouco sobre o que acontece aos diátomos durante o Inverno. “Ao longo de cinco meses por ano, o lago fica coberto de gelo e não fazemos a mínima ideia do que se passa lá em baixo”, disse Andrew.

Durante os invernos de 2017 e 2018, Andrew e alguns colegas da Universidade de Minnesota resolveram preencher esta lacuna do nosso conhecimento e aventuraram-se nas superfícies geladas de vários lagos cujas águas confluem no lago Superior. Ali, abriram alguns buracos no gelo. Em vez do cenário lamacento que tinham imaginado, as águas debaixo do gelo fervilhavam de vida. “As taxas de fotossíntese medidas sob o gelo eram 60% das registadas durante o Verão. E isto observou-se a uma profundidade de 60 centímetros de gelo e 60 centímetros de neve. Pensávamos que, lá em baixo, existia apenas um mundo frio, escuro e aborrecido, quando, na verdade, se passa imenso.” O zooplâncton era abundante (cerca de 1500 indivíduos por litro). Deslocava-se livremente, devorando algas.

Se não existisse uma safra saudável de diátomos para sustentar o frenesi alimentar do zooplâncton durante o Inverno, a produtividade do lago ressentir-se-ia no resto do ano. Uma vez que os pequenos peixes dos lagos se alimentam de zooplâncton, uma diminuição drástica deste provocaria uma queda abrupta das populações de peixe. “É o ponto de partida para a cadeia alimentar da Primavera”, afirmou Andrew. A energia solar capturada pelos diátomos fornece as calorias que se transformam na carne de criaturas cada vez maiores, numa florida cadeia de luz incorporada. “Só pescamos um achigã grande no Verão, porque estes bicharocos andaram a fazer o seu trabalho durante o Inverno”, disse.

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RIO ILLINOIS. Pescadores capturam carpas asiáticas na esperança de impedirem que a sua expansão alastre para o lago Michigan. Desde que escaparam das lagoas de aquicultura e dos charcos de efluentes na bacia do rio Mississípi nas décadas de 1960 e 1970, estas carpas têm dizimado os peixes autóctones. Foram recentemente localizadas a 14 quilómetros do lago Michigan.

Uma das conclusões mais contra-intuitivas descobertas pelo grupo é que os diátomos são mais eficientes debaixo do gelo coberto de neve do que debaixo do gelo sem neve por cima. Os diátomos precisam de um equilíbrio ideal entre profundidade e luz solar. Se forem demasiado ao fundo, não obtêm luz suficiente. Se permanecerem numa região demasiado alta da coluna de água, podem queimar-se. É possível que a neve os proteja da luz solar em excesso. Sob gelo sem neve, a radiação solar pode danificar os pigmentos fotossintéticos dos diátomos. Uma explicação possível: “Os seus sistemas fotossintéticos, os seus pigmentos, estavam basicamente a ser bombardeados e queimados”, afirmou Andrew Bramburger.


Foi uma descoberta preocupante. “Esta é uma realidade que vai afectar os Grandes Lagos à medida que formos perdendo o nosso revestimento de neve e de gelo e os nossos invernos aquecerem, tornando-se mais secos e mais ventosos”, disse. “Mais secos e mais ventosos significa que vamos começar a perder a neve sobre o gelo e, à medida que o calor aumentar, vamos simplesmente começar a perder o gelo. Nos Grandes Lagos, estamos a assistir a grandes eflorescências de algas, de uma espécie chamada Aulacoseira. É um diátomo de grandes dimensões e gosta de viver no fundo sob gelo espesso coberto de neve. Se começarmos a perdê-lo, vamos provavelmente perder uma das componentes verdadeiramente importantes da cadeia alimentar. “É uma corrida para perceber o que acontece no Inverno, antes que não haja Inverno para perceber.”

Estava prevista chuva forte para a manhã do nosso mergulho, o que me dera esperanças de evitar aquela provação. Não tive sorte. Às 5h40 da manhã do dia marcado, 13 pessoas acocoraram-se em torno de uma fogueira, numa praia escura e pedregosa, envolta em nevoeiro e não muito distante da baixa de Duluth. Bebíamos café. Este mergulho de grupo assinalaria 47 meses consecutivos de saltos para o lago. Michael Scharenbroich, um dos amigos de Andrew, mediu a temperatura da água: “10,6ºC”, gritou. São horas. Sem calçado aquático adequado, fiquei para trás na corrida para a água, bamboleando sobre os seixos. Então, a necessidade de aliviar as dores nos pés sobrepôs-se à minha relutância visceral de mergulhar na água. À minha volta, cabeças desapareciam e voltavam rapidamente a aparecer acima da superfície, como um bando de lontras espantadas, de olhos arregalados pelo choque e pela alegria.

Afinal, um mergulho não era suficiente. Aquecemo-nos e voltámos a saltar. E mais uma terceira vez. À medida que a fogueira se apagava e o céu clareava, mudando de cor para um cinzento prateado, o grupo começou a dispersar, mas Andrew ficou. Poucos dias depois, partiria para o Canadá, rumo a um novo emprego e era evidente que teria saudades daquelas manhãs. “Já vivi em muitos sítios em redor dos Grandes Lagos, mas no lago Superior parece existir uma certa magia para as pessoas”, contou. “Nunca vi a sensação de identificação e de vinculação ao lago que se tem em Duluth em qualquer outra cidade lacustre.”

Apesar da sua beleza, o lago Superior pode ser traiçoeiro. Duluth, com 86 mil habitantes, é a segunda maior cidade do lago Superior, depois de Thunder Bay, no Ontário, e ainda está a recuperar dos danos causados por uma série de tempestades violentas, incluindo a chamada tempestade de 500 anos que assolou a cidade nos últimos oito anos. Poucos dias depois do meu encontro com Bramburger, Michael LeBeau, o supervisor dos projectos de construção de Duluth, levou-me numa volta pelas docas, onde os níveis elevados da água do lago e três tempestades com ventos violentos tinham causado inundações responsáveis por danos graves no ano anterior.

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LAGO MICHIGAN. No subsolo de Chicago, prosseguem as obras num dos maiores projectos de engenharia civil do mundo: o Plano de Túneis e Reservatórios da cidade. Projectado para reduzir as cheias e impedir que o efluente dos esgotos não-trata- dos seja descarregado no lago Michigan, prevê-se que o sistema esteja plenamente operacional em 2029.

Em 2016, uma tempestade desactivou o sistema eléctrico do serviço de abastecimento de água de Duluth. Situada à beira de um dos maiores corpos de água doce do mundo, a cidade esteve a poucas horas de ficar sem água. Contemplando uma belíssima extensão de área urbana costeira que, em breve, será protegida por 69 mil toneladas de rocha extraída de uma pedreira nas proximidades, Michael mostrou-se preocupado com o que o futuro reserva. “Dizem-me que quase esgotámos a pedreira”, afirmou. “Vamos gastar quase 25 milhões de euros por causa de três grandes tempestades. Foi um golpe terrível para uma cidade pequena e não muito rica. Estamos a remediar como podemos, tendo em conta o dinheiro que temos. É perfeitamente concebível que, se estas tempestades continuarem ou piorarem, deixe de ser possível regressarmos ao ponto de partida. E ninguém consegue perceber isso.”

Estas tempestades devastadoras transformar-se-ão, provavelmente, numa nova e dispendiosa normalidade. O aquecimento global está a desestabilizar a corrente de jacto, a corrente atmosférica de grande altitude que gira em torno do planeta, de oeste para leste. As diferenças de temperatura entre as altitudes médias e elevadas, responsáveis pela corrente de jacto, têm diminuído, abrandando esse vasto rio de ar. E isso tem afectado os padrões climáticos sazonais: as tempestades estão a tornar-se mais esporádicas, mas mais intensas. Alguns modelos climáticos prevêem que o número de tempestades violentas em todo o mundo duplicará por cada grau de aumento do aquecimento global, tendência essa que talvez já esteja em curso. As fortes chuvadas primaveris ocorridas em 2019 provocaram níveis recorde da altura das águas dos lagos e cheias generalizadas em toda a região dos Grandes Lagos.


Enquanto seguíamos de automóvel ao longo da orla costeira, nos arredores setentrionais da cidade, Michael LeBeau contou-me que, no princípio de 2019, uma tempestade de Inverno cobriu a estrada por onde viajávamos com 120 centímetros de areia e cascalho. “Estamos a prever mais três anos de construção, partindo do princípio de que não acontece outra grande tempestade.”

Novecentos quilómetros a sudeste, noutro dia de Verão carregado de chuva, um pequeno grupo de mulheres reuniu-se em torno de um sinal vermelho em forma de losango, numa praia do Parque Estadual de Maumee Bay, nas margens do lago Erie, a uma curta distância da cidade de Toledo, no Ohio. Aquilo que leram inquietou-as: “PERIGO Evitar qualquer contacto com a água. Foram detectados níveis INSEGUROS de toxinas algais.”

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LAGO MICHIGAN. O Festival da Guarda Costeira, em Grand Haven, começou por ser um piquenique informal para as famílias da Guarda Costeira, em 1924. Agora atrai 350 mil pessoas todos os verões, com concertos, passeios fluviais e fogo-de-artifício. A tradição foi interrompida em 2020, devido à pandemia.

As mulheres, estudantes na Universidade Estadual de Bowling Green, tinham estado a nadar nas águas esverdeadas e o sinal escapara-lhes à chegada. Éramos as únicas pessoas na praia e, quando me aproximei, fizeram-me perguntas às quais não soube responder: Iriam ficar bem? As toxinas eram perigosas? “Nunca mais voltamos a esta praia”, disse Marharita-Sophia Tavpash, visivelmente abalada, enquanto ela e as amigas se apressavam a entrar no automóvel.

Desde o início da década de 2000, as eflorescências de algas nocivas têm afectado o lago Erie quase todos os verões. Nos Grandes Lagos, vive uma grande variedade de algas e organismos semelhantes. A maioria, tal como os diátomos, são fundamentais para a saúde dos lagos. Alguns, porém, podem eliminar a vida nos lagos, asfixiando-a. Os mais problemáticos são as cianobactérias, um organismo presente em quase todos os corpos de água. Com condições favoráveis (água quente e poluída), crescem descontroladamente, formando uma espuma viscosa e verde. Quando as algas se decompõem, sugam o oxigénio da água, criando vastas zonas mortas, por vezes libertando toxinas que podem ser fatais para a vida selvagem. Nos seres humanos, podem provocar erupções cutâneas e lesões no fígado.

Há apenas 25 anos, as eflorescências de algas pareciam ser um problema do passado nos EUA. Antes de o Congresso aprovar a Lei da Água Limpa, em 1972, as eflorescências tinham atormentado o lago ano após ano, mas a legislação impôs regras estritas às centrais de tratamento dos esgotos e levou à eliminação dos fosfatos nos detergentes de lavagem da roupa. As algas prosperam com fósforo: sem aportes significativos deste elemento, as eflorescências não conseguem crescer. Durante uma década idílica, o lago manteve-se livre de eflorescências.

Então por que razão voltaram elas a surgir? Para me encontrar com as pessoas que resolveram esse mistério, fui de automóvel até à Universidade Heidelberg, em Tiffin, no estado de Ohio, em cuja cidade universitária de 50 hectares, na região agrícola do milho, existe aquilo a que os cientistas chamam um tesouro nacional: um meticuloso registo de 45 anos sobre as substâncias químicas escoadas para o lago Erie por dois grandes afluentes, os rios Maumee e Sandusky. Duas mulheres são responsáveis pela recolha e preservação deste acervo. Dedicaram mais de 40 anos à tarefa de diagnosticar os males do lago Erie.

“Somos mais antigos que a Agência Federal para a Protecção Ambiental dos EUA”, diz Ellen Ewing, enquanto almoçamos num dos refeitórios da universidade. “Somos mais antigos do que o Dia da Terra!”

Ellen referia-se ao Centro Nacional para a Investigação da Qualidade da Água, da Universidade Heidelberg, fundado em 1969. Ellen começou a trabalhar neste Centro em 1976, logo depois de se licenciar na universidade, dois anos antes da sua colega e também antiga aluna de Heidelberg, Barbara Merryfield, sentada a seu lado na nossa mesa. O volume de dados que ambas reuniram ao longo das décadas permitiu aos investigadores compreender a misteriosa ressurgência das eflorescências de algas no lago Erie.

Todas as semanas, durante mais de 40 anos, Ellen, Barbara e a sua pequena equipa recolheram amostras de água nos rios Maumee, Sandusky e noutras bacias hidrográficas. “Eu costumava percorrer 800 quilómetros de automóvel, por semana”, disse-me Barbara Merryfield. “Estava fora três dias por semana.

“Num certo aniversário de trabalho da Barbara, calculei o número de amostras por ela processadas até então”, disse Laura Johnson, cientista que dirige o centro desde 2016. “Eram mais de dois milhões e isso era uma estimativa por baixo.”

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LAGO ERIE. Uma gigantesca eflorescência de algas cobriu a zona ocidental do lago Erie no Verão de 2019. No auge, a eflorescência abrangeu mais de 1.600 quilómetros quadrados. As eflorescências podem libertar toxinas na água, causando erupções cutâneas e lesões no fígado. Antigamente, eram raras, mas agora podem acontecer todos os verões.

Recolhiam aproximadamente dez mil amostras por ano, testando 11 parâmetros diferentes, observou Ellen Ewing, entre duas garfadas de salada. “Somos terrivelmente eficientes.” Toda essa amostragem revelou que uma prática de conservação supostamente destinada a melhorar a qualidade da água do lago tem provocado o oposto. Na década de 1990, muitos agricultores da bacia hidrográfica do lago incorporaram técnicas da agricultura sem mobilização da terra. Em vez de lavrarem os campos na Primavera enquanto os adubavam, os agricultores começaram a espalhar granulado sobre o solo. Por lavrarem menos, a erosão do solo diminuiu, mas a quantidade de alimento para as algas que escorria para o lago aumentou inesperadamente. Quando o fósforo era introduzido a cerca de 20 centímetros de profundidade, permanecia bem incorporado no solo. Contudo, quando o granulado permanece sobre os cinco centímetros da camada superior do solo, o fósforo dissolve-se e escorre para o lago sempre que os campos ficam saturados de água devido à precipitação.

Segundo Laura Johnson, o número de dias com cinco, ou mais, centímetros de precipitação mais do que duplicou nas últimas duas décadas. “É esse o grande problema.” A mentora de Laura, a ecologista Jennifer Tank, da Universidade de Notre Dame, tem colaborado com os agricultores para definir métodos que permitam reduzir as escorrências provenientes dos seus campos e prepará-los para os rigores de uma nova era climática.

As mesmas chuvadas de Primavera que fizeram o fósforo escorrer para o lago Erie obrigaram os agricultores da região a atrasarem o plantio primaveril em 2019. Os campos estavam tão molhados e lamacentos que essa acção estava várias semanas atrasada. “Este ano [2019], um número recorde de hectares ficou por plantar”, afirmou Kaleb Kolberg, de 26 anos, agricultor de Hartford, no estado de Michigan, a quase 20 quilómetros de distância das margens do lago Michigan. A maioria das pessoas não conseguiu plantar um quarto dos seus terrenos. Apontando na direcção de um dos seus próprios campos, atrás da sua casa, Kaleb disse: “Aquele milho costuma estar duas vezes mais alto. Plantámos em condições nunca vividas antes. Costumamos colher o milho em meados de Setembro. Este ano a colheita vai acontecer em meados de Outubro.”

Tinha sido um ano cheio de pressões, como se não bastassem os habituais desafios da vida agrícola. “Custa 500 euros cultivar um acre [0,4 hectares] de milho”, disse este antigo e musculado jogador de futebol americano universitário, que se descreve a si próprio como maníaco da lavoura. Só um tractor custa 250 mil euros. “Assumimos todos os riscos à cabeça, na esperança de colhermos as recompensas no Outono.” O ano correu melhor a Kaleb do que à maioria dos agricultores. Em colaboração com Colleen Forestieri e Erin Fuller, da administração regional para a conservação, e com Jennifer Tank, ele plantara azevém e trevo-encarnado como culturas de cobertura durante vários anos para proteger a sua terra nos períodos de pousio. Andando de carro pelo Sudoeste do Michigan com Kaleb na sua carrinha de caixa aberta, numa tarde quente de Agosto, nesta paisagem aplanada pelos glaciares, até um eterno bicho da cidade como eu conseguia identificar as quintas que tinham sido plantadas com culturas de cobertura. O milho cultivado nos campos que não as tinham era nitidamente mais baixo, por vezes vários centímetros. Alguns campos nem sequer estavam plantados. Apresentavam-se demasiado molhados para o tractor poder operar. Em alguns, ainda se avistavam charcos de água estagnada.

Kaleb disse que conseguira plantar mais na sua quinta do que os vizinhos graças às culturas de cobertura, que absorviam a humidade do terreno. “Com as culturas de cobertura, ficamos preparados para os dois extremos”, acrescentou. “Água a mais e água a menos.”

Além de assegurar a viabilidade económica de agricultores como Kaleb Kolberg, o uso generalizado de culturas de cobertura impede o escoamento do fluxo de nutrientes que alimentam as eflorescências de algas. “Precisamos de proteger cada centímetro quadrado de terra”, disse Jennifer Tank. “Isso mudaria completamente o cenário. Precisamos de culturas de cobertura à escala de toda a bacia hidrográfica.”

Apesar de todas as suas vantagens, a adopção das culturas de cobertura é difícil. “As culturas de cobertura exigem os mesmos cuidados que as culturas de rendimento”, explicou Jennifer. Os agricultores não ganham dinheiro com as culturas de cobertura.

Por enquanto, as escorrências de adubos provenientes de muitas explorações agrícolas continuam a não ser regulamentadas ao abrigo da Lei da Água Limpa, mesmo depois de uma eflorescência alimentada por fósforo ter levado ao encerramento da rede de abastecimento de água de uma cidade de grande dimensão.

Na sexta-feira, dia 1 de Agosto de 2014, por volta das 7 horas da tarde, o director dos serviços públicos da cidade de Toledo recebeu um telefonema do químico-chefe do departamento. Testes de rotina feitos à água da cidade demonstraram que a mesma fora poluída com microcistina, uma toxina a ferverem a água, pois isso só serviria para concentrar o veneno. Por isso, às 2 horas da manhã, a cidade emitiu um alerta para a população não consumir água. Durante mais de dois dias, até a água estar tratada, os quase 500 mil habitantes de Toledo não puderam beber água da torneira.

Passados seis anos, a catástrofe ainda deixa irritado o actual presidente da câmara municipal de Toledo, Wade Kapszukiewicz. “Houve empresas que fecharam as portas”, disse. “Hospitais suspenderam intervenções cirúrgicas – sem água, não há cirurgias. Foi um acontecimento traumático para a nossa região.”

Do seu gabinete, 22 andares acima da baixa de Toledo, avista-se o rio Maumee. Há três anos, contou ele, quando uma eflorescência no lago Erie alastrou rio acima, o Maumee parecia ter sido tingido de verde. A cidade gastou mais de 840 milhões de euros a aperfeiçoar o seu sistema de protecção contra tempestades e a estação de tratamento de águas, incluindo melhoramentos destinados a filtrar e eliminar a microcistina e uma bóia com sensores especiais que vigiam a extensão das eflorescências algais perto da conduta de tomada de água da cidade, localizada no lago Erie. Por isso, não é provável que a crise se repita. É uma informação reconfortante no meio de uma pandemia. Imaginem uma cidade sem água neste momento.

No entanto, Toledo ainda está a pagar pelo despejo descontrolado de fósforo e de outros adubos no lago, pois nem todos os agricultores são tão conscientes como Kaleb Kolberg. “Eu não preciso de estar acordado às 5h10 para saber que o Sol irá erguer-se a leste”, disse o autarca. “Também não preciso de fazer mais uma visita a mais uma quinta para saber que as escorrências da agricultura estão a poluir o lago Erie. Todos sabem isso. A única pergunta a fazer é a seguinte: O que vamos fazer para pará-las?”, disse. “Eu não sou contra os agricultores. Sou contra a poluição. Sei que muitos agricultores estão a experimentar tecnologias, frequentemente arrojadas, para reduzirem o escoamento agrícola. O maior problema é causado pelas mega-explorações agrícolas, especialmente as operações concentradas de pecuária (CAFO). Não são as algal. Não era uma opção aconselhar os habitantes quintas familiares.”

As CAFO, operações concentradas de produção animal, são essencialmente fábricas onde se produzem animais. Quando o número de animais existentes numa CAFO ultrapassa os limites impostos pela EPA, essa CAFO é obrigada a reger-se pelas leis da água limpa, mas muitas mantêm-se imediatamente abaixo dos limites legais e escapam à regulamentação. Segundo as conclusões de um estudo recente, o número de animais produzidos entre 2005 e 2018 nas explorações de produção animal na bacia hidrográfica do Maumee, com 21.500 quilómetros quadrados, mais do que duplicou: de nove milhões para vinte milhões. A quantidade de estrume aplicada nos campos durante o mesmo período aumentou cerca de 40%.

Enquanto não forem impostas restrições mais apertadas ao escoamento de fósforo, as eflorescências de algas continuarão a ser uma característica permanente do lago Erie. Um cientista contou-me que, a manterem-se as tendências actuais, a ocorrência de eflorescências aumentará para o dobro em 2040. “Não se trata de um problema monetário”, afirmou Wade Kapszukiewicz. “É um problema de responsabilização.”

A imensidão dos Lagos esconde a sua fragilidade. Ao longo de vários meses, visitei-os todos, excepto o Huron. Cada lago merece ter a sua própria história. O Michigan e o Huron, que são, de facto, duas camadas do mesmo lago, têm um problema oposto ao do lago Erie: estão demasiado limpos.

Centenas de biliões de mexilhões invasores quase eliminaram a totalidade do plâncton existente nas suas águas: os mexilhões conseguem filtrar toda a água do lago Michigan em cerca de uma semana. Os níveis de mercúrio e de PCB na bacia hidrográfica do lago Ontário são tão elevados que não é seguro ingerir muitos dos seus peixes. Encontrei-me com dezenas de investigadores que dedicaram carreiras inteiras a tentarem compreender e proteger os lagos. Comandantes de navios de recreio contaram-me como as eflorescências de algas arruinaram a sua subsistência. E descobri que começaram a aparecer eflorescências nocivas no lago Superior, o menos degradado dos lagos.

A melhor descrição para o destino dos lagos e dos milhões de habitantes que deles dependem pode encontrar-se numa palavra em idioma anishinaabe: zaasigaakwii, para a qual não existe qualquer equivalente em língua inglesa.

“Refere-se às aves que chegam na Primavera e que são então atingidas por uma grande tempestade”, afirma Michael Wassegijig Price, um especialista em conhecimento ecológico tradicional da Comissão Indígena para os Peixes e a Vida Selvagem dos Grandes Lagos. “É aquilo que acontece quando somos atingidos por um acto inesperado na natureza.” Como tempestades duradouras ou eflorescências de algas num lago do Norte.

Há 18 anos, Tom Borg viveu a sua própria experiência de zaasigaakwii. Num dia de Fevereiro, deslizava sobre o lago congelado perto de sua casa na sua moto de neve, à semelhança do que fizera vezes sem conta noutros dias de Inverno. Não estava longe da orla costeira florestada quando, de repente, o gelo cedeu debaixo de si. Felizmente, a água tinha apenas 90 centímetros de profundidade, “mas estava tão brutalmente fria como a nove metros”, contou. “Senti dores horríveis, como se tivesse punhais espetados nas pernas.” Sem saber bem como, conseguiu retirar a moto de neve do lago e conduzi-la até à cabana, onde acendeu uma fogueira que evitou uma hipotermia que, de outro modo, seria garantida. “Se não fosse aquilo que o meu avô me ensinou (manter-me calmo e não entrar em pânico), talvez não tivesse sobrevivido.”

Numa fria manhã de Setembro, a enseada da baía Kama parece serena e intacta, imune a qualquer perigo. Pouco depois, a margem desaparece de vista, quando eu e Tom começamos a subir por um trilho íngreme, ladeado de áceres. Algumas destas árvores parecem brilhar, devido à alquimia da estação que torna as suas folhas vermelhas como o fogo. Passamos por um riacho e por uma pequena cascata, cujas águas em breve se reunirão ao Grande Lago dos anishinaabe, acabando por precipitar-se do alto das cataratas do Niágara. A cada passo que damos, trilho acima, as ameaças que pairam sobre os cinco mares de água doce do continente parecem dissipar-se momentaneamente, transformando-se em problemas de outro mundo, de outra época.

Tom faz uma pausa e sugere que eu leve comigo para casa uma folha de ácer, uma dádiva da bacia hidrográfica, um talismã tão frágil e maravilhoso como o lago lá em baixo. Mais tarde, reflectindo sobre o dia em que quase morreu de frio, disse-me que talvez não tivesse sido tão cuidadoso como deveria. Se reparasse com mais atenção no gelo, talvez pudesse ter visto o perigo que o aguardava. “A natureza não é malévola”, disse. “É inclemente.”