Joana Liconde está de pé sobre um banco de areia nas lagoas sagradas de Chemambo. O vestido verde-esmeralda está encharcado, pingando gotas de água sobre os seus pés. Está virada para o altar, um embondeiro jovem cujo amplo tronco consagrado se apresenta envolto em panos brancos, e conduz os outros peregrinos na oração. As maracas estão caladas enquanto a despedida do Sol introduz o grupo em mais uma noite de danças, cantigas e orações.

Os fiéis participam numa cerimónia de chonde-chonde no Niassa, uma área protegida do Norte de Moçambique, onde depositam oferendas de comida e dinheiro na base do embondeiro e evocam os antepassados, pedindo felicidade, saúde e abundância. Os embondeiros são antecâmaras do mundo divino. Por isso, as pessoas reúnem-se perto deles para invocar os espíritos dos antepassados. A tradição protege estas árvores do machado dos lenhadores.

Elefantes do Niassa
Thomas Peschak

Os elefantes do Niassa sofreram perdas calamitosas na década de 2010, quando as maiores manadas da África Oriental foram cobiçadas pelo seu marfim. Embora restem poucos elefantes com grandes presas, os paquidermes têm vindo a recuperar lentamente desde 2018.

Joana, uma curandeira tradicional, pede que o seu ofício seja abençoado com prosperidade. Também intercede a favor de outros aldeãos de Mbamba, um povoado com duas mil pessoas de expressão yao, situada junto do rio Lugenda. Poucos empreenderam a caminhada de dois dias até este local sagrado onde o povo presta culto desde tempos imemoriais. Os yao, como outros grupos étnicos que vivem na reserva (incluindo os macua, os ngoni, os matambwe e os maconde) possuem uma cultura que pulsa com uma ligação animista à natureza, embora tenham fundido o islão na sua espiritualidade.

Aqui, os espíritos dos antepassados perduram sob a forma de babuínos, que deambulam sobre quatro patas entre os peregrinos. Um ou dois babuínos pegam em amendoins deixados sobre a areia com dedos rijos como couro. Outros permanecem acocorados, numa postura contemplativa, sobre rochas torradas pelo sol. Subadultos guincham enquanto correm uns atrás dos outros. “Quando as pessoas morrem, entram com frequência no corpo de outras criaturas, como cobras, leões ou elefantes”, explica a curandeira. 

Niassa
Thomas Peschak

O Niassa contradiz o mito das áreas protegidas africanas como paraísos intocados. Há milhares de anos que os habitantes obtêm o seu alimento da terra e coexistem com os animais selvagens. Não foram deslocados quando a reserva foi criada e alguns ajudam a manter as suas terras bravias, como os rios entrançados e os inselbergs protuberantes.

Longe deste templo ao ar livre, os babuínos não têm qualquer significado especial para os yao. Aliás, estes costumam até perseguir os bandos que lhes assaltam as culturas. Mas estes babuínos específicos são diferentes.

Reza a lenda que, há muito tempo, antes “dos avós dos avós” de Joana Liconde, Mambo, um chefe yao, e a sua família morreram afogados depois de se atirarem para as lagoas após um conflito na aldeia. As suas almas apoderaram-se dos babuínos, que hoje exigem respeito e alimento, razão pela qual as pessoas lhes deixam oferendas como amendoins e milho seco. “Se não o fizermos, os espíritos ficarão com fome”, explica a curandeira. “Isto foi transmitido de pais para filhos e continua a ser a tradição.”

Há milhares de anos que vivem aqui comunidades humanas. No entanto, séculos de colonização e uma guerra civil recente mergulharam as comunidades do Niassa numa pobreza desesperada. Para que esta magnífica zona bravia possa ser preservada, elas deverão ter uma participação activa nos esforços de conservação e no turismo.

Maior do que a Suíça, com 42 mil quilómetros quadrados, o Niassa foi classificado como Reserva de Caça em 1954 e Área Nacional Protegida em 1999.

Fêmea de babuíno
Thomas Peschak

No sítio sagrado de Chemambo, uma fêmea de babuíno amamenta a cria entre peregrinos que acreditam que este bando encarna os seus antepassados. Noutros locais do Niassa, os babuínos são perseguidos, mas este bando é tratado com reverência.

É uma das maiores regiões bravias africanas de que o mundo nunca ouviu falar, preservada no tempo pelo isolamento e ainda a recuperar da sangrenta guerra civil que assolou o país durante 16 anos e terminou oficialmente em 1992. É o lar de estrelas da África Oriental como elefantes, búfalos, leões e mabecos, e de curiosidades como a zebra de Böhm, a impala de Johnston e o gnu do Niassa

As suas vastas planícies assemelham-se a peças bordadas com zonas de mato, floresta e planícies de aluvião e pontilhadas por inselbergs graníticos, afloramentos rochosos que parecem galeões no mar. 

Desde tempos pré-históricos que as pessoas vivem e negoceiam na região: os primórdios da sua presença encontram-se registados em artefactos da Idade da Pedra em arte sobre telas de granito. Viviam do mato e dos rios, caçando animais selvagens, colhendo mel, fruta e frutos secos, lenha e plantas medicinais e pescando peixe. Acrescentaram a agricultura às suas rotinas, cultivando milho-miúdo, amendoim, feijão, sésamo, sorgo e culturas lucrativas como o tabaco. As mais de sessenta mil pessoas que habitam os povoados da região do Niassa continuam actualmente a viver da terra, embora os gestores conjuntos da reserva (a Administração Nacional de Áreas de Conservação de Moçambique (ANAC) e a Wildlife Conservation Society controlem a pesca e a caça. Um sistema de licenciamento limita quando, onde e como podem ser capturados os peixes. E é agora proibido caçar animais selvagens para comer ou vender aos comerciantes locais. A comunidade foi incentivada a criar patos, galinhas e coelhos como fontes de proteína alternativas. 

Certa manhã de Novembro, na estrada perto de Mbamba, pescadores empurram bicicletas até ao mercado ao longo da mesma via poeirenta que os aldeãos partilham ocasionalmente com vários peões de quatro patas – elefantes, leões, antílopes – depois de terem passado semanas num acampamento 15 quilómetros a jusante, no rio Lugenda. Os cestos de bambu das suas bicicletas estão cheios de nyingu (Labeo molybdinus) e campango, um peixe-gato de água doce capturado com redes no rio. Os peixes foram secos e fumados sobre uma fogueira no acampamento. A alquimia da cura conferiu um tom cor de estanho às suas escamas e a carne ficou seca como um pergaminho, permitindo a sua conservação durante semanas. 

Apanhador de mel Luís Iwen
Thomas Peschak

O apanhador de mel Luís Iwene fixa uma escada rudimentar ao tronco de um embondeiro para trepar a uma colmeia ao ar livre que se encontra na copa. As abelhas acalmam-se durante a noite, mas, sem equipamento protector, Luís sofrerá várias picadelas enquanto parte pedaços de favo de mel para levar consigo para a aldeia.

Para os yao, os peixes são mais do que uma mera fonte de proteína. São tão valiosos como moedas recém-cunhadas. Os aldeãos trocam o peixe por óleo alimentar, arroz e até roupa no mercado local. Mbamba ainda está ligada às rotas comerciais ancestrais que atravessavam a região, permitindo aos pescadores vender parte da sua captura a mercadores de outros locais da reserva e mais além. “Há pessoas que vêm de Cabo Delgado”, uma província a leste, diz Benvindo Napuanha, director comunitário do Projecto dos Carnívoros do Niassa (NCP), uma iniciativa de conservação criada em 2003. “Até há pessoas da Tanzânia a comprar este peixe”, acrescenta.

A maior parte da área do Niassa (72% do território) foi concessionada para caça desportiva e os operadores privados arrendam terrenos para esse fim. Cada bloco de caça tem a sua quota de troféus que podem ser abatidos, como búfalos, leopardos, leões e antílopes. Depois de um animal-troféu ser morto, as concessões oferecem com frequência o corpo aos aldeãos para aproveitamento da sua carne. Pouco mais de um quarto da reserva foi destinada a actividades turísticas que não incluem a caça e 1% pertence a áreas de conservação especiais onde o turismo não é permitido. A caça de troféus representa mais de quatro quintos da receita anual de 930 mil euros gerados pelo turismo. Depois de o Estado retirar a sua parte, os aldeãos recebem 20% das receitas para gastarem como lhes aprouver.

Seliano Alberto Runcunua (à esquerda) e o seu assistente recolhem favos de mel
Thomas Peschak

Seliano Alberto Runcunua (à esquerda) e o seu assistente recolhem favos de mel na colmeia de uma árvore morta. Os apanhadores de mel yao são conduzidos às colmeias por uma ave, o indicador-médio, graças a uma colaboração de chamamento e resposta. Depois de obterem o prémio, os yao deixam um favo de mel para a ave comer.

Novembro é tão desconfortável nesta região de Moçambique que, por vezes, lhe chamam o “mês suicida”, quando as chuvas estão iminentes e o mercúrio sobe acima de 38 graus. Numa manhã soporífera, um grupo de aldeãos parece ignorar o calor esgotante enquanto escora uma secção de muro ao longo de uma trincheira de quatro quilómetros escavada em redor de Mbamba há dois anos. Com cerca de dois metros de profundidade, o fosso seco impede a entrada de elefantes e búfalos. 

A aldeia encontra-se a sul da reserva e trabalha com o NCP, que opera a partir do Centro Ambiental de Mariri, dez quilómetros a leste. O projecto foi financiado em grande parte por mecenas e pretende encontrar formas de as comunidades da reserva viverem em harmonia com os animais de grande porte e contribuírem para a sua protecção. 

Ratel e a sua cria, deliciam-se com o mel
Thomas Peschak

Após uma recolha bem-sucedida, outros animais, como ratel e a sua cria, deliciam-se com o mel remanescente e o favo deitado fora. O ratel é conhecido por apreciar estes despojos doces, mas um estudo recente que utilizou uma armadilha fotográfica revelou que babuínos, mangustos, esquilos e calaus-coroados também os apreciam.

Em 2012, os líderes de Mbamba assinaram um acordo com a Mariri Investimentos, a organização que dirige o projecto e arrendaram uma concessão de conservação com 580 quilómetros quadrados em redor da aldeia. O resultado foi uma parceria inovadora: Tchova-Tchova (que significa “tu empurras, eu empurro”). O objectivo é aumentar os rendimentos e a produção alimentar da comunidade e envolver os aldeãos em projectos de conservação, permitindo-lhes também gerir bens essenciais como água, energia solar, ensino para as crianças e protecção da criação de animais. Graças à Parceria Tchova-Tchova, os habitantes de Mbamba conseguem empregos na manutenção de estradas e como vigilantes da natureza no centro ambiental e na Mpopo Ecolodge, um empreendimento em construção. 

Além disso, os aldeãos são incentivados a proteger a vida selvagem. Quantos mais animais houver, mais dinheiro do turismo chegará. Um fundo de conservação comunitário administrado pelos aldeãos recompensa comportamentos benignos. Por cada turista que visita o centro ambiental, a Mariri Investimentos deposita 23 euros no fundo. Por cada animal importante detectado por um turista (leão, elefante, leopardo, búfalo, mabeco ou hiena), a Mariri deposita 7,4 euros. Por cada mês sem elefantes caçados furtivamente, o fundo ganha 144 euros. No entanto, se os vigilantes da natureza da Mariri encontrarem provas de caça furtiva, é deduzido dinheiro do fundo: 18 euros por cada armadilha, por exemplo; 215 euros por cada leão morto; e 288 euros por cada elefante caçado.

Mabecos da matilha de Mpopo lutam
Thomas Peschak

Mabecos da matilha de Mpopo lutam junto da sua toca no leito ribeirinho seco que lhes deu o nome. A reserva é um refúgio para estes animais ameaçados. A população do Niassa parece ter estabilizado em cerca de 350 animais, distribuídos por 30 a 35 matilhas.

A parceria Tchova-Tchova, entre Mbamba e a Mariri, poderá demonstrar como uma colaboração deste género é capaz de resolver o problema da caça furtiva para obtenção de alimento na reserva. Desde a sua criação que o número de armadilhas para capturar animais selvagens diminuiu drasticamente. Há um aumento notório de ungulados na região em torno de Mbamba, como cobos-de-meia-lua e impalas, juntamente com facoqueros e hipopótamos. Alguns carnívoros também estão a dar-se melhor nesta zona da reserva. Segundo o NCP, o número de famílias de leões aumentou de dois para sete desde que o acordo entrou em vigor. Os leopardos e os mabecos também estão a recuperar, em parte devido à maior abundância de presas. 

Este é o tipo de parceria comunitária que a ANAC espera das concessionárias, conservacionistas e ONG, diz Terêncio Tamele, o administrador do Niassa. “Faz parte do contrato e da avaliação do desempenho das concessionárias”, afirma. A colaboração poderá incluir programas de conservação, saúde, formação e emprego, contribuindo para manter a natureza intacta. 

Há pouco mais de uma década, cerca de 12 mil elefantes deambulavam pelas terras bravias do Niassa, mas em 2018 a febre da caça ao marfim reduziu o seu número estimado para 3.150 animais. Nos últimos cinco anos,extracção ilegal de marfim abrandou e os vigilantes da natureza e os aldeãos relataram a existência de manadas maiores, com mais crias e jovens. O número de elefantes aumentou para quase quatro mil. Na área em redor de Mbamba, a trincheira contra elefantes dos aldeãos é a primeira do seu género construída no Niassa: um método não-letal de prevenir encontros desastrosos.

Esquivo porco-formigueiro emerge da toca
Thomas Peschak

Um esquivo porco-formigueiro emerge da toca depois do crepúsculo para procurar formigas e térmitas. No Niassa, abundam estes "engenheiros do ecossistema". Servem-se da sua poderosa capacidade escavadora para abrir câmaras que muitos outros animais usam mais tarde para se abrigarem.

Mais de duzentos aldeãos participaram na extenuante escavação de três meses, financiada maioritariamente pelo NCP e com um quarto das despesas suportado pelo fundo Tchova-Tchova: 2 euros por cada metro de trincheira, proporcionando 17.600 euros para os agregados familiares da aldeia. Certo dia, vi trabalhadores deslocando-se com dificuldade sob o calor da manhã para reforçar a trincheira, enquanto alguns homens tratavam de um bananal no interior do novo perímetro, fora do alcance dos elefantes esfomeados. Um ancião arrastava uma mangueira de uma árvore para a outra, regando cada uma com água proveniente de um poço vizinho, extraída por uma bomba alimentada a energia solar. Viam-se bananas rechonchudas, penduradas como luvas de basebol nas esguias árvores jovens, a salvo dos elefantes devoradores. Os aldeãos dizem que as mangas e as papaias podem agora permanecer mais tempo nas árvores que crescem nas ruas de Mbamba por já não terem de competir com os elefantes que os visitam.

A casca do altíssimo embondeiro parece tão esburacada como a superfície da Lua sob a luz trémula da fogueira, que dá relevo às cicatrizes deixadas pelas estacas feitas à mão ao baterem na casca. 

Tum, tum, tum!

Luís Iwene, um aldeão de Mbamba com 28 anos, trepa até à copa como muitos anciãos fizeram antes dele. Crava estacas novas no tronco e iça as suas ferramentas à medida que avança. Em tronco nu e descalço, veste apenas calças de ganga cortadas enquanto escala o tronco com a desenvoltura de um equilibrista.

O prémio aguarda-o, lá em cima, na cavidade de um ramo alto: favos de mel, repletos de ouro líquido, reluzindo sob a atenção e os zumbidos de mil e uma abelhas. Chegada a noite, as abelhas ficam sonolentas, sendo menos provável que piquem e tornando mais segura a incursão nocturna ao mel. No topo, Luís segura-se com uma das mãos, equilibra-se nas estacas e consegue queimar um molho de colmo seco com quase metade da sua altura. Visto do chão, não parece maior do que um fósforo aceso e Luís não parece mais alto do que uma criança. O embondeiro ainda é jovem – tem talvez 500 anos, numa espécie que pode viver 2.000. Mesmo assim, é um gigante que reduz as árvores mais pequenas em seu redor a esculturas de Giacometti. 

Crânios de búfalos mortos
Thomas Peschak

Os crânios de búfalos mortos como animais-troféu são medidos antes de serem enviados aos respectivos caçadores. O turismo de caça reforça a economia do Niassa, a par das receitas proporcionadas por safaris e projectos de conservação.

Há muito que os yao usam o seu domínio do fogo e do fumo para retirar o mel dos véus defensivos das abelhas. Os homens que colhem o mel sofrem picadas e há situações em que é preciso desistir. “Por vezes, temos de fugir, é bem verdade”, diz Luís. “Se o fogo se apagar ou se as abelhas vierem atrás de nós, é mesmo assim – fugimos.” Esta noite as abelhas colaboraram. Luís consegue libertar cortinas do favo de mel, enxotando, de vez em quando, algumas abelhas do rosto enquanto coloca pedaços no balde. 

Empreende estas façanhas de destreza cerca de dez vezes por ano. Raramente retira mais do que um balde cheio de favos de mel, deixando muitos para a colmeia. Isto é suficiente para levar para casa, em Mbamba, a 20 quilómetros, onde Luís e a sua família o comem avidamente à colherada. Também pode vender algum mel a troco de dinheiro ou trocá-lo por outros alimentos. 

Os frutos da floresta, como os tamarindos, os frutos do canhoeiro e do embondeiro aumentam e diminuem consoante a estação, mas as abelhas estão sempre a trabalhar e é por isso que o mel é tradicionalmente uma fonte importante de alimento doce para os yao. Algumas colmeias escondem-se dentro de concavidades nodosas, ou em árvores ocas mais pequenas do que os embondeiros. Para lá chegar, os homens que colhem o mel desenvolveram uma relação mutuamente benéfica com o indicador-médio: uma ave a que chamam sego. É um dos poucos animais capazes de digerir cera de abelha. Quando as aves vêem uma pessoa e uma colmeia não está muito longe, proferem um código Morse chilreante – tji-tji-tji tji-tji-tji – para assinalar a presença de mel nas proximidades. Um yao atento responde com um distintivo brrrr-HUM, brrrr-HUM, brrr-HUM. 

Eusébio Waiti aprendeu técnicas de localização e de sobrevivência
Thomas Peschak

Eusébio Waiti aprendeu técnicas de localização e de sobrevivência como caçador de subsistência, conhecimentos que utiliza agora no seu trabalho de campo na área da conservação. Monitoriza leões com coleiras de rádio, gere mais de cem armadilhas fotográficas e testa soluções para lidar com “leões problemáticos” reportados pelos aldeãos.

O indicador-médio mostra-lhe o caminho, esvoaçando de árvore em árvore com o apanhador de mel no seu encalço e os dois vão comunicando enquanto avançam. Quando o apanhador e a ave chegam à colmeia, ele acalma as abelhas com fumo, corta a árvore, abre o tronco com um machado e retira o favo de mel. Em seguida, partilha o seu prémio, deixando uma pilha de favos de mel ricos em açúcar ao seu guia.

Em 2015, a bióloga Claire Spottiswoode, da Universidade da Cidade do Cabo e da Universidade de Cambridge juntou-se aos apanhadores de mel Orlando Yassene e Musaji Muamedi, do povo yao, para descobrir se as aves responderiam a algum som antigo ou especificamente ao chamamento dos yao.

A equipa percorreu a floresta numa série de simulações de caça ao mel, reproduzindo três sons diferentes numa coluna portátil: o chamamento brrrr-HUM dos Yao; sons humanos arbitrários; e outros sons de animais, como o chamamento de uma rola-do-cabo. Os segos reagiram duas vezes mais ao chamamento brrrr-HUM e conduziram a equipa até colmeias com uma frequência três vezes superior.

Não há garantias de que esta ancestral cooperação cantada, que já desapareceu de muitas regiões de África, perdure no Niassa. Na África do Sul, a “caça ao mel silvestre é agora muito rara”, diz Claire. “As aves continuam a chamar, mas poucas pessoas ouvem.” Se for mais fácil comprar açúcar refinado no mercado de Mbamba, por que irá alguém empreender uma tarefa tão trabalhosa e dolorosa como recolher mel no alto de um embondeiro ou nas profundezas de uma árvore?

Fiéis reunidos no sítio sagrado de Chemambo fazem oferendas de comida aos antepassados
Thomas Peschak

Fiéis reunidos no sítio sagrado de Chemambo fazem oferendas de comida aos antepassados. Durante a estação seca, numa peregrinação de vários dias, os crentes vêm de vários pontos para rezar sob um embondeiro sagrado e pedir felicidade, saúde e abundância aos seus antepassados.

Depois de descer o seu balde até ao fim da corda de casca, Luís Iwene desce pelas estacas com facilidade. Uma vez no solo, com os antebraços a refulgir de mel à luz do fogo, o seu rosto abre-se num sorriso satisfeito. Vai ser uma noite doce no mato isolado do Niassa.

A National Geographic Society, organização sem fins lucrativos que trabalha para conservar os recursos da Terra, ajudou a financiar este artigo publicado na edição de Outubro de 2023 da revista National Geographic.