Na Região Oeste de Portugal, um projecto privado aposta em reescrever o final de uma tragédia anunciada.
Esta história começa, de certa forma, na Austrália em meados do século XIX, quando o colono inglês Thomas Austin libertou na ilha de Wardang 26 coelhos europeus.
A iniciativa tinha, de acordo com Austin, o objectivo de fornecer à população autóctone mais uma presa para caçarem. De forma inevitável, esses 26 coelhos reproduziram-se e, poucas décadas mais tarde, já tinham gerado milhões de descendentes, tornando-se uma praga incontrolável que dizimava plantações e culturas.
Preocupadas com as perdas, em 1950, as autoridades tomaram a decisão drástica de libertar o myxoma virus (o agente etiológico da mixomatose) entre as populações de coelhos para controlar as suas populações. O vírus tinha sido detectado pela primeira vez num coelho-europeu no ano de 1896, num laboratório uruguaio. Contudo, foi na Austrália que o mesmo foi libertado na natureza e o efeito excedeu largamente o que se pretendia. Estima-se que nos três meses seguintes à libertação do vírus, 99,8% dos animais (ou seja, centenas de milhões de coelhos) morreram, vítimas da doença. Do ponto de vista económico, foi um verdadeiro sucesso mas, do ponto de vista da conservação, abrira-se a caixa de Pandora.
As autoridades australianas não imaginavam o problema gigantesco então criado. Dois anos mais tarde, em 1952, Paul-Félix Armand-Delille, físico, professor e bacteriologista francês, libertou, de forma ilegal, dois coelhos infectados com o myxoma virus na sua propriedade perto de Paris. Foi a segunda irresponsabilidade desta saga. Em poucos meses, a doença ultrapassou os muros da sua propriedade, exterminando aproximadamente 90% da população de coelho-bravo em França.
A partir daí, sem qualquer fronteira física, a doença espalhou-se pela Europa, dizimando as populações deste lagomorfo e influenciando indirectamente a cadeia trófica que depende dele para se alimentar. Na Península Ibérica, predadores como o lince e a águia-imperial entraram em declínio e aproximaram-se daquilo que parecia ser uma inevitável extinção. Outros carnívoros, mais versáteis, passaram a depender de outras presas em que se incluíam as lebres. Nas sete décadas que se seguiram, a taxa de mortalidade provocada pela mixomatose tem vindo a regredir, resultante de uma coadpatação ou coevolução entre o vírus e o hospedeiro que permitiu salvar algumas populações na Península Ibérica. Mas a natureza encontra sempre forma de surpreender. E o vírus adaptou-se…
Em Julho de 2018 , um incidente no Sul e Centro de Espanha despertou a preocupação dos investigadores. A descoberta de exemplares de lebre-ibérica mortos ou moribundos lançou o alerta: após exames laboratoriais, confirmou-se a mixomatose. Até então, a doença permanecia inócua nas lebres-ibéricas, mas antevia-se a possibilidade de uma mutação atingir esta espécie. Sintomas como a fraqueza extrema, a cegueira e a desorientação afectavam agora a lebre, provocando a morte de aproximadamente 60% dos espécimes infectados. Com notável rapidez, a investigação veterinária comprovou que a emergência da mixomatose na lebre-ibérica resulta de um myxoma virus naturalmente recombinante (ha-MYXV). Em Outubro de 2018, foram identificados em Évora os primeiros dois casos em território português e percebeu-se rapidamente que a lebre-ibérica, uma das seis espécies de lebre presentes na Europa, enfrentava um novo desafio, agravado pela circunstância de não existirem dados científicos actualizados sobre a população da espécie. “A percepção daqueles que lidam com o animal é unânime”, explica o médico veterinário Fábio Abade dos Santos. “Nas últimas décadas, o efectivo populacional tem decrescido substancialmente.”
Além das doenças e da pressão causada pela caça, as principais razões para esse decréscimo estão relacionadas com a fragmentação e alteração do habitat, em grande parte promovida pela mudança das práticas agrícolas com ênfase no Sul do país. “O habitat preferido da lebre-ibérica foi transformado no espaço de uma geração”, acrescenta o especialista. Seria ingénuo imaginar que tal não produziria efeitos na sua conservação.
Os destinos de Fábio Abade dos Santos e Sebastião Miguel, experiente gestor cinegético, só se cruzaram no momento em que Fábio, na preparação da sua dissertação de mestrado sobre a doença hemorrágica no coelho-bravo, desenvolveu contactos com agentes no terreno que tinham uma percepção da situação da espécie no seu habitat. Encontrou em Sebastião um conhecedor profundo da crise que varria como um tornado o efectivo das populações de coelhos e lebres na Península Ibérica. As autoridades demoraram a reagir, mas os gestores cinegéticos perceberam que o sector estaria em risco se não se agisse.
Fábio Abade dos Santos (à esquerda) e Sebastião Miguel são os protagonistas desta história. A paixão pela lebre-ibérica juntou-os e ambos criaram o Centro de Reprodução de Lebre-ibérica, na Região Oeste.
Em finais de 2018, nasceu a ideia de desenvolverem esforços para tentar salvar a lebre, a protagonista desta história. Fizeram-no de certo modo substituindo o papel das autoridades públicas e, quatro anos depois, mantêm o empreendimento que lhes consumiu milhares de horas de trabalho e de euros – o Centro de Reprodução de Lebre-Ibérica (CRLI), único em Portugal e talvez ímpar no mundo com estas características. Injectaram os seus próprios recursos na ideia e não escondem a natureza privada do projecto, que visa também vender animais viáveis a gestores de reservas de caça. Para Fábio Abade dos Santos, o aparecimento da mixomatose na espécie acelerou uma tendência decrescente das populações. Foi a última gota num copo que já estava a encher. “Caminha-se a passos largos para uma extinção funcional da espécie, ou seja, para a perda de função na cadeia trófica, o que relega a espécie para um papel quase irrelevante nos ecossistemas que ocupa”, explica o especialista. Discreto, sem tabuletas nem outras orientações de trânsito pois não se trata de um centro de visita, o CRLI foi implantado na Região Oeste e tem, além da criação de lebres para proceder a repovoamento na natureza, o objectivo de criar condições para que se possa estudar de forma rigorosa a ecologia da espécie e a eficácia da vacinação. Do ponto de vista de conhecimento, o projecto partiu quase do zero. Nunca se tentara tamanho empreendimento nem se conheciam os dados básicos da ecologia do animal. Não se sabia como reagiriam as lebres a um espaço fechado por redes, nem como coabitariam em grupos. Como pioneiros da colonização, conduziu-se uma experiência em tempo real.
Ninguém sabia o que aconteceria.
Tudo começou no campo. Com apoio de voluntários e amigos, a equipa fundadora realizou campanhas de captura de animais. “Foi doloroso verificar que as nossas expectativas estavam certas”, conta Fábio Abade dos Santos. “Em algumas saídas nocturnas, quase não apanhávamos exemplares, o que diz bem da degradação da população selvagem.” Cada indivíduo foi rigorosamente testado. O pior que poderia acontecer era introduzir no núcleo fundador do CRLI um animal doente que pudesse contaminar todo o lote. Agora, o nervosismo dos primeiros meses já se dissipou.
O CRLI conta com um avultado investimento em sistemas de monitorização. Ao longo do cercado de cerca de um hectare, sistemas de vídeo monitorizam todos os movimentos, não só dos animais, mas também da fauna que ronda a região rural e também dos seres humanos que cultivam as vinhas contíguas. A temperatura e a humidade são cuidadosamente ajustadas por computadores. Os alimentadores e os bebedouros estão automatizados para dispensar quantidades predefinidas a cada animal e a própria composição das rações foi estudada com precisão, sem se pouparem despesas.
O CRLI é constituído por vários cercados distribuídos por um hectare. O espaço foi construído para ter o mínimo de perturbação possível e ser amplo para que os animais possam circular à vontade.
Além deste aparato tecnológico, existe ainda um conjunto de equipamentos que permite a desparasitação regular e a intervenção médico-veterinária para apurar o estado de saúde de cada indivíduo. Com frequência, Fábio ou Sebastião realizam capturas e manuseiam as lebres que, apesar do seu proverbial nervosismo, se habituaram a estes cuidados de saúde personalizados.
Cada morte exige uma necrópsia para apurar as causas e despistar a presença do temível vírus, mas a mortalidade no CRLI é baixa e este tipo de intervenções é raro. O cercado é amplo, bem vedado e tranquilo, longe de olhares indiscretos que poderiam assustar os sessenta animais que constituem o núcleo reprodutor, bem como as crias de número variável ao longo do ano. O alívio do stress nos animais é, segundo Fábio Abade dos Santos, uma das principais preocupações, tendo em conta que as lebres são animais enérgicos e assustadiços e qualquer perturbação pode provocar uma fuga desenfreada, levando-as a investir contra as vedações.
Proporcional e comparativamente aos coelhos-bravos, as lebres-ibéricas têm um esqueleto muito mais leve e um coração maior, características dos mamíferos que fazem da corrida uma das suas defesas. Estes sprinters correm ao longo dos cercados tal como em liberdade, atingindo 70 km/h. São o mamífero mais rápido da Europa e um dos mais velozes do mundo. A esta velocidade, qualquer embate numa vedação pode provocar lesões graves ou fatais, resultando na fractura das vértebras lombares e laceração da medula espinal.
Na verdade, o simples manuseamento do animal pode ser fatal. Para preparar os leporídeos nas condições mais semelhantes às que as esperam em liberdade, o cercado foi desenhado de forma a que o contacto com presas e predadores as familiarize com o que encontrarão na natureza. Além disso, a alimentação dos animais é preparada, não só para fornecer os nutrientes que cada animal precisa tendo em conta os ciclos reprodutivos, mas também para simular a sazonalidade das culturas que encontrarão em liberdade. Como tal, dependendo da época do ano, as lebres comem milho, aveia, trigo, centeio ou girassol.
A reprodução tem sido um sucesso, embora inicialmente existissem reservas, tendo em conta que no mesmo cercado coabitam várias fêmeas e vários machos. Conhecendo a ecologia da espécie e sabendo que a lebre-ibérica é um animal solitário e territorial, os machos poderiam ser pouco tolerantes à presença de rivais.
Os testemunhos da luta entre dois machos de lebre-ibérica na natureza assemelham-se a uma luta entre dois pugilistas, distinguindo-se pelo facto de, no caso dos leporídeos, as lutas poderem ser mais selvagens e violentas. Há até relatos de machos que arrancam os testículos do adversário à dentada. No CRLI, até ao momento, o ambiente é bem mais tranquilo e as câmaras de vigilância certificam que nunca se verificaram lutas tão dramáticas como essas.
A opção de juntar um número maior de machos no mesmo cercado teve o propósito claro de estudar o rácio adequado de fêmeas/macho com vista a maximizar o sucesso reprodutor. Fábio e Sebastião acreditam que a existência de um maior número de machos promove uma escolha mais criteriosa por parte das fêmeas em relação aos machos mais aptos, tendo em conta as suas características fenotípicas e comportamentais. Uma das características das lebres é precisamente o facto de não fazerem tocas, vivendo a céu aberto. Essa estratégia torna-as aptas para a sobrevivência nos primeiros instantes de vida, mas também as deixa mais expostas a predadores. As crias nascem com aproximadamente 70 gramas e já com pêlo. Como são animais nidífugos, nascem com plenas faculdades de locomoção e afastam-se rapidamente do sítio onde nasceram e dos seus irmãos.
No CRLI, está a ser optimizada uma técnica de electroejaculação que permite recolher sémen para análise e verificar a viabilidade futura da inseminação artificial.
Desde a criação do CRLI até Novembro de 2022, nasceram no centro 94 lebres. No Verão passado, foram libertados os primeiros vinte exemplares em Évora com o objectivo de reforçar a população rarefeita. Os responsáveis do projecto esperam que o interesse dos privados, dos gestores de parques naturais ou outras áreas protegidas cresça à medida que as populações em estado selvagem diminuem. É uma expectativa dramática de que a lei da oferta e da procura venha a tornar este centro uma das últimas esperanças de repovoamento de uma espécie que nos habituámos a ver presente nas fábulas infantis, mas que colapsa discreta e silenciosamente na natureza.
Por outro lado, os animais que se continuam a reproduzir-se no CRLI têm servido para os investigadores perceberem o comportamento da espécie em cativeiro, preenchendo uma lacuna científica. Alguns estudos estão a ser desenvolvidos, como o caso da optimização de uma técnica de electroejaculação, recém-ensaiada para recolher e caracterizar o sémen de Lepus granatensis e perceber a sua viabilidade para utilização em inseminação artificial.
No CRLI, também se cria coelho-bravo que na sua essência enfrenta desafios semelhantes ao da lebre-ibérica. Está em curso na Península Ibérica até 2024 o Projecto LIFE Iberconejo, que procura averiguar o estado de saúde das populações de coelhos na Península Ibérica e os danos que eventualmente causam à agricultura. A ideia é reunir as melhores práticas regionais de gestão para a promoção das populações e para a redução dos danos por elas causados. Todos os esforços – públicos e privados – ajudarão.
O futuro é incerto e as perspectivas pouco animadoras. A ciência, que actua consciente da importância do seu papel e da celeridade e eficácia que lhe são exigidas, tem dificuldade em fazer sentir este carácter emergente na actuação junto da opinião pública, tendo em conta que a lebre não é o lince, o lobo ou a águia, que mobilizam grupos cívicos e cuja história é mais fácil de contar.
Mas será que vamos a tempo? Para Fábio Abade dos Santos e Sebastião Miguel, o desafio é o combustível para um objectivo comum: salvar a lebre-ibérica. Fazendo fé nas palavras do naturalista e escritor britânico, John Coulson Tregarthen no início da sua obra “The Story of a Hare” (1912), “embora poucos animais tenham mais inimigos do que a lebre, talvez nenhum seja mais dotado de instintos para os enganar”.
Artigo actualizado a 17 de Abril de 2023.