Nos arredores de Lisboa, as portas dos casebres de uma aldeia abrem-se face ao som de burros carregados e ofegantes.
Junto deles, almocreves esvaziam cestas, enchendo de alegria os lares por onde passam. De repente, o eco da palavra “Acabou!” gera revolta em dezenas de rostos. Em Oeiras, a carta de um mensageiro destinada ao palácio pombalino enche de ansiedade o espírito de Sebastião José de Carvalho e Melo. À luz das velas de um castiçal, entre as linhas de um prenúncio pesaroso, pode ler-se a informação de que mais uma quantidade avultada de sardinha salgada e prensada acabara de atravessar a fronteira pelas mãos de contrabandistas com ligações a Espanha. Provavelmente cansado de episódios como este que, além de afectarem os cofres do país, traziam mais fome à população, e movido por pensamentos monopolistas, o marquês de Pombal decide fundar a Companhia Geral das Reais Pescas do Reino do Algarve, no dia 15 de Janeiro de 1773. Inicia-se uma nova era na relação das comunidades litorais com os recursos do mar e sobretudo com a sardinha.
Um conjunto especial de elementos oceanográficos faz da costa continental portuguesa uma gigante metrópole selvagem, densamente povoada por vida marinha. A baixa temperatura, a salinidade elevada, a disponibilidade de oxigénio e a abundância de nutrientes permitem que estas águas fervilhem de fitoplâncton e zooplâncton, as presas predilectas de diversos peixes pelágicos. Da superfície até cem metros de profundidade, vastos cardumes de sardinhas dominam a plataforma continental, ultrapassando por vezes o incrível peso de dez toneladas e o equivalente à área de um campo de futebol.
Se abundância significa realeza, a sardinha é indiscutivelmente a rainha do mar português. Uma soberana magnetizante de civilizações que habitaram este território desde os tempos dos fenícios.
De acordo com o especialista em História das Pescas e Economia do Mar da Universidade de Coimbra, Álvaro Garrido, existem registos ancestrais arqueológicos em Portugal que evocam métodos milenares de captura e conserva de sardinha, especialmente do período romano. Os tanques de salga e de prensa de sardinha em Tróia são alguns dos melhores exemplos. Estas técnicas de conservação ligadas umbilicalmente à existência de sal permitiram o aumento da disponibilidade de um recurso natural valioso que, ainda hoje, se encontra muito presente na cultura gastronómica e popular dos actuais descendentes dessas culturas.
“A abundância deste peixe, a extensa linha de costa e a tradicional afinidade para as artes de pesca criaram em Portugal condições favoráveis ao consumo generalizado deste alimento”, afirma Álvaro Garrido, em frente do seu computador, durante a nossa conversa digital. Prova disso é a sua presença assídua na mesa dos portugueses. Uma tradição que se estende à literatura, música, pintura ou mesmo artes decorativas, fazendo da sardinha uma peça valiosa do património cultural português.
Sardinhas em números. Em 2015 foram transaccionadas em lota 13.729 toneladas de sardinha, das quais 13.690 toneladas no continente, a quantidade mais baixa desde que há registos estatísticos sistemáticos por espécie, sendo o preço médio das transacções em lota o mais elevado dos últimos vinte anos (2,19€/kg).
Como todos os tesouros, também a sardinha precisa de ser cuidada e protegida. No entanto, a turbulência das últimas décadas fez soar os alarmes da comunidade científica. Segundo o presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), Miguel Miranda, a captura e o consumo excessivo deste animal, aliado aos seus ciclos de abundância irregulares, podem ameaçar a imagem de fartura a que tanto estamos habituados durante importantes celebrações, como as festas dos Santos Populares.
Cinco milhas náuticas ao largo do cabo de São Vicente, a noite quente de ventos calmos e o céu estrelado não são motivos para aligeirar a expressão focada de Fábio Mateus, um jovem pescador, mestre da traineira Flor de Burgau. Embarquei na sua companhia com o objectivo de documentar possíveis evidências da recuperação da população de sardinha da costa portuguesa. Uma hipótese que Fábio Mateus, tal como a maioria do sector piscatório, defende vigorosamente. “É verdade que passámos por tempos de crise, mas agora o mar está cheio de sardinha”, conta o mestre, enquanto manobra a embarcação. A ausência de peixe a bordo parece destoar destas palavras.
Escassos minutos antes de o Sol espreitar no horizonte, a viagem que dura desde as duas horas da madrugada parecia destinada ao fracasso. De súbito, uma mancha vermelha no monitor do sonar instala a agitação a bordo. O toque de uma buzina espalhafatosa desperta a tripulação de seis homens que dormitavam debaixo do convés e que prontamente se fazem às redes.
A nuvem de gaivotas em alvoroço e os jactos de água provocados pelo respiração de um grupo de golfinhos-roazes são o meu sinal de confirmação para entrar na água. Sustendo a respiração e de câmara na mão, mergulho nas profundezas de um duelo entre o homem e a natureza. É a admirável pesca por arte de cerco.
Desde a sua génese que a sardinha está destinada a um ciclo de vida desafiante, marcado por uma luta constante pela sobrevivência. A sua reprodução realiza-se em grande escala: as fêmeas geram cerca de vinte mil ovos por postura e essa estratégia tem sido eficaz ao longo de milhares de anos de evolução.
Para a sardinha-europeia (Sardina pilchardus), tudo começa no interior de um ovo com cerca de 1,5 milímetros de diâmetro que, juntamente com outros milhões, flutua ao sabor das correntes marítimas do Outono e do Inverno. Após cinco dias num jogo de sorte com o apetite de predadores, os resistentes eclodem para dar origem a larvas translúcidas de cinco milímetros e aspecto vulnerável. Entre a perseguição de presas e fintas a peixes e aves marinhas, passam por um período de metamorfose de quarenta dias para se transformarem em juvenis já com o aspecto típico que conhecemos da sardinha. De corpo alongado e subcilíndrico como um submarino e escamas no dorso e no ventre que relembram uma cota de malha, este animal forma densas nuvens de prata que ocupam uma posição decisiva na teia alimentar do oceano.
Atingem o estado adulto entre o primeiro e o segundo ano de existência, altura em que se reproduzem pela primeira vez. Embora consigam viver 14 anos e atinjam 27 centímetros de comprimento, na costa portuguesa são mais comuns as sardinhas jovens com um máximo de 7 anos e 22 centímetros. Classificada como pouco preocupante pela União Mundial para a Conservação da Natureza, esta espécie precisa, porém, de continuar a nadar pela vida se quiser manter este estatuto.
O segredo que faz da sardinha um maná tão precioso da celebrada dieta mediterrânea é a sua gordura que vai muito além do paladar aprazível. Rica em ácidos gordos polinsaturados de cadeia longa do tipo ómega 3, nomeadamente o EPA e o DHA, que se acumulam no músculo e em redor das vísceras, representa uma fonte de benefícios para aqueles que a consomem.
Apesar de estudos recentes da Associação Americana de Cardiologia terem desmitificado a sua suposta eficácia contra doenças cardiovasculares, a lista de atributos terapêuticos destes agentes promotores de bem-estar mantém-se robusta e recomendável. Da redução do colesterol e da pressão arterial ao reforço do sistema imunitário, passando pela prevenção de doenças crónicas como a doença inflamatória do intestino e a artrite reumatóide, estes ácidos desempenham ainda funções fundamentais no nosso cérebro. A redução do risco de doenças psiquiátricas como a esquizofrenia, e de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, estão entre os exemplos mais importantes. Face a tamanha dádiva da natureza, é legítimo afirmar que comer sardinha é o equivalente a tomar comprimidos de saúde.
Após desenhar uma circunferência a todo o vapor, deixando para trás um rasto de rede gigantesco com trezentos metros de comprimento por noventa de altura, a traineira volta ao ponto de partida onde a chata, o seu barco de apoio, aguarda para fechar a armadilha. É uma dança de precisão e de gesos mil vezes repetidos por gerações de pescadores.
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À tona da água, bóias amarelas garridas assinalam a sua localização. “Arreia!”, gritam os homens de oleado e botins de borracha, enquanto atiram cabos de uma embarcação para a outra. Ao puxar a retenida, um cabo guia costurado no fundo da rede fecha o engenho piscatório, formando a bolsa que ditará a sentença para os seres marinhos aprisionados.
Abaixo da superfície, o cenário é de guerra. O som dos motores que me assalta os ouvidos e faz vibrar o coração acompanha a explosão de alcatrazes que rasgam a coluna de água como torpedos. Aterrorizadas, milhares de sardinhas disparam velozmente em todas as direções, durante um abraço mortal cada vez mais apertado. Em menos de uma hora a captura termina. Rumo à lota de Sagres, os sorrisos, a boa disposição e três mil quilogramas de pescado iluminavam o caminho. “Então, tinha razão ou não?”, pergunta Fábio em tom de provocação amigável.
Alguns minutos mais tarde, de humor alterado, o mestre revela a sua maior preocupação: a pressão legislativa. “Ao preço reduzido a que se encontra a sardinha, se o governo não aumentar a quota consideravelmente, não sei até quando vamos aguentar.” A histórica e estreita ligação económica que Portugal tem com o mar e a crescente preocupação com a saúde dos seus recursos pesqueiros levou a que o país, em 1902, integrasse o Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES, na sigla internacional). Trata-se de uma organização intergovernamental de ciências marinhas com o objectivo de fomentar o uso sustentável dos oceanos. No entanto, os dados científicos reunidos nas últimas décadas demonstram que Portugal tem vivido distante dessa meta, nomeadamente no caso do stock ibero-atlântico de sardinha partilhado com Espanha. Na realidade, as populações desta espécie são caracterizadas por grandes variações de abundância amplamente dependentes de factores ambientais e, por isso, seria injusto afirmar que a pesca é a grande razão por trás do seu declínio. No entanto, o seu contributo também não é desdenhável.
De acordo com os dados do ICES fornecidos sobretudo pelo IPMA, mas também pelos institutos de investigação espanhóis, a perda de biomassa em apenas 31 anos foi colossal. De uma população que, em 1984, era constituía por cerca de um milhão e duzentas mil toneladas, restavam apenas cento e treze mil em 2015: cerca de um décimo do que era há três décadas. Associado aos valores mínimos atingidos ao longo do tempo, registaram-se factores como o aumento do esforço de pesca e a certificação precipitada por parte do Conselho de Gestão Marinha (MSC) que rotulou a sardinha portuguesa, capturada por pesca do cerco, como um produto sustentável e uma óptima escolha ambiental. Paralelamente, ascampanhas demarketing agressivo que elevaram a fama da sardinha não pouparam um stock que se encontrava à beira do colapso. Apesar dos esforços do governo português para proteger este capital natural através da implementação de quotas e de períodos de defeso durante a estação de reprodução e recrutamento, o declínio não abrandou. Ciente disso e pressionado por uma mediação mais preocupada da Comissão Europeia, o governo português tomou em 2019 medidas drásticas sem precedentes, limitando a quota da captura de sardinha a nove mil toneladas.
A decisão foi fortemente contestada pelas comunidades piscatória e indústria conserveira, que temiam pelo seu futuro. No entanto, no mesmo ano, o stock deu os primeiros sinais de recuperação.
Os olhos atentos do ministro do mar, Ricardo Serrão Santos, aguardavam com entusiasmo os frutos do primeiro lance do Poema do Mar. A bordo desta traineira monumental a escassas milhas da cidade de Olhão, o ministro foi convidado pelo mestre Albino Santos para observar as provas empíricas que o sector defende. “Actualmente, os pescadores estão bem informados e sensíveis ao tema e são os maiores interessados em que tenhamos mananciais de sardinha saudáveis e produtivos. Temos de ser cautelosos na gestão, mas para isso, é necessário envolver todo o sector no processo de avaliação e aconselhamento para assegurarmos uma pesca com futuro e estabilidade”, explica o ministro, debruçado no varandim da embarcação.
De acordo com o decisor político, que aguarda por indicadores robustos da recuperação da sardinha, provenientes das pescarias que se encontram a decorrer este ano, assim como das campanhas de monitorização dos cruzeiros científicos, tudo indica que o recurso se encontra mais saudável e em franca recuperação. “A partir do momento em que seja provado que o stock se encontra pelo menos num nível de média produtividade, será possível aliviar as medidas restritivas”, afirma o meu interlocutor. A conversa é interrompida por toneladas de sardinhas saltitantes que transbordam de caixas térmicas e fazem a festa dos homens à popa.
Quatro meses mais tarde, a campanha de monitorização IBERAS, conduzida pelo IPMA e pelo Instituto Espanhol de Oceanografia durante o ano de 2020, anunciava a boa nova: uma biomassa de recrutamento com cerca de cem mil toneladas. São os melhores valores dos últimos 15 anos. Constituem um motivo de alegria, mas não uma razão para baixar a guarda, segundo Gonçalo Carvalho, diretor da organização não governamental ambiental, Sciaena. De acordo com este biólogo marinho especialista em política de pescas, o passado mostrou repetidamente as consequências dramáticas das medidas de conservação levianas e pouco preventivas.
É necessário que Portugal continue focado na protecção deste recurso através de limites de pesca para que volte aos números estáveis de outrora, beneficiando assim a economia e sociedade que dele dependem, mas também apostando em alternativas de forma a aliviar a pressão nas vítimas do costume para que acabem os anos angustiantes vividos no limbo.
Segundo os especialistas, a dedicação a espécies abundantes como o carapau e a cavala poderá ser a solução. Além disso, a aquacultura que começa a surgir na equação através de estudos pioneiros a nível mundial, realizados pela Estação-Piloto de Piscicultura de Olhão, promete ser um dos trunfos mais importantes. Apesar de se tratar de um tipo de pescado que causa desconfiança à maioria dos consumidores que não querem abdicar do sabor da sardinha fresca selvagem, poderá vir a ser uma excelente vantagem para a indústria conserveira, uma vez que os seus métodos de processamento e utilização de temperos tornam a diferença imperceptível.
Em tempos de adversidade, os portugueses sempre mostraram capacidade de adaptação. Na maioria dos casos, a cooperação foi a chave certa. Se a comunidade, a indústria, a política e a ciência continuarem de mãos dadas, um dia será possível voltarmos a ver a rainha do mar lusitano erguida no seu merecido trono.