À esquerda, uma muralha verde dissolve-se no cinzento carregado do céu. O casco da piroga escavada a golpes toscos de machado desliza no oceano. O timoneiro de ascendência cabo-verdiana usa a mão direita para dirigir o motor de 15 cavalos e a esquerda para controlar melhor a linha de pesca. A piroga negoceia a cava da onda e eleva-se na crista batendo com o casco e produzindo um som seco. A linha do equador define o horizonte. Uma hora e meia de viagem separa Santa Catarina de São Miguel na costa sudoeste da ilha de São Tomé. 

Toda esta região fica actualmente dentro do Parque Natural do Obô, que cobre cerca de um terço da ilha.

Essa área da ilha não é servida por estradas ou caminhos e a pé seria preciso um dia de marcha para lá chegar. Na primeira metade do século XX, os portugueses mantinham aqui uma fortificação e abriram caminhos que possibilitavam o acesso a partir de Porto Alegre, mas há muito que a floresta engoliu esses vestígios. Das muitas casas abandonadas a partir da crise do cacau na década de 1950, restam agora ruínas quase imperceptíveis. Toda esta região fica actualmente dentro do Parque Natural do Obô, que cobre cerca de um terço da ilha.
Estamos na gravana (estação seca), mas a precipitação num ano pode atingir 7.000mm e percebemos que a estação seca é, na realidade, um eufemismo para “estação menos húmida”. As diferentes manifestações climáticas têm uma nomenclatura peculiar: há a “chuva-tubarão”, que ataca de surpresa e violência, e a “chuva-mulher”, que é miúda e persistente.

A 1.800 metros de altitude, na aproximação ao cume do Pico de São Tomé, cruza-se a floresta da bruma. Apenas na ilha de São Tomé e entre as angiospérmicas, há um género e 81 espécies endémicas, que correspondem a 13% das espécies autóctones presentes.

À passagem da Ponta Furada, o mar torna-se mais alteroso. As três pirogas que transportam nove passageiros navegam com prudência, mas a água que embate no casco projecta-se no ar e ensopa os que seguem à proa. Ao entrar na baía de São Miguel, o mar acalma. Foi perto daqui que o então jovem naturalista português Francisco Newton capturou em 1890 os dois exemplares de bico-grossudo de São Tomé que viriam a ser destruídos no incêndio do Museu Bocage de 1975. Sobrou um exemplar, capturado dois anos antes na costa leste e que ainda permanece no Museu de História Natural de Londres. Passaram entretanto cem anos até a espécie voltar a ser avistada na década de 1990. 

Em 2003 o ornitólogo Martim Melo, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio), conseguiu por fim capturar um indivíduo.

O bico-grossudo é uma ave discreta e difícil de distinguir de outra espécie que localmente é apelidada de pardal mas que, na realidade, é um fringilídeo da família do chamariz e do verdilhão.

O bico-grossudo é uma ave discreta e difícil de distinguir de outra espécie que localmente é apelidada de pardal mas que, na realidade, é um fringilídeo da família do chamariz e do verdilhão. O processo de especiação do bico-grossudo sugere um exemplo raro de especiação simpátrica. A pressão evolutiva é, na maioria dos casos, ditada pelo isolamento geográfico que acontece nas ilhas ou pelo avanço e recuo de habitats favoráveis em consequência de alterações climáticas. Aqui, porém, uma população divergiu dos seus antepassados por simples pressão ecológica. É precisamente para compreender esses factores que investigadores da Universidade do Porto e da Universidade de Lund, na Suécia, aqui vêm, com o apoio da National Geographic. Esta espécie em particular está entre as menos conhecidas e mais raras do mundo.

O chó-chó ou guarda-rios-de-peito-azul é uma subespécie endémica do Príncipe. Na ilha, existe a única população da espécie que usa pedras como bigornas para partir os búzios-terrestres-gigantes e caça caranguejos em rochas no mar.

Desde finais da década de 1990 que Martim Melo vem aqui regularmente. Nesta ilha, o trabalho de campo coloca desafios particulares. Em 1928, José Correia, um ex-caçador de baleias nos mares do Norte convertido em colector do Museu de História Natural Americano, desembarcou na ilha. Correia escreveu um diário de que transportamos uma cópia. Escrito em inglês rudimentar, dá conta das agruras destas paragens vividas por aquele homem habituado a climas adversos. A descrição é dantesca e envolve tubarões, tarântulas e cobras cuja mordedura é fatal, chuva incessante e equipamento permanentemente molhado, nevoeiro cerrado, lama escorregadia, veredas e precipícios traiçoeiros, relâmpagos e doenças tropicais.
No passado, Martim capturou três bicos-grossudos e estabeleceu o parentesco entre a espécie e a congénere de menores dimensões, mas o desenvolvimento da genética já permite uma análise com maior resolução, pelo que é importante recolher mais amostras. 
Durante cinco dias no vale do rio Iô Grande, avistamos três bicos-grossudos mas sem hipótese de os capturar. 

Da copa de uma árvore, ouve-se de repente o piar de um bico-grossudo que não se deixa ver. 

As montanhas sobranceiras à baía de São Miguel são aliás um dos locais em que as observações são mais prováveis. O desembarque faz-se a meio do dia. Reorganiza-se a bagagem e começa-se a caminhada em direcção ao interior. A caminho da floresta primária, os guias deitam a mão a cocos verdes para matar a sede e a maduros para enganar a fome. Apanham pau-pimenta para temperar o jantar, fruta-pão para assar na fogueira e sobretudo búzio-do-mato. Da copa de uma árvore, ouve-se de repente o piar de um bico-grossudo que não se deixa ver. 
O rápido crepúsculo trava a progressão. Não conseguimos chegar à cumeada desejada e acampamos a meio caminho. À noite, a escuridão é total, mas, quando os olhos se habituam, emergem pontos luminosos do solo. Bolores microscópicos e cogumelos luminescentes crescem na madeira em decomposição. 


A genética demonstrou que o tordo de São Tomé é distinto de um tordo parecido, mas raro e em risco na ilha do Príncipe. 

Na manhã seguinte, duas equipas partem em direcções opostas, fazendo pontos de escuta e observação. Levanta-se o acampamento e prossegue-se viagem. Se durante a marcha paramos para apertar um atacador, em poucos segundos perdemos o resto do grupo, pois os guias avançam sem nada os deter. A maior parte do percurso é feita a tagarelar, mas, quando o caminho se torna incerto, desce o silêncio. Concentrados, os guias encontram rastos imperceptíveis ao nosso olhar destreinado. O destino faz jus à sua reputação e à chegada somos brindados com algumas observações de bico-grossudo. Montam-se redes que durante dois dias capturam mais de cem aves, mas apesar de todo o esforço apenas um bico-grossudo cai na rede. Nem só desta espécie, porém, é feito este trabalho. Para compreender a lógica deste sistema é preciso estudar as diferentes populações do pardal de São Tomé.

A genética mostrou que, apesar de o bico-grossudo ser morfologicamente diferente do seu parente, filogeneticamente encontra-se mais próximo dos pardais com que divide a ilha do que dos pardais das diferentes ilhas entre si.

Ao contrário do seu parente mais raro, o pardal de São Tomé está presente não só aqui mas também na ilha do Príncipe e no Boné do Jóquei, um pequeno ilhéu de 30 hectares a dois quilómetros e meio ao largo desta última. A genética mostrou que, apesar de o bico-grossudo ser morfologicamente diferente do seu parente, filogeneticamente encontra-se mais próximo dos pardais com que divide a ilha do que dos pardais das diferentes ilhas entre si. Mais uma vez, os avanços das técnicas genéticas prometem agora ajudar a compreender melhor o que realmente se está a passar e por isso a equipa embarca com destino à ilha do Príncipe. 
Com um comprimento máximo de 16 quilómetros e pouco mais de três mil habitantes, a ilha tem quase metade da sua área protegida. Os investigadores começam pelo Boné do Jóquei ou ilhéu Caroço, assim baptizado devido às palmeiras cujo fruto era assim designado. Monta-se o acampamento e as redes de anilhagem. Os pardais saltitam, curiosos, pelas rochas à beira-mar e caem nas redes. Minúsculas amostras de sangue são recolhidas. Ao cair da noite, milhares de caranguejos terrestres saem das tocas e somos obrigados a pendurar a bagagem para ficar a salvo das suas afiadas tenazes.

A rã arborícola Hyperolius molleri é intolerante à água salgada, mas, mesmo assim, colonizou as ilhas em tempos imemoriais.

O Sol nasce sob um raro céu azul, mas para leste a ilha do Príncipe permanece coberta por um pesado manto de nuvens. O barco volta para nos levar para a praia Cará, que tem uma enseada protegida por rochas que permite o desembarque. Mesmo assim, com a maré baixa, somos forçados a completar os últimos metros a nado. Por sorte, uma piroga de pequenas dimensões está na praia e com ela fazemos o transbordo das bagagens. Depois de obtidas as biometrias e um conjunto satisfatório de amostras de pardais em São Tomé, no Boné e agora no Príncipe e de cruzar essa informação com as diferenças de habitat, vai ser possível compreender melhor os factores de divergência dessas populações.
O interesse ornitológico deste arquipélago africano não se esgota nestas espécies.


O ornitólogo Martim Melo retira uma preciosa amostra de um bico-grossudo. 

Apesar do número relativamente reduzido de espécies de aves no país (cerca de 140), a sua taxa de endemismo é admirável: 28 não existem em mais nenhum lugar do mundo. Estes dados não são irrelevantes porque, das cerca de dez mil espécies de aves no mundo, um quarto são endémicas de regiões bastante restritas (com menos de 50.000km2) que, agregadas, cobrem cerca de 5% da superfície terrestre. Das 218 áreas de aves endémicas classificadas internacionalmente, 77% localizam-se nas regiões tropicais ou subtropicais e cerca de metade corresponde a territórios insulares. Relativamente à sua dimensão, São Tomé e Príncipe tem o maior número de aves endémicas do mundo. 
Ricardo Lima, um ornitólogo português actualmente a concluir um doutoramento na Universidade de Lancaster sobre o impacte que as práticas agrícolas e florestais têm nas aves de São Tomé, cruzou o número de espécies endémicas de ilhas oceânicas com o número de estudos publicados sobre elas.

Mapa NGM-P

É por isso com propriedade que comenta: “As aves deste país não têm tido a atenção que mereciam.” No arquipélago das Galápagos, que conta com 13 ilhas e uma área total cerca de oito vezes maior, as espécies de aves endémicas são apenas 22, sobre as quais foram encontrados 193 estudos publicados que contrastam com apenas seis sobre as aves de São Tomé e Príncipe. Ao financiar esta expedição, a National Geographic está assim a contribuir para corrigir esta assimetria.
Num derradeiro esforço para aumentar o número de amostras, Martim Melo ruma a outro ponto, a meio caminho do Pico de São Tomé, que se eleva a 2.024 metros de altitude. Um bico-grossudo é avistado e, durante dois dias, ronda as redes sem se deixar capturar.

Este momento é o culminar de um trabalho árduo e traz a possibilidade de compreender os fenómenos de especiação.

O biólogo português acusa alguma frustração ao constatar o investimento na deslocação e permanência de uma esquipa de investigadores, mas é forçado a aceitar que “o trabalho em regiões pouco estudadas com terreno adverso e espécies raras é feito de pequenos progressos”. Este arquipélago guarda ainda muitos segredos por revelar e, no momento da partida, fazem-se planos para a próxima expedição.
As baleias-de-bossa começam entretanto a passar a curta distância da costa e, de manhã, encontram-se nas praias os primeiros rastos das tartarugas-marinhas que aí vêm depositar os seus ovos. A gravana está a chegar ao fim e, em breve, chegará a chuva-tubarão.  

Boné do Jóquei é um ilhéu desabitado de 30 hectares e que dista apenas 2,5 quilómetros da ilha do Príncipe. Apesar da curta distância, há aves aqui com características diferentes das da ilha vizinha.

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