Esta reportagem conta com fotografias de Charlie Hamilton James que vai estar em Portugal para uma conferência no âmbito do National Geographic Summit, no dia 11 de Abril, no Coliseu de Lisboa.
Um grifo de Rüpell reivindica uma zebra morta no Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia, enquanto outros grifos de Rüpell e grifos-africanos (Gyps africanos) se aproximam. É provável que mais abutres se juntem à festa. As aves conseguem limpar uma carcaça em poucos minutos.
Ao por do Sol, este gnu parece condenado: doente ou ferido, afasta-se quilómetros da sua manada na planície do Serengeti, na Tanzânia. Quando o Sol renasce, o animal solitário está morto, envolto por um tumulto rodopiante de abutres. Cerca de quarenta aves procuram uma forma de se infiltrarem no festim. Alguns necrófagos aguardam pacientemente, de olhos postos no prémio. A maioria, porém, adere ao combate de gladiadores. Com as garras esticadas, empinam-se e arranham, lutam e fintam. Um salta para cima do outro, depois monta a sua vítima que se contorce e empina. O ajuntamento separa-se e avoluma-se numa vaga preta e castanha de pescoços ondulantes, bicos cortantes e asas destruidoras. Do alto, um fluxo constante de novos comensais desce sobre eles, de cabeça baixa, saltando e tropeçando na sua ânsia de se juntar à multidão.
Porquê toda esta algazarra se a carcaça em disputa é tão grande? Qual a razão para esta ganância inapropriada? O gnu tem a pele grossa e, como não foi morto por carnívoros, falta-lhe uma abertura suficientemente grande para permitir acesso generalizado. Por isso, as aves mais ousadas competem furiosamente por esse prémio.
Enquanto a multidão cacareja e grasna, um grifo-africano introduz a cabeça na órbita ocular do gnu e sorve apressadamente, com a sua língua coberta de sulcos, tudo o que consegue antes de ser arrancado do seu lugar à mesa. Outro grifo-africano mergulha numa narina, enquanto um grifo de Rüppell se debruça sobre a extremidade oposta, avançando 20 centímetros pelo ânus do gnu antes de outra ave o afastar e enfiar a sua própria cabeça no tracto intestinal. E assim se passa a refeição: 40 aves desesperadas investem contra cinco buracos do tamanho de bolas de golfe.
Até Darwin lhes chamou "nojentos", mas a utilidade dos abutres supera a sua repugnância: eles limpam carcaças que, de outro modo, apodreceriam e disseminariam doenças pestilentas. Na imagem, um grifo de Rüpell (Gyps ruepellii) arranca tecidos da traqueia de um gnu morto.
Por fim, dois abutres-reais avançam. Estes animais de aparência espectacular têm mais de um metro de altura e quase três metros de envergadura de asas. Possuem rostos cor-de-rosa, bicos grandes e acentuadamente aduncos, e pescoços fortes adornados com pele rosada semelhante a um crepe. Enquanto um abutre-real perfura insistentemente a espádua do gnu, o outro escava atrás de uma cavidade nasal na esperança de encontrar larvas de mosca. Os tendões e a pele estalam. Agora, um grifo-africano enfia a cabeça na garganta do gnu e arranca um pedaço de traqueia com 20 centímetros. Antes de o grifo conseguir apreciar o seu pitéu, um marabu com 1,20 metros de altura rouba-lhe o troféu e atira-o ao ar, engolindo-o inteiro. Graças aos esforços dos abutres-reais, que preferem tendões a músculos, o gnu está agora completamente aberto. Cabeças atiram sangue e muco pelo ar, vísceras escorrem pelos bicos, duas aves jogam à corda, puxando um cordão de três metros de intestino revestido de poeira e fezes.
África já perdeu uma das suas sete espécies de abutre – o abutre-preto – e outras sete figuram agora nas listas de espécies ameaçadas ou criticamente ameaçadas.
À medida que o gnu encolhe, vai aumentando o círculo de aves saciadas que descansa entre o capim. De papo inchado, os abutres pousam a cabeça sobre as asas dobradas e fecham as suas membranas nictitantes. Acabaram-se os sons, acabou-se a fúria. Plácidos como patos suburbanos, descansam, em paz com o mundo.
O abutre é talvez a ave mais vilificada do planeta, uma metáfora viva da ganância e da rapacidade. O “Levítico” e o “Deuteronómio” classificam os abutres como impuros, criaturas que devem ser consideradas abominações pelos filhos de Israel. No diário que manteve durante a sua viagem a bordo do H.M.S. Beagle em 1835, Charles Darwin caracterizou as aves como “nojentas”, com cabeças carecas “formadas para chafurdar na podridão”. No entanto, a história não é tão linear. Entre as diversas adaptações deste animal, contam-se a capacidade de vomitarem todo o conteúdo do seu estômago quando ameaçados, de modo a garantirem uma fuga rápida.
Um grifo de Rüpell faz uma pausa na refeição. O pescoço e a cabeça do grifo de Rüpell têm poucas penas para prevenir que o sangue, tripas e matéria fecal fiquem agarrados ao animal após este mergulhar bem fundo no interior de uma carcaça.
Será isto repugnante? Talvez. Mas dificilmente se pode afirmar que os abutres não têm valores redentores. Não matam (frequentemente) outros animais, é provável que formem pares monógamos, sabemos que partilham os cuidados parentais das suas crias e passeiam e banham-se em grupos grandes e amigáveis. Acima de tudo, prestam ao ecossistema um serviço essencial altamente menosprezado: a limpeza e reciclagem rápida dos animais mortos. Segundo uma estimativa, os abutres que vivem, ou se integram, no ecossistema do Serengeti durante a migração anual de 1,3 milhões de gnus entre o Quénia e a Tanzânia consumiram historicamente mais carne do que todos os mamíferos carnívoros do Serengeti juntos. E fazem-no depressa. Um abutre pode engolir cerca de um quilograma de carne num minuto. Um grupo de tamanho considerável pode desfazer uma zebra – do focinho à cauda – em 30 minutos. Sem os abutres, as carcaças fedorentas demorariam mais tempo a desaparecer, as populações de insectos aumentariam de forma explosiva e haveria disseminação de doenças, contagiando pessoas, animais de criação e outros animais selvagens.
Este magnífico acordo, de contornos moldados pela história, não é imutável. Com efeito, em algumas regiões, corre o risco de chegar ao fim. África já perdeu uma das suas sete espécies de abutre – o abutre-preto – e outras sete figuram agora nas listas de espécies ameaçadas ou criticamente ameaçadas.
Alguns, como o abutre-real, encontram-se predominantemente em áreas protegidas e outras populações regionais do abutre do Egipto e do quebra-ossos estão quase extintas. Segundo Darcy Ogada, directora-adjunta dos programas africanos do Peregrine Fund, os abutres e outras aves necrófagas, “são o grupo avícola funcional mais ameaçado do mundo”.
Num dia soalheiro de Março, Darcy viaja com o seu colega Munir Virani pela região queniana de Masai Mara. Munir deslocou-se aqui para falar com os pastores sobre as suas vacas. Aparentemente, a pastorícia é essencial para o bem-estar dos abutres. Munir explica como, nos últimos anos, os maasai arrendaram as suas terras, que circundam a secção norte da Reserva Nacional Masai Mara, a projectos de conservação criados para isolar a vida selvagem excluindo os pastores e o seu gado. Alguns maasai afirmam que estas zonas atraíram mais leões e outros carnívoros para a região, pois as áreas de conservação são contíguas e não vedadas. Entretanto, populações de gnus e outros ungulados do ecossistema enfrentam ameaças como a caça furtiva, a seca prolongada e a conversão da savana em terrenos de cultivo e de promoção imobiliária. Como se estas notícias não fossem já, por si sós, bastante negativas para os abutres, ainda há pior.
Em Durban, na África do Sul, um vendedor ambulante mostra cabeças de abutre como remédio de medicina tradicional. Seco e fumado, o cérebro do abutre também permite, supostamente, ver o futuro. O cenário parece negro para as aves. Seis de oito espécies de abutres do país encontram-se ameaçadas.
Munir pergunta a todos os maasai que encontramos se perderam recentemente gado devido a predadores. A resposta é sempre: “Sim e os meus vizinhos também.” Os leões costumam atacar de noite, quando o gado está recolhido no interior de bomas, os currais cercados por arbustos espinhosos. Os leões rugem, o gado aterrorizado começa a correr, atira-se contra o portão do boma e dispersa-se. Os cães ladram, acordando os donos, mas geralmente é tarde de mais. A morte de uma única vaca representa um prejuízo de 30 mil xelins (cerca de 280 euros), um golpe significativo para famílias que usam o gado como moeda (um boi pode valer 100 mil xelins).
Seguem-se as retaliações: os homens prendem os cães, recuperam o que resta do animal abatido pelo leão e polvilham-no com um tipo genérico de carbofurão, um pesticida barato e de actuação rápida que costuma ser vendido ilegalmente. O leão regressa para se alimentar, muito provavelmente acompanhado pela família, e o bando inteiro morre.
Segundo estimativas dos investigadores, o Quénia perde anualmente cem leões nestes conflitos. E restam cerca de 1.600 no país. Inevitavelmente, os abutres também visitam a carcaça ou comem os próprios leões envenenados. Independentemente da via, as aves, que se alimentam em bandos compostos por mais de cem indivíduos, também morrem.
Os abutres são amantes e guerreiros. É provável que sejam monogâmicos.
Custa-nos acreditar que bastem alguns grânulos de um composto fabricado para matar minhocas e outros invertebrados para derrubar um animal cujos sucos gástricos são suficientemente ácidos para neutralizar a raiva, a cólera e o antraz. Com efeito, o carbofurão nem aparecia no radar de Darcy Ogada até 2007, quando ela começou a receber mensagens de correio electrónico dos seus colegas sobre leões envenenados. “Ficámos intrigados”, comenta. O turismo é a segunda maior fonte de receita externa do Quénia e os leões são a principal atracção nacional. Em 2008, cientistas e representantes de grupos de conservação e agências governamentais reuniram-se em Nairobi para partilhar informação sobre envenenamentos e planear uma reacção. “Houve quem ficasse de queixo caído”, recorda Darcy. “O problema era muito maior do que qualquer um de nós, trabalhando a nível local, poderia supor.” Quando ela e outras pessoas começaram a estudar o problema, estimaram que os envenenamentos representariam 61% das mortes de abutres em toda a África.
A ameaça antropogénica é agravada pela biologia reprodutiva dos abutres: só atingem a maturidade sexual aos 5 ou 7 anos de idade, geram apenas uma cria a cada um ou dois anos e 90% dos seus juvenis morrem no primeiro ano. Segundo projecções realizadas, ao longo dos próximos 50 anos o número de abutres no continente deverá diminuir 70 a 97%.
Os abutres são amantes e guerreiros. É provável que sejam monogâmicos. Vivem 30 anos em estado selvagem e são gentis com os parceiros. Porém, numa escaramuça em redor de uma carcaça (à direita), são concorrentes agressivos, com a sua e outras espécies. Os abutres-reais (Torgos tracheliotos, à esquerda)) são conhecidos por serem particularmente afectuosos.
Por muito má que a situação seja em África, tem sido pior noutros sítios. Na Índia, populações dos abutres mais comuns, como o abutre-indiano-de-dorso-branco, o abutre-de-bico-longo e o abutre-de-bico-estreito, sofreram um declínio superior a 96% numa única década. Em 2003, investigadores do Peregrine Fund estabeleceram uma ligação definitiva entre as carcaças de aves e o gado tratado com um anti-inflamatório conhecido pelo nome comercial de diclofenac. Inicialmente prescrito para a artrite e outras dores em seres humanos, o fármaco foi aprovado para uso veterinário em 1993, mas causa insuficiência renal aos abutres: autópsias revelaram órgãos revestidos por cristais brancos.
A mortandade ocorrida na Índia atraiu muita atenção pelos efeitos alarmantes provocados a jusante. A Índia tem uma das maiores populações de gado do mundo, mas a maioria dos indianos não come carne de vaca. Quando milhões de abutres foram vítimas de intoxicação, o gado morto começou a amontoar-se. Depois, a população de cães – libertada para competir com os abutres por carcaças de animais – aumentou em sete milhões, atingindo 29 milhões de animais num período de onze anos. Como resultado, aumentaram dramaticamente as mordeduras de cão: 38,5 milhões. As populações de ratos explodiram. Houve quase cinquenta mil mortes associadas a raiva. A comunidade parsi indiana de Mumbai (Bombaim) ficou alarmada por reparar noutra alteração. Os cadáveres colocados ritualmente em plataformas elevadas de pedra para “sepultamentos celestes”, nos quais os abutres libertam as almas dos mortos para que estas possam alcançar o céu, demoravam muito mais meses a desaparecer porque não havia abutres para os devorarem.
Depois de os investigadores provarem que o diclofenac era culpado da mortandade dos abutres, o uso veterinário do fármaco foi banido em 2006 na Índia, Paquistão e Nepal. Seguiu-se o Bangladesh em 2010 e, em meados de Junho de 2015, uma aliança de grupos de conservação incitou a Comissão Europeia a banir o uso do fármaco em animais. Aguarda-se resposta. Aliada a programas de reprodução em cativeiro e “restaurantes” de abutres, que servem carne segura proveniente de explorações agropecuárias e matadouros de aves selvagens, a campanha tem tido efeitos positivos. Passados nove anos, o declínio de abutres abrandou e em algumas regiões os seus números começaram a aumentar. No entanto, a população das três espécies mais afectadas continua a representar uma fracção ínfima dos milhões de animais outrora existentes.
No Serengeti, um chacal afasta um grifo-africano imaturo empoleirado sobre o gnu morto que está a devorar. Os carnívoros terrestres possuem territórios de alimentação limitados. Lá do alto, os abutres têm muito melhor perspectiva sobre o menu do dia: conseguem detectar uma carcaça a 35 quilómetros de distância.
Darcy Ogada não tem esperanças de que África siga o exemplo da Índia na crise dos abutres. “Tem havido pouca acção governamental para conservar os abutres no Quénia e nenhuma vontade política de limitar o uso de carbamatos”, a família de substâncias químicas a que pertence o carbofurão. Embora os abutres da Índia enfrentem apenas uma grande ameaça (a intoxicação fortuita), os abutres africanos enfrentam uma fasquia muito mais elevada.
Os caçadores ilegais de marfim são actualmente responsáveis por um terço dos envenenamentos de abutres perpetrados na África Oriental.
Em Julho de 2012, morreram 191 abutres depois de se banquetearem com um elefante abatido furtivamente e polvilhado com veneno num parque nacional do Zimbabwe. Um ano mais tarde, cerca de quinhentos abutres morreram na Namíbia, depois de se alimentarem com um elefante temperado com veneno. O que leva os caçadores furtivos, de olhos postos no marfim, a visarem os abutres desta forma? “O seu ajuntamento no céu sobre elefantes e rinocerontes mortos alerta os vigilantes sobre as suas actividades”, explica Darcy. Os caçadores ilegais de marfim são actualmente responsáveis por um terço dos envenenamentos de abutres perpetrados na África Oriental.
Algumas práticas culturais também provocam baixas entre os abutres. Segundo André Botha, da União Mundial para a Conservação da Natureza, muitas aves descobertas junto de carcaças de animais abatidos ilegalmente apresentam-se sem cabeça nem patas, um indício de que foram vendidas para fins curativos. Os compradores dos mercados da África Austral não têm quaisquer problemas em comprar partes de corpos às quais se atribui a cura de diversas maleitas ou aumento da força, velocidade ou resistência. O cérebro seco de abutre também é popular: diz-se que, misturado com lama e fumado, invoca orientações do Além.
A maior ameaça à existência dos abutres africanos continua a ser a disponibilidade e uso omnipresente de venenos. A FMC, empresa fabricante do produto Furadan, começou a readquirir o composto aos canais de distribuição no Quénia, Uganda e Tanzânia e suspendeu as vendas na África do Sul após uma reportagem do programa “60 Minutos” sobre envenenamento de leões em 2009. No entanto, o composto, na sua forma genérica, persiste. A agricultura é a segunda maior indústria do Quénia e o país tem longo historial de utilização de toxinas para combater surtos de doença e pragas. Qualquer indivíduo pode ainda entrar numa loja e, por menos de dois euros, compra pesticidas altamente tóxicos.
Um jovem grifo de Rüpell estica-se para comer um pedaço de zebra no Serengeti. As aves mais velhas e dominantes já retiraram as suas partes preferidas deixando a pele e os ossos para os mais novos e para os grifos-africanos.
“Nos trópicos, a agricultura não pode existir sem pesticidas”, resume Charles Musyoki, antigo director de gestão de espécies do Serviço de Vida Selvagem do Quénia. “Por isso, temos de ensinar ao público a sua utilização correcta e segura.”
Ora, o público sabe que os carbamatos são baratos, fiáveis e desprovidos de riscos, pelo menos se comparados com perseguir e espetar uma lança num predador. Até à data, o governo não accionou judicialmente um único envenenador de abutres. “O envenenamento faz parte da cultura”, diz Darcy Ogada encolhendo os ombros. Os grupos indígenas sempre protegeram as suas manadas e os descendentes dos europeus, responsáveis pela introdução dos venenos sintéticos, matam aves e mamíferos carnívoros em África há mais de trezentos anos.
Conservacionistas da Namíbia utilizam um retrovisor montado numa vara para espreitar o ninho de um abutre-real numa árvore. Se encontrarem uma cria, irão marcá-la e devolvê-la ao ninho. As fêmeas só põem um ovo por cada um ou dois anos, pelo que a sobrevivência dos pintos é essencial para o futuro.
Após um longo dia a conversar com os pastores maasai, Munir e Darcy estão ansiosos pelo pôr do Sol. É lusco-fusco e Munir estaciona o seu jipe junto de um edifício numa faixa de terra ressequida e pisada pelos animais entre a área de conservação Mara Naboisho, com 20 mil hectares a leste, e a reserva Masai Mara, com 150 mil, a oeste. Munir observa um boma e, quando uma dezena de lâmpadas penduradas entre os postes da vedação se acendem, abre um sorriso.
Os operadores de safaris a partir de balões de ar quente, que sobem ao céu antes do nascer do Sol, queixaram-se desta poluição luminosa nocturna. Para Munir, porém, estas lâmpadas, ligadas a uma bateria solar, são um pequeno milagre: a forma mais segura e eficaz de manter os predadores afastados dos currais e contrariar o envenenamento retaliatório.
“Estas luzes custam 25 a 35 mil xelins por boma”, diz ele. São 210 a 325 euros, e o Peregrine Fund financia metade do valor. “Se impedir um ataque a gado, já se pagaram a si próprias.” Nos primeiros seis meses de instalação do sistema nesta região de Mara, os ataques de leões a 40 bomas iluminados diminuíram 90%. Até à data, carnívoros e elefantes – que atravessam frequentemente zonas cobertas de vegetação – continuam a evitar as luzes, mas a falta de manutenção e a má gestão dos sistemas (como o desvio de electricidade para carregar telefones, por exemplo) reduziram a sua eficácia. Apesar disso, a procura de sistemas de iluminação excede em muito a oferta.
Como gárgulas esculpidas em pedra, abutres-do-cabo (Gyps coprotheres) olham para baixo a partir de uma falésia de acasalamento artificial junto a Magaliesburg, na África do Sul. As instalações de acasalamento, investigação e reabilitação são geridas peloVulPro, um grupo cujo trabalho visa restaurar o número de abutres africanos.
No Serengeti, cerca de 250 quilómetros a sul de Masai Mara, o Sol levanta-se sobre três hienas adultas, enfiadas até às espáduas noutro gnu morto. De vez em quando, os espectadores emplumados reunidos neste teatro de palco redondo avançam direitos ao palco, mas são afastados pelos actores principais que erguem as queixadas e encaracolam os beiços negros. Os abutres percebem a dica. Existe um respeito palpável entre os animais de quatro e de duas patas: as hienas dependem dos abutres para localizar as carcaças e os abutres dependem das hienas para as abrirem rapidamente.
Por fim, as hienas ficam suficientemente saciadas para se retirarem, dando assim às aves a deixa para avançar. A carcaça baloiça para trás e a frente, enquanto duas dezenas de abutres rasgam, sorvem, bicam e puxam. De repente, um abutre-real desce do céu e bate com a cabeça noutros dois abutres-reais que se encontravam inocentemente na periferia. O agressor roda sobre si próprio, baixa a cabeça, levanta as asas gigantescas e monta o gnu num gesto triunfal. “São animais divertidos”, comenta Simon Thomsett, especialista em abutres ligado aos Museus Nacionais do Quénia. “Não seria possível passar tanto tempo a observar um leão.”
As horas sucedem-se, as personagens sangrentas vão e vêm: hienas, chacais, cegonhas, águias necrófagas e quatro espécies de abutre. Apesar da histeria aparente, todos têm a sua oportunidade.
Polvilhados sobre uma carcaça, cem gramas do insecticida carbamato podem matar cem abutres. As aves envenenadas, capturadas suficientemente depressa ou que não tenham consumido demasiada carne, podem ser salvas através de uma dose de atropina e da ingestão de carvão, que absorve o veneno.
Simon e Darcy passaram muito tempo a ponderar o que aconteceria se os abutres fossem retirados deste equilíbrio. Fazendo experiências de campo com carcaças de cabra durante dois anos, Darcy descobriu que, na ausência de abutres, as carcaças demoravam quase o triplo do tempo a decompor-se, o número de mamíferos visitantes triplicou e o tempo despendido por esses animais junto da carcaça também quase triplicou.
“Em termos de serviços prestados à humanidade, os abutres são mais importantes do que os cinco predadores que toda a gente vem cá ver”
Por que razão estes dados são relevantes? Porque quanto mais tempo os chacais, os leopardos, os leões, as hienas, os mangustos e os cães convivem entre si junto de uma carcaça, maior a probabilidade de contagiarem outros animais, selvagens e domésticos, com doenças… que morrem no estômago dos abutres. Ao comerem a placenta dos gnus, os abutres também impedem o gado de contrair febre catarral maligna, um vírus frequentemente fatal, diz Simon. E ao reduzirem as carcaças a ossos em escassas horas, suprimem as populações de insectos, associadas a doenças oftalmológicas em seres humanos e no gado.
“Em termos de serviços prestados à humanidade, os abutres são mais importantes do que os cinco predadores que toda a gente vem cá ver”, afirma Simon Thomsett. Na opinião dos cientistas, a sua perda desencadearia provavelmente uma catástrofe ecológica e económica.
Embora o envenenamento seja a causa directa do declínio dos abutres em África, Simon sublinha, com frontalidade, a causa essencial: existem demasiadas pessoas. Prevê-se que a população do Quénia atinja 81 milhões, em comparação com os actuais 44 milhões, até 2050. E os maasai são um dos grupos de crescimento mais acelerado.
Um grifo-africano recupera nas instalações do VulPro. A ave foi posteriormente libertada.
Os agricultores estão a plantar milho e trigo em redor de áreas protegidas para alimentar a população crescente. A redução da savana traduz-se em menos ungulados para os abutres comerem. O governo não consegue impedir a perfuração de poços geotérmicos a menos de trezentos metros de locais de nidificação dos grifos de Rüppell.
Os abutres também morrem em colisões com cabos de alta tensão.
Em Dezembro de 2013, o Quénia aprovou uma lei determinando o pagamento de uma coima que pode elevar-se a 20 milhões de xelins (cerca de 180 mil euros) ou prisão perpétua para qualquer pessoa associada à morte de uma espécie em risco de extinção. No entanto, na opinião de Darcy e de Simon, sem melhores esforços de investigação e aplicação das leis, estas campanhas não serão suficientes. Para eles, seria mais eficaz que o governo aceitasse a oferta de um proprietário de terras no Sudoeste do Quénia que se ofereceu para vender terrenos contendo uma das mais importantes falésias do país para o acasalamento do grifo de Rüppel, espécie criticamente ameaçada.
Simon Thomsett continua a observar os abutres chafurdando na podridão, desenhando esboços pormenorizados das suas cabeças e patas, até as aves estarem saciadas e o gnu parecer um tapete azul-acizentado, com cascos. Nos dias seguintes, os tecidos restantes, a pele e os tendões serão devorados por insectos, fungos e micróbios. Os ossos maiores do ungulado persistirão durante anos, mas os seus componentes essenciais prosseguirão o seu ciclo no solo, na vegetação e em cada abutre glorioso que hoje se alimentou da sua abundância pródiga.
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