Território de pastores, a cadeia montanhosa da Estrela foi sempre motivo de mitos e mistérios. À montanha, só se ia em caso de necessidade e foi preciso esperar até ao final do século XIX para uma primeira expedição de sábios ousar subir a serra e aplicar métodos científicos. A Expedição Científica de 1881 conduziu a nata da ciência portuguesa ao território bravio da Estrela, com o propósito de documentar a diversidade de fauna, flora, geologia, clima e arqueologia. As lagoas foram, naturalmente, motivo de interesse, mas uma expedição tão generalista não poderia desbravar todos os mistérios da serra.

A lagoa do Peixão foi, naturalmente, estudada. Os naturalistas avistaram patos nas margens. Os botânicos saudaram o facto de, nas suas margens, existirem espécies de flora inexistentes nas lagoas de cotas mais altas e os geólogos comprovaram que a lagoa teria origem glaciária. “Perto dos Cântaros está uma das mais bonitas, a que deles toma o nome, e além, passadas duas dobras da montanha, está a Lagôa da Paxão”, anotou o diário da expedição.

“A bacia desta lagoa é menos pitoresca do que a Escura e a dos Cântaros, mas o vale que se lhe desdobra próximo e as suas vertentes são muito mais abundantemente vegetalizados e vêem-se enfim aí árvores de diversas espécies, embora em exemplares isolados.” Passaram 140 anos sobre esta expedição e a lagoa do Peixão voltou a ser o destino de uma equipa de investigadores. Carregados de equipamento, negoceiam cada passo entre os blocos de granito com que os glaciares moldaram a paisagem. Caminham motivados pelo desejo de descrever o clima de um passado recuado. A história geológica da serra e das suas lagoas encerra o registo das transformações climáticas após a última glaciação. No fundo das lagoas, sedimentos acumulados escondem vestígios milenares de fauna e flora.

A serra da Estrela continua a ser um laboratório vivo. Armand Hernandez, paleoclimatologista da Universidade da Corunha, e Alexandre Ramos, climatólogo do Instituto de Meteorologia e Investigação Climática de Karlsruhe, focam agora as suas sondagens nas lagoas mais remotas. “Não são apenas os anéis das árvores ou os espeleotemas que guardam registos climáticos”, afirma o investigador espanhol.

Lagoa do Peixão

UM HOTSPOT PARA "RECONSTRUIR" O CLIMA

“A lagoa do Peixão é um hotspot para a reconstrução do clima, porque foi menos intervencionada pelo homem e é portanto capaz de conservar variações ambientais dos últimos milhares de anos.”

Além da importância científica do local, a lagoa do Peixão é mágica. No dia escolhido para a recolha das amostras, o espectáculo de cortar a respiração é reforçado por milhares de libelinhas que emergem do seu estado larvar enquanto outras sobrevoam a superfície, tentando manter-se a salvo das relas que coaxam à beira da água numa perfeita sinfonia natural.

A bucólica paisagem acústica é interrompida pelo ruído de um helicóptero que se aproxima. A aeronave transporta a pesada plataforma flutuante que servirá de base para este grupo de investigadores durante dois dias. A perspectiva a partir da plataforma é deslumbrante e os picos rochosos do Fragão do Poio dos Cães ou do Cântaro Gordo evocam também os antigos glaciares. Munidos de equipamento de segurança para a eventualidade de alguém cair desamparado à água, os investigadores embarcam no bote insuflável que os transporta até à plataforma. Com eles, terá de ir também o almoço, já que o dia será longo.

Lagoa do Peixão

Assim que as amostras chegam à superfície, os investigadores selam os tubos de PVC depois de adicionarem um conser- vante. Os óculos de sol protegem os olhos desta substância perigosa. As amostras seguem depois para laboratório.

Motivados pelos resultados obtidos na campanha anterior, preenchem agora uma lacuna temporal, alcançando mais fundo a lagoa e recuando no tempo até à era glaciar.Recolhem amostras de sedimentos (cores), em tubos de PVC de seis centímetros de diâmetro e dois metros de comprimento cada. Para chegar à base de granito, é necessário ultrapassar os três metros da coluna de água e quase oito metros de sedimento. Alexandre Ramos lembra que a metodologia destes estudos segue um rigoroso protocolo internacional para minimizar efeitos potencialmente negativos na flora e fauna locais.

“Imagine uma estante onde cada prateleira contém livros que ajudam a entender esse período”, diz Pedro Costa, geólogo da Universidade de Coimbra. “Cada livro conta uma história e, à medida que descemos, recuamos mais no tempo e aprendemos mais.” Pedro Raposeiro, biólogo da Universidade dos Açores, lembra que “o tipo de mosquitos ou pólen enterrados nos sedimentos ajuda a perceber o clima de cada idade”. Trabalhando apressadamente, a equipa recolhe 8,63 metros de sedimentos até chegar ao granito desfeito. Nas amostras, ficam retidos os sedimentos que retêm informação de tudo o que se passou nos últimos milhares de anos.

O helicóptero regressa para recolher a plataforma enquanto os investigadores carregam às costas as amostras de dez quilogramas cada, como se de peças delicadas de porcelana se tratasse. Estes vestígios permitirão esclarecer a cronologia da última glaciação.

o novelo do tempo

As amostras viajaram pelo mundo para serem analisadas com técnicas não invasivas que permitiram conhecer as suas propriedades físicas e químicas. Regressadas a Portugal, foram guardadas em câmara fria no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Desta forma, a temperatura simulada dos sedimentos foi mantida de modo a evitar a sua contaminação por organismos invasores. Por fim, no Laboratório de Sedimentologia e Micropaleontologia do IPMA, a equipa começou a estudar os resultados. Mas estava escrito que o mistério da idade da lagoa ainda se manteria por mais algum tempo.

A pandemia atrasou o estudo, pois forçou o fecho dos laboratórios por todo o mundo. Por fim, controlado o vírus, os investigadores começaram a reconstruir o novelo do tempo e a desvendar o clima do passado com grande minúcia. As amostras confirmaram que o último degelo ocorreu na região da Estrela há cerca de 14.500 anos. O recuo do glaciar formou a lagoa do Peixão, ocupando um antigo covão escavado por glaciares milhares de anos antes.

Lagoa do Peixão

A história de um glaciar expressa numa lagoa. Nos últimos trinta mil anos, a paisagem da serra da Estrela modificou-se radicalmente. Se a pudéssemos então observar, veríamos um gigantesco glaciar cobrindo uma área significativa do território. O recuo do glaciar criou condições para uma explosão de vida. A lagoa do Peixão ganhou então forma. Ilustração: Anyforms Design. Fonte: “The Timing Of The Deglaciation In The Atlantic Iberian Mountains: Insights From The Stratigraphic Analysis Of A Lake Sequence In Serra Da Estrela (Portugal)”, Hernández Et Al., 2023, Espl

1. Auge da glaciação. Há 30 mil anos os glaciares que esculpiram a serra da Estrela, escavando os seus inconfundíveis vales e circos, atingiam o máximo da sua extensão e volume. A serra seria um gigantesco glaciar.

2. Recuo do glaciar. O degelo mais acentuado iniciou-se há 14.500 anos. Foi neste período que o glaciar do vale suspenso da Candeeira recuou, revelando o covão que deu lugar à lagoa do Peixão.

3. O fim da glaciação. Há 13.800 anos, o glaciar já derretera e surgiram na paisagem riachos que alimentaram a lagoa. Mil anos mais tarde, a temperatura voltou a descer e a água congelou pontualmente ao longo de 1.300 anos. Depois, surgiu a vegetação.

Ao longo dos setecentos anos seguintes, a lagoa encheu-se de água e sedimentos turvos. As amostras documentaram também que há 13.800 anos, já sem o glaciar, surgiram na paisagem os pequenos riachos que alimentam e dão vida à lagoa do Peixão. A página seguinte foi escrita há 12.800 anos: os sedimentos da lagoa revelaram um período mais frio, onde a lagoa parece ter atravessado períodos de congelamento duradouro. Por fim, há cerca de 11.700 anos, surgiu a primeira vegetação com a dinâmica actual.

No novelo do tempo, Ricardo N. Santos, paleoclimatólogo do IPMA, estudou inicialmente as plantas e o primeiro centímetro de sedimentos da lagoa, que correspondem aos últimos 20 anos, dedicando-se agora a investigar a vegetação dos últimos dois mil anos com base em 120 centímetros de sedimentos. Nesse intervalo, ao contrário das plantas aquáticas, a vegetação terrestre, como os juniperus ou zimbros, mostra evidências de maior adaptação a condições de frio extremo. “Queremos descobrir o que os sedimentos nos revelam nos últimos 11.700 anos”, explica Armand. “As janelas de tempo mais curtas, de centenas a dezenas de anos, desvendam os períodos mais quentes e frios.”

O clima está a aquecer e neva cada vez menos na serra da Estrela. À nossa escala temporal, as alterações climáticas são uma tragédia, mas será arrogância perder de vista que a Terra tem muito tempo pela frente. Não sabemos o que acontecerá à nossa espécie e é uma lição de humildade olhar para as transformações do planeta à escala geológica.

 

Artigo publicado originalmente na edição de Abril de 2023 da revista National Geographic.