Cegonhas-brancas nidificam no Parque Natural do Sudoeste Alentejano. As cegonhas ocupam frequentemente ninhos de águias-pesqueiras abandonados nesta costa rochosa.
Um pouco por toda a Europa, as cegonhas-brancas voltam a prosperar graças a programas de reprodução e reintrodução. Ao longo de cinco anos, o fotógrafo Jasper Doest seguiu esta ave imponente, símbolo da vida e do nosso apreço pela natureza selvagem.
Num dia de Março, acabado de chegar ao meu destino (Słońsk, na Polónia), vejo-a aproximar-se. É uma cegonha-branca (Ciconia ciconia), uma fêmea, como descubro mais tarde, vinda directamente de África, onde passou os meses de Inverno. Aterra no mesmo ninho que deixou atrás de si no ano passado, construído num poste junto de uma majestosa casa independente, onde ficarei hospedado nos próximos dez dias. Já visitei Słońsk anteriormente, durante uma reportagem sobre pigargos e descobri então a paixão dos habitantes desta aldeia polaca, não muito distante da fronteira alemã, pelas “suas” cegonhas-brancas.
A ave, que me arrebatou a imaginação, levou--me a regressar a esta aldeia situada no centro de uma reserva natural rica em água, na confluência dos rios Warta e Oder.
A ave, que me arrebatou a imaginação, levou--me a regressar a esta aldeia situada no centro de uma reserva natural rica em água, na confluência dos rios Warta e Oder. Permanecerei de vigia durante dias a fio, espreitando pela janela do meu quarto, no sótão, treinando a minha técnica para fotografar um único poste de nidificação.
A cegonha fêmea recompõe meticulosamente a sua plumagem desalinhada com o bico. Muito meticulosamente, aliás. Passado algum tempo de observação, é um ritual que já consigo prever em todas as suas fases. De seguida, concentra-se no ninho, desarrumado após meses de abandono. Voando para trás e para a frente, retira ervas, acrescenta ramos, deixando tudo limpo e organizado. Entretanto, espera pelo grande regresso a casa: o momento em que o seu companheiro também voltará de uma viagem de milhares de quilómetros desde a África Austral. Espero com ela. Como sei de antemão, o ritual de boas-vindas do casal de cegonhas será fantástico: cabeças e pescoços bem esticados para trás, uma algazarra ensurdecedora de bicos, um casal que não se larga. Contudo, após dez dias de espera, o macho ainda não chegou. Tenho de partir. Desiludido, regresso a casa.
Tendo seguido os seres humanos do campo para a cidade, onde encontraram alimento em abundância, as cegonhas-brancas são oportunistas. Voando no céu por cima de Trujillo, na Extremadura espanhola, uma cegonha-branca traz materiais para a construção do seu ninho.
A história da cegonha-branca remonta aos antigos egípcios, que associavam esta ave à alma humana. Mais tarde, reapareceu em várias partes do mundo como portador simbólico da vida recém-nascida, bem como de saúde e felicidade. Não há outro local onde este símbolo se mantenha mais vivo do que na Polónia. Com as suas vastas extensões de reservas naturais e terras agrícolas, a Polónia é o paraíso da cegonha-branca. Durante o Verão, as explorações agrícolas antigas e tradicionais desta região, com a sua abundância de ratos e ratazanas, atraem cerca de quarenta mil casais reprodutores de cegonhas-brancas, cerca de um quarto da população total da Europa. Os habitantes recebem as aves por todo o lado. Alguém colocou um pneu no telhado de um barracão para servir de alicerce a um ninho. Uma empresa de electricidade construiu uma plataforma sobre um poste, um autêntico motel para cegonhas, que não será menosprezado.
Em Malpartida de Cáceres (Espanha), as cegonhas deram um novo significado a uma obra de arte. Três casais de cegonhas construíram ninhos numa instalação artística concebida com dois automóveis e um avião a jacto, entre outros artefactos do Museu Vostell Malpartida.
De regresso à minha Holanda natal, o telefone toca assim que entro em casa. “Ele chegou!”, diz uma voz exultante do outro lado. Em poucas semanas, estou de volta a Słońsk, concentrado a observar enormes quantidades de minhocas a desaparecerem nos bicos de pintos acabados de eclodir. Na Polónia, apaixonei-me por uma ave preta e branca, que vou seguir por toda a Europa ao longo dos próximos cinco anos.
Há cem anos, as populações de cegonha-branca da Europa eram abundantes e bem distribuídas, migrando por diferentes rotas até aos seus domínios de Inverno em África. Historicamente, as aves viviam sobretudo nas zonas rurais, até seguirem os seres humanos na nossa migração até à cidade.
Em Haia, na Holanda, as cegonhas-brancas eram altamente valorizadas como colectoras de lixo no mercado de peixe local até ao início do século XX. Desde então, a rápida urbanização e novos métodos agrícolas fragmentaram grande parte do habitat original da cegonha, na Holanda e noutras paragens. Durante as décadas de 1960 e 1970, os níveis de água do solo foram artificialmente reduzidos em muitos locais, permitindo aos agricultores acederem aos seus campos com maquinaria pesada meses antes do que era habitual. Este método deixou presas importantes como minhocas, toupeiras e ratos-do-campo fora do alcance do longo bico vermelho da cegonha-branca. O uso de pesticidas agrícolas, tanto na Europa como nos domínios de Inverno da cegonha, ameaçou dizimar a ave. Em 1969, durante um censo, foram contados escassos 17 casais reprodutores em toda a Holanda.
Nesse mesmo ano, a Sociedade Holandesa de Protecção das Aves decidiu tomar medidas e pôs em marcha um ambicioso programa de reprodução. Crias foram importadas e integraram um programa de reprodução em cativeiro em Groot-Ammers, na província da Holanda do Sul.
Na aldeia de Słonsk, no centro de uma reserva natural da Polónia, uma fêmea de cegonha-branca alimenta as suas crias regurgitando as presas semidigeridas que guardou no papo. Os cuidados com os pintos são partilhados por ambos os progenitores.
Passada uma década, o programa gerara 150 cegonhas-brancas, que foram transportadas para 12 estações de campo entretanto criadas para o efeito, permitindo às aves habituarem-se a uma nova vida em espaço selvagem. Um pouco por todo o país, a Sociedade instalou postes de nidificação e ninhos nos telhados, na esperança de que os casais reprodutores de cegonhas-brancas se tornassem novamente nativos do país.
No início, o objectivo era criar tantos pintos quanto possível, mas, a partir de 1990, as atenções passaram a concentrar-se na melhoria do habitat da cegonha-branca. No ano 2000, a população recuperara o suficiente e o programa de reintrodução foi interrompido. “O número de avistamentos foi mais elevado do que em anos anteriores”, contou Wim van Nee, da Fundação Dutch Stichting Stork Research & Know-how (ou STORK, na sigla original). “Em 2015, quase mil casais passaram os meses de Verão na Holanda.” Além disso, um número cada vez maior de cegonhas permaneceu no país durante o Inverno – até 40% da população em idade reprodutiva, segundo contagens da STORK. A razão pela qual tantas aves preferem não fazer a migração continua a não ser clara.
As causas podem incluir temperaturas mais altas de Inverno e maior abundância de alimento, em parte porque os seres humanos também alimentam as aves. As cegonhas-brancas que migram voam através de França, descendo para o Sul de Espanha e Portugal ou para a África Ocidental.
Um tratador numa estação de reintrodução na Alsácia exibe uma cria de cegonha-branca.
No entanto, há outra razão para a prosperidade da cegonha-branca europeia no continente nas últimas décadas. Na rota para sul, as aves sobrevoam vastos aterros sanitários na Península Ibérica. Um estudo recente sobre as rotas migratórias de cegonhas-brancas anilhadas por investigadores da Universidade de East Anglia, em Norwich, mostrou que uma grande parte das aves passa o Inverno nos aterros, onde encontra alimento em abundância, sobretudo vísceras de carne e peixe.
Às primeiras luzes do dia, uma cegonha alisa a plumagem com o seu bico afiado em Sło´nsk, na Polónia. Com cerca de 50 mil exemplares, este país acolhe a maior população de cegonhas do mundo.
De forma admirável, as cegonhas-brancas parecem ter ajustado as suas rotas migratórias a esta nova fonte de alimento, como tem sido demonstrado por dados recolhidos nos loggers colocados nas aves pelos investigadores.
O aterro de Dos Hermanas, em Espanha, absorve todos os resíduos sólidos municipais de Sevilha. Cegonhas-brancas aguardam a chegada de novos desperdícios pela manhã. Acostumadas ao caos, reúnem-se à volta de um bulldozer. Entre fraldas, sacos de plástico e peças de vestuário, encontram grande abundância de restos de carne e peixe.
“Podemos afirmar que as aves estão viciadas em comida de plástico”, comenta a professora de ecologia Aldina Franco, responsável pelo estudo. “Em Portugal, a população de Inverno disparou, sendo actualmente 14 vezes maior do que era há uma década. E os números estão a crescer. Graças ao estudo de monitorização por GPS sabemos agora que muitas aves já não completam a migração até África.”
Quando visito um aterro sanitário na província espanhola da Extremadura, sou confrontado com um mar rodopiante de branco: milhares de cegonhas esquadrinham uma massa colossal de desperdícios. O bulldozer imobiliza-se. Um homem salta do interior e enrola um cigarro. O mar volta a fechar-se imediatamente e as cegonhas retomam a sua busca de alimento.
Vastos aterros sanitários como este, nas proximidades de Beja, deverão reciclar mais resíduos orgânicos por exigência da União Europeia. Esta política reduzirá o alimento disponível para as cegonhas-brancas, podendo diminuir significativamente as suas populações.
Vagueando nesta montanha de lixo, vejo uma trotinete e depois uma caixa. Ao abri-la, encontro um par de sapatos novos em folha. Por que deitamos estas coisas fora? Apercebo-me subitamente de que um símbolo antigo da vida recém-nascida passou a depender das coisas que descartamos. Quanto às cegonhas-brancas, elas também podem pensar duas vezes naquilo que comem. As aves voam frequentemente pelo meio de uma chuva ácida de água subterrânea extraída do subsolo do aterro e distribuída por aspersores. Também correm o risco de serem envenenadas por metais pesados ou sufocadas por sacos de plastico, afirmam os investigadores de Norwich. Eles suspeitam que a actividade nestes aterros reduza consideravelmente a esperança de vida da cegonha-branca, que geralmente atinge 25 a 35 anos de idade. Os perigos são evidentes: “Este ano, encontrámos uma cria que tinha um pau de espetada a sair pelo abdómen e metade do pau era visivel do exterior”, conta Aldina Franco.
Felizmente, o encerramento de muitos aterros está agendado para breve. Num esforço para melhorar a reciclagem no continente, a União Europeia exigiu uma redução da quantidade de desperdícios biodegradáveis em 35% do nível anterior a 1995 até ao final deste ano. Onde irão milhares de cegonhas, condicionadas pela actividade humana e habituadas a banquetear-se com os nossos desperdícios, encontrar agora o seu alimento? Ao visitar um aterro perto de Beja, apercebo-me de que o encerramento dos aterros terá impacte nas populações de cegonhas. “Não espero encontrar cegonhas-brancas aqui no próximo ano”, diz Pedro Sobral, director de reciclagem da empresa. “Em breve, não terão nada para comer.”
Os orizicultores que conheci temem que um grande número de cegonhas vise agora os milhões de lagostins-vermelhos (uma espécie invasora da América do Norte) que infestam actualmente os seus campos de arroz.
Os orizicultores que conheci temem que um grande número de cegonhas vise agora os milhões de lagostins-vermelhos (uma espécie invasora da América do Norte) que infestam actualmente os seus campos de arroz. Se isso acontecer, as aves pisarão as suas culturas. Outras possibilidades são as populações diminuírem novamente ou voltarem a migrar para o Norte de África.
Apesar de alguns efeitos negativos, nas últimas décadas as cegonhas beneficiaram da comida extra que obtêm dos aterros sanitários, especialmente durante o Inverno, quando a comida em habitats naturais é mais escassa. Contagens de cegonhas feitas durante o Inverno (coordenadas por Inês Catry da Universidade de Lisboa) mostram que os aterros portugueses também são importantes para cegonhas que vêm de outros países no Norte da Europa. “Encontram-se ali cegonhas anilhadas em França e na Alemanha e que, tal como as portuguesas, costumavam migrar para África há poucas décadas”, diz Aldina Franco.
A cegonha é, de certa forma, a metáfora de uma tendência social. Distintiva ave “cultural”, seguiu o nosso caminho até à urbanização – primeiro do campo para a cidade, depois para as montanhas de desperdícios produzidos pela nossa riqueza.
No meu regresso à Holanda, faço uma visita rápida a um ninho de cegonha não muito distante de minha casa. Parece abandonado, mas a Senhora Cegonha examina o mundo a partir de um candeeiro nas proximidades. Abaixo dela, o trânsito desloca-se ruidosamente, trazendo as pessoas de volta a casa após um dia movimentado. Isso não incomoda a fêmea. Empoleirada sobre uma perna, limpa a plumagem enquanto o companheiro vigia as redondezas a partir de outro candeeiro. Ambos ficam assim, pacientemente horas a fio. O seu ninho fica ali perto, ao lado da via rápida A13, junto a Delft, na Holanda, num edifício de apartamentos. É apenas um de centenas de casais de cegonhas-brancas que passam aqui o Inverno. Tendo em conta as mudanças que se avizinham nos seus locais de alimentação no Sul da Europa, não sabemos se continuarão a nidificar aqui.
Ao pôr do Sol, depois de se banquetearem no aterro sanitário de Medina Sidonia, em Espanha, bandos de cegonhas regressam aos seus ninhos para pernoitar.
“O sucesso de qualquer população de aves depende de três factores: a disponibilidade de alimento, a segurança e os locais de nidificação”, explica Caroline Walta, da STORK. “A falta de um destes alterará a equação de forma irreversível. Se quisermos manter as populações de cegonhas, devemos continuar a investir na melhoria do seu habitat.”
Na Holanda, fez-se muito na última década: melhoraram-se os habitats das aves, sobretudo das limícolas. Muitas terras foram devolvidas à natureza e os níveis de água restaurados. Esta parece ser a solução mais sustentável. Enquanto aves predatórias ocupando uma posição elevada na cadeia alimentar, as cegonhas-brancas desempenham um papel essencial no seu ecossistema, removendo desperdícios e comendo pequenos roedores e insectos. Além disso, alimentam a nossa imaginação, o que poderá ter sido a principal razão para o sucesso da reintrodução desta espécie em toda a Europa desde a década de 1950.
Aquilo que começou como um projecto fotográfico tornou-se uma longa viagem, que me mudou como pessoa e como fotógrafo.
Aquilo que começou como um projecto fotográfico tornou-se uma longa viagem, que me mudou como pessoa e como fotógrafo. Apercebi-me de que a conservação não diz apenas respeito à importância de uma espécie para um país, mas também à importância de um país para uma espécie. As cegonhas-brancas tornaram-me mais consciente da minha própria pegada ecológica.
Porém, quando a minha mente viaja até às pessoas que conheci em Słońsk, também me apercebo de que não devem estar a pensar nas complexidades da nossa existência. Na verdade, nesse ponto da Polónia rural, devem apenas estar a falar naquilo que as “suas” cegonhas andam a fazer, mesmo quando elas não fazem nada. As suas cegonhas vão e vêm todos os anos, como um relógio.