Numa auto-estrada rural do Norte da Califórnia, o pneu de um automóvel furou. O metal da roda raspou na estrada e as faíscas deram origem a um incêndio que avançou rapidamente pela floresta seca, criando tornados de chamas rodopiantes e consumindo dezenas de milhares de hectares, usando como combustível tudo o que encontrava pelo caminho. Quando o fogo galgou o rio Sacramento e se encaminhou para a cidade de Redding, Keith Bein preparou o seu novo equipamento: um atrelado com dois carros eléctricos minúsculos, uma série de tubos e instrumentos e uma geringonça branca que parece a um farol em miniatura.
Keith trabalha como cientista atmosférico na Universidade da Califórnia, na cidade universitária de Davis, a cerca de 240 quilómetros para sul de Redding. No momento em que fixou o atrelado carregado à carrinha e começou a conduzir para norte do estado, o Incêndio Carr de 2018 (as faíscas surgiram perto de uma central eléctrica chamada Carr, o que justificou o nome mediático) já era um dos maiores incêndios florestais da história da Califórnia. Matara seis pessoas, incluindo dois bombeiros. Estava a queimar árvores, pradarias, cabanas de montanha, pontes pedonais, postes de electricidade, vedações e carros estacionados. Acabara de incendiar, nos arredores de Redding, um subúrbio chamado Lake Keswick Estates, ou seja, todas as infra-estruturas de habitações unifamiliares: isolamento, telhas, frigoríficos, tinta.
Quando o incêndio Glass Fire alastrava pelos condados de Napa e Sonoma, na Califórnia, em Setembro de 2020, os bombeiros combateram o seu avanço ateando um fogo controlado, de modo a privar o incêndio florestal de combustível. Esta estratégia comum também produz fumo e os bombeiros florestais não usam respiradores com filtros. Não existem respiradores leves e eficazes para estas equipas poderem usar enquanto trabalham, pois os seus turnos podem durar muitas horas, sem interrupções, e exigem longas caminhadas com equipamentos pesados em terrenos íngremes. Apesar da excepcional forma física dos bombeiros, os investigadores temem que, com os incêndios a aumentar de tamanho e duração, tudo isto se repercuta na sua saúde. Estudos recentes para avaliar o seu impacte analisaram amostras de sangue dos bombeiros e forneceram monitores de bolso para medir a poluição.
Ao longo da extensa trajectória do Incêndio Carr, havia fumo por todo o lado, crescendo como vagas, cobrindo, espalhando-se milhares de quilómetros para lá das chamas. De todas as forças que poluem o ar que respiramos, o fumo dos incêndios florestais é a que mais fascina Keith Bein.
O investigador quer determinar o que existe, ao certo, nesse fumo, a forma como a sua química difere de um fogo para outro e quais as consequências dos mega-incêndios inéditos deste século para a poluição atmosférica e para a saúde humana. No Oeste da América do Norte e na Austrália, o ano de 2018 fora o pior ano desde que há registos históricos… até 2020 o eclipsar.
“Um evento como este acontecia uma vez na vida”, resume Keith. “Agora acontece todos os verões. É um grande problema de saúde pública.” Por isso, o investigador rumara a Lake Keswick Estates, onde entretanto o solo carbonizara, os moradores tinham sido evacuados e quarteirões inteiros estavam arrasados até aos alicerces fumegantes. Ligou a geringonça que, na verdade, é uma bomba de ar sofisticada com um sensor. Tirou tubos e monitores dos carros eléctricos, que recarregam a energia do equipamento. Doíam-lhe os olhos e o nariz. Mais tarde, Keith explica a sensação: “Imagine o que é estar sentado junto de uma fogueira e, de repente, o vento muda e sopra o fumo directamente para a sua cara. É absolutamente horrível.”
Embora as chamas tivessem seguido em frente, Keith e outros investigadores sabem que os objectos queimados produzem o seu próprio fumo intensamente tóxico. Sabem que a construção de tantas habitações no meio de zonas selvagens, ou junto delas, criou comunidades vulneráveis, quando o aquecimento do clima seca as florestas, transformando-as em matéria inflamável. Chamam a estes lugares interface natural-urbano, ou WUI. Eles sabem que os gigantescos incêndios WUI produzem fumo gigantesco: a paisagem queimada aliada à poluição gerada pelos edifícios carbonizados junta-se e dá origem a uma mistura nociva.
O que existe ao certo na mistura?
E o que acontece aos seres humanos e a outros animais que respiram emissões provenientes de tão enormes conflagrações? Estas perguntas são uma peça cada vez mais urgente do esforço de compreender e reduzir a poluição atmosférica, mas as respostas são mais esquivas do que possa pensar. Imagine o que será trazermos o fumo de um incêndio florestal verdadeiro para o interior de um laboratório de investigação. Precisamos de transformar-nos no equivalente a um caçador de tornados, explicando o que andamos a fazer sempre que encontramos uma barricada policial, como Keith Bein faz quando a situação o exige. Ou equipar um avião de carga C-130 com tubos sugadores de fumo na fuselagem e voar directamente para as plumas dos incêndios, como fez a equipa de investigação que passou o Verão de 2018 a fazer voos de reconhecimento curtos nos estados do Colorado e de Idaho.
“Transformamos o avião num laboratório de química voador”, diz a cientista Emily Fischer, que lidera a equipa de investigadores que analisa as amostras recolhidas no fumo. Os ingredientes incluem monóxido de carbono, cianeto de hidrogénio e mais de uma centena de outros gases, bem como as perigosas partículas finas (PM2.5) descritas por Beth Gardiner na reportaagem (ver página 26). Não há discussão sobre o risco de saúde mais imediato: os incêndios florestais são poluentes, seja o fumo WUI ou “natural”, bastando alguns dias de exposição a este fumo para que os doentes asmáticos ou com outras debilidades tenham de recorrer aos serviços de urgência hospitalares.
Também é possível que respirar o fumo de um incêndio florestal desencadeie o tipo de alterações celulares que, mais tarde, podem causar desastres de saúde: insuficiência cardíaca, doença pulmonar, AVC. Também têm surgido questões relacionadas com a doença de Alzheimer. É aliás um desafio para a investigação descobrir a melhor forma de explorar estas ligações, na medida em que não é aceitável causar um incêndio florestal para fins experimentais. Os investigadores têm de levar em conta o stress físico e emocional potencialmente causado por um incêndio florestal, mesmo em pessoas que não estão no caminho das chamas. E o fumo em si está constantemente a alterar-se durante um incêndio, independentemente daquilo que estiver a arder, à medida que os seus componentes aquecem, arrefecem e interagem. “A química de cada fogo pode ter consequências diferentes em termos de saúde”, diz Lisa Miller, imunologista do Centro Nacional de Investigação com Primatas da Califórnia. “Vamos demorar algum tempo a resolver isto.”
Cerca de quatro mil símios vivem no centro de primatas, muitos dos quais em recintos ao ar livre e foi num dia cheio de fumo durante os terríveis incêndios ocorridos no estado, em 2008, que Lisa teve a ideia de começar um estudo de vários anos com o mais recente grupo de crias de macacos-rhesus. Elas estavam a passar as primeiras semanas de vida a inalar fumo de incêndios florestais.
A equipa e os veterinários de centro têm vigiado de perto o grupo que foi exposto na primeira infância, actualmente com 12 anos de idade. Os macacos não evidenciam problemas de saúde suficientemente graves para necessitar de tratamento. Existem, contudo, sinais inquietantes. Quando as suas amostras de sangue são expostas a infecções no laboratório, as respostas imunitárias são lentas. E comparados com as crias nascidas em 2009 (um ano com ar limpo), os macacos que inalaram fumo denso nas primeiras semanas de vida têm pulmões e vias aéreas debilitados. Os paralelos que podemos traçar com os seres humanos são preocupantes. “Geralmente, não somos diagnosticados com doença pulmonar obstrutiva crónica, ou fibrose, antes dos cinquenta e muitos ou sessenta e poucos anos”, diz Lisa Miller. “Por isso, talvez estejamos a constatar as fases iniciais de uma doença pulmonar crónica.”
Nuvens de fumo provenientes do incêndio Bobcat Fire movimentam-se acima de cabos de electrici- dade no deserto de Mojave. Estes megafogos, que queimam pelo menos 40 mil hectares, são tão intensos que criam o seu próprio vento, soprando o ar poluído muito para lá da zona incendiada.
Vale a pena lembrar que a maior parte da poluição atmosférica do mundo ainda tem origem noutras fontes: nos escapes automóveis, em fornos, em unidades fabris, em queimadas agrícolas para eliminação de folhagem e nas fogueiras domésticas de cozinha. No entanto, os incêndios florestais estão a multiplicar-se e a crescer tão depressa que já temos novo vocabulário para eles. Megafogo não tem definição formal, mas costuma ser aplicado a um mínimo de 40 mil hectares de terreno queimado. Há alguns anos, quando a revista “Wildfire Today” pediu aos leitores que sugerissem nomes para conflagrações ainda maiores, um leitor apresentou uma proposta. Talvez o visse nas notícias do Verão passado: Gigafogo.
Os Megafogos destroem muito mais do que o ar que respiramos e, evidentemente, as medidas necessárias para os gerirmos podem ser intimidantes, dispendiosas ou contra-intuitivas. Intimidantes porque exigem um travão ao aquecimento global, que está a aquecer as zonas selvagens, a secar a folhagem, a matar árvores e a causar fenómenos meteorológicos estranhos – como os 14 mil raios que, em 2020, desencadearam o gigafogo August Complex na Califórnia, responsável pela queima de mais de quatro mil quilómetros quadrados. “Estamos a usar termos como ‘mega’ e ‘giga’, mas na verdade isto é apenas o princípio”, diz a epidemiologista Fay Johnston, da Universidade da Tasmânia, uma das principais investigadoras de incêndios florestais do mundo. “Se nada fizermos em relação às alterações climáticas, o pior ainda está para vir.”
Incêndios em regiões distantes transformam o céu de São Francisco num cenário semelhante ao de um filme distópico. As autoridades regionais emitiram um alerta em que as pessoas são encorajadas a não andar de automóvel, a não fazer fogo e a permanecerem nas suas habitações quando a qualidade do ar é perigosa para exigir precauções especiais. Em 2020, o número de alertas motivados por incêndios florestais mais do que duplicou o recorde anterior.
Dispendiosas porque debilitam agressivamente as terras bravias, arrastando árvores mortas e outros detritos secos acumulados, por termos passado muitos anos a apagar fogos de maneira indiscriminada. Esta tarefa colossal comportaria enormes despesas em maquinaria e mão-de-obra.
Contra-intuitivas porque uma das opções é aproveitar o fogo e permitir que os mais pequenos incêndios progridam, sem que as casas e povoados corram perigo. É a maneira como a natureza limpa os detritos e incentiva o crescimento de novas plantas. Os povos nativos sabiam aproveitar as chamas com contenção, de forma prudente, como ferramenta de ordenamento do território. Quase todas as propostas apresentadas contra os megafogos incluem um pedido para mais fogos prescritos, ou seja, planeados, considerando atentamente o vento e o impacte sobre as pessoas que vivem nas proximidades. É verdade que esses fogos mais pequenos também fazem fumo, mas não tanto. Segundo Donald Schweizer, investigador de qualidade do ar da Universidade da Califórnia, “não existem opções ‘sem fumo’”.
Mesmo nas regiões onde a legislação regulamentadora da pureza do ar conseguiu reduzir outras formas de poluição atmosférica, os purificadores de ar e os monitores pessoais de qualidade do ar são uma sombria indústria em crescimento. Segundo Keith Bein, quase tudo parou no seu laboratório no início do ano passado, devido à pandemia, quando ele e a sua equipa estavam a trabalhar naquilo a que chama “a primeira camada” de extracção de informação química e toxicológica das amostras de fumo recolhidas no incêndio Carr Fire. Keith e os seus colaboradores estavam empenhados em prosseguir a recolha de amostras e, por isso, quando a sua unidade transportada foi obrigada a parar, montaram um local de amostragem no telhado de um edifício da universidade. Um aluno de pós-graduação continuou a recolher e a substituir os filtros da bomba de ar e, no Inverno, quando os incêndios históricos de 2020 finalmente se extinguiram, Keith recolhera amostras de mais de seis dezenas de folhas de papel de filtragem de qualidade científica, cheias de provas e embrulhadas em papel de cera de modo a garantir a sua protecção. “Já tive muitos pedidos para analisar estas amostras”, diz. Por enquanto, está a armazená-las num congelador, a -80°C.