Movida pelo orgulho nacional, uma equipa totalmente nepalesa conseguiu o que muitos consideravam impossível: venceu no Inverno a segunda montanha mais alta do planeta.
Engolido pela noite nepalesa vazia e escura, Mingma Gyalje Sherpa tentou apontar a lâmpada trémula do seu frontal para o sítio onde iria dar os seus passos seguintes, mas o frio toldou-lhe os pensamentos. Envergando um volumoso fato de penas, mais um casaco de penas por baixo e outras duas camadas de roupa interior e respirando com ajuda de uma garrafa de oxigénio, em princípio deveria sentir-se bem. No entanto, nunca experimentara temperaturas como esta em nenhum dos cumes anteriormente escalados, nem em nenhum dos nevões e ventanias gélidas que antes suportara.
Mingma conseguia sentir o corpo a deixar de funcionar. O seu lado esquerdo sofria o impacte do vento forte. Cada rajada lançava gavinhas de gelo que rasgavam toda a roupa que vestia. O seu pé direito era o mais preocupante. Formigara, depois ardera e, por fim, ficara dormente: prenúncios de uma queimadura de frio grave. Isso, como bem sabia, era sinal de que o seu corpo estava a dar prioridade ao fluxo sanguíneo para aquecer os órgãos vitais, sacrificando as extremidades para preservar o centro. E tudo isto estava a acontecer antes sequer de ele entrar na denominada Zona da Morte – a região acima dos 8.000 metros – onde a falta de oxigénio pode provocar alucinações, retenção de fluidos nos pulmões e levar os alpinistas a perderem o instinto de autopreservação.
Erguendo-se mais de três quilómetros desde a base do glaciar até ao cume, o K2 é conhecido como a Montanha Selvagem. Por cada quatro montanhistas que alcançam o seu cume e regressam, um morre na tentativa. Ninguém subira até ao cume no Inverno. Nas palavras de Nirmal “Nims” Purja: “Estávamos a tentar mostrar ao mundo que o impossível é possível.”
Mingma G., o nome pelo qual é conhecido, ligou o rádio, momentaneamente convencido a voltar para trás. “Dawa Tenjin? Dawa Tenjin?” chamou, mas a única resposta que obteve foi o gemido do vento. Ele conseguia distinguir as luzes ténues de vários companheiros de equipa que subiam lentamente, formando uma linha interrompida, uma encosta de declive suave, coberta de neve, acima do local onde ele se encontrava. Deviam ir todos concentrados nas tarefas de que estavam incumbidos ou demasiado mergulhados no seu próprio sofrimento para responderem, pensou.
Mesmo nos meses mais amenos de Verão, o K2, o segundo cume mais alto da Terra, com 8.611 metros, é uma das montanhas mais mortíferas do mundo. Embora mais pequeno do que o Evereste, o seu cume requer um grau de perícia de alpinismo muito superior e a margem de erro é quase inexistente. Depois de falhar a sua tentativa de atingir o cume, em 1953, o alpinista norte-americano George Bell declarou: “É uma montanha selvagem que tenta matar-nos.” A alcunha pegou, em parte porque morre um em cada quatro alpinistas que tentam atingir o cume e regressar à base.
Agora, porém, quase quatro semanas depois do solstício de Inverno, quando o hemisfério norte se afastou ao máximo da luz geradora de vida do Sol, as condições são das mais duras do planeta. Devido ao índice de arrefecimento pelo vento, a temperatura nas altitudes superiores pode baixar até -60ºC, aproximadamente a temperatura média de Marte. Ainda assim, aquele era um momento sonhado por Mingma G. Enquanto dava pontapés insistentes num pedaço de gelo com o pé direito, numa tentativa desesperada de evitar a queimadura de frio, ele sabia que alguns dos seus companheiros de equipa estavam a tentar fixar secções de corda à montanha usando uma série de parafusos de gelo, pitões e estacas de neve, criando um trilho seguro para seguir em direcção ao cume.
Carregadores montam o Acampamento-Base do K2 no glaciar Godwin Austen, no coração da cordilheira de Caracórum. O local funciona como centro logístico e posto de descanso entre incursões montanha acima, mas as condições brutais dificultam a vida aqui.
Para a maioria dos montanhistas mais experientes, a ideia de escalar o K2 no Inverno seria uma loucura. Seis expedições sérias já o tinham tentado, mas nenhuma se aproximara do topo. Parecia haver demasiados obstáculos: rajadas de vento ciclónicas e imprevisíveis capazes de derrubar um grupo de alpinistas presos com cordas; colapso de rochas e pedaços de gelo ribombantes como disparos de artilharia; uma atmosfera rarefeita que deixa os pulmões com falta de oxigénio e a mente turva; e o frio, profundo e implacável. Até as equipas mais experientes e determinadas tinham soçobrado perante as condições brutais, as pressões e os perigos que frequentemente as levam a implodir devido a conflitos pessoais e problemas de liderança.
Nos meses finais de 2020, cerca de sessenta alpinistas chegaram ao sopé do K2, no isolado glaciar de Godwin Austen, no lado paquistanês da cordilheira de Caracórum, em busca do derradeiro troféu do montanhismo de grande altitude. No entanto, para Mingma G. e para os seus nove companheiros de equipa, todos eles nepaleses, a expedição era mais do que uma questão de glória pessoal. Para eles, tratava-se de uma oportunidade de provar que o Nepal poderia fazer algo que muitos consideravam impossível.
Agora, enquanto Mingma G. avaliava a situação, o caminho até ao esquivo cume parecia tentadoramente ao seu alcance. Mas a que preço? Ele sabia, por experiência pessoal, que uma lesão grave poderia mudar a sua vida para sempre. O pai, também guia de montanhismo, perdera todos os dedos, excepto dois, devido a queimaduras de frio sofridas quando descalçara as luvas para atar os atacadores das botas de um cliente estrangeiro no Evereste. E se algum colega de equipa perdesse um membro ou morresse? Será que o cume justificaria isso? Para Mingma G. e os outros membros da expedição, mesmo compreendendo os riscos e com o frio mortífero a penetrar-lhes nos ossos, a resposta foi unânime.
Em 2020, a ideia de concretizar um feito de montanhismo inovador parecia um anacronismo. Em meados do século passado, todos os cumes mais altos do mundo (as 14 montanhas com mais de 8.000 metros) já tinham sido escaladas. Primeiro foi o nepalês Annapurna I em 1950, depois o Evereste e o paquistanês Nanga Parbat em 1953; os outros sucederam-se até o tibetano Xixabangma ser conquistado em 1964.
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Foi uma corrida febril, feita de esforços nacionalistas e, embora todas as montanhas se situassem na Ásia, a maior parte dos troféus foi conquistada por equipas europeias. Embora quase todas as expedições desta época dependessem de grupos étnicos locais, incluindo sherpas, tibetanos e baltis que transportavam equipamento para os acampamentos-base e cargas pela montanha acima, os grandes contributos destes parceiros indispensáveis raramente foram reconhecidos nos livros de história.
Uma vez concretizadas estas primeiras escaladas, o montanhista polaco Andrzej Zawada propôs um novo desafio. Todas as montanhas com mais de oito mil metros tinham sido escaladas no Verão, quando as condições eram mais favoráveis. Mais difícil, argumentou, seria escalá-las no Inverno, a estação mais exigente. Andrezj liderou uma expedição que levou dois alpinistas ao cume do Evereste no Inverno de 1980 e atribuiu uma série histórica de estreias invernosas à Polónia. Uma a uma, as montanhas com mais de oito mil metros foram conquistadas, mas os picos do Paquistão continuavam a resistir aos montanhistas de Inverno em pleno século XXI. Localizada oito graus de latitude a norte dos picos nepaleses, a cordilheira de Caracórum é mais fria e ventosa no Inverno. Foram necessárias 31 tentativas até o Nanga Parbat ser finalmente escalado em 2016, restando apenas o K2.
Embora os mais populares órgãos de comunicação social o desvalorizem perante o Evereste, o K2 é considerado mais difícil pelos montanhistas sérios, em parte devido ao seu isolamento extremo. Quando a equipa britânica registou as primeiras subidas ao Caracórum em 1856, substituiu as designações topográficas por topónimos locais. O K1, por exemplo, era conhecido pelo topónimo local de Masherbrum. Como o K2 não é visível a partir da aldeia mais próxima, Askole, situada a uma semana de caminhada do sopé do pico, não tinha nome.
Após quatro dias caminhando sobre terreno difícil, o K2 avista-se a partir de sul, com a sua icónica forma piramidal erguendo-se como uma ponta de seta apontada ao céu. Os alpinistas reparam logo no seu declive acentuado, especialmente íngreme junto do topo, circunstância que amplifica qualquer erro, com consequências quase fatais. Se um montanhista tropeçar nos crampons ou se fixar mal uma corda, é improvável que pare de cair antes de embater contra o glaciar, milhares de metros abaixo.
Como a margem de erro é ainda menor no Inverno, o sucesso ou, melhor dizendo, a sobrevivência, resume-se a uma questão de logística e à capacidade de previsão das piores condições possíveis. Os picos colossais, como o Evereste e o K2, raramente são escalados numa única tirada linear. Em vez disso, as equipas sobem e descem a montanha, aclimatando-se a altitudes cada vez maiores enquanto instalam uma rede de cordas fixas e montam acampamentos abastecidos com equipamento essencial, como garrafas de oxigénio, tendas e cordas. Nos últimos anos, tem prevalecido o conceito de um estilo de alpinismo mais rápido e ligeiro, mas o K2 apela a um esforço de grupo de velha guarda no Inverno: cada indivíduo tem de transportar várias cargas pesadas sobre terreno perigoso. Exige trabalho de equipa à moda antiga.
Mingma G. mede 1,75 metros de altura. É alto para um sherpa. De 33 anos, ombros largos, traz frequentemente o cabelo apanhado numa massa densa que lhe desce abaixo do pescoço, fazendo vagamente lembrar um músico ocidental da década de 1970. Costuma olhar as pessoas nos olhos quando fala e tem uma forma directa de abordar cada assunto que confere maior peso às suas palavras.
Ao nascer do Sol, membros da equipa nepalesa partem do Acampamento-Base para a última etapa: três dias de ascensão. As condições climáticas obrigaram os alpinistas a abrigarem-se no Acampamento-Base durante semanas, mas as previsões de clima mais ameno deram-lhes esperança de conseguirem fazer história.
Cresceu em Rolwaling, um vale estreito a ocidente do Evereste. Apesar de ficar longe do movimentado vale de Khumbu, Rolwaling produziu alguns dos mais famosos guias de montanha sherpas. Mingma G. cresceu a ouvir o pai e os tios, todos eles guias, contarem histórias sobre o Evereste em volta do fogão da cozinha nas noites frias de Inverno. As histórias que contavam não eram tanto sobre os montanhistas estrangeiros que inundavam o Nepal a cada Primavera, mas sobre heróis locais como Pasang Lhamu Sherpa, que, em 1993, se tornou a primeira mulher nepalesa a alcançar o cume do Evereste e morreu na descida, e o seu primo direito, Lopsang Jangbu Sherpa, que ajudou alpinistas durante o acidente ocorrido em 1996, e ganhou fama graças ao livro “Into Thin Air”. Morreu tragicamente quatro meses depois.
Em 2006, quando Mingma G. tinha 19 anos, o tio levou-o consigo numa primeira expedição a Manaslu. No ano seguinte, Mingma G. subiu ao pico do Evereste trabalhando para uma empresa francesa e, em 2011, já organizava e liderava as suas primeiras expedições. Foram anos difíceis. Entre 2001 e 2008, o Nepal viu-se envolvido numa violenta insurreição maoista e muitos montanhistas internacionais mantiveram-se à distância. A concorrência para guiar os poucos que ousaram visitar o Nepal foi intensa.
Na época de Inverno de 2019-2020, Mingma G. fez a sua própria tentativa de alcançar pela primeira vez o cume do K2 durante o Inverno, acompanhado por três clientes. A vida no Acampamento-Base a 4.960 metros de altitude foi uma prova dura. “Se lavássemos a roupa, ela demorava mais de uma semana a secar, excepto se a secássemos num aquecedor a gás ou num fogão”, disse, por escrito, a Alan Arnette, um jornalista especializado.
Depois de alcançar o Acampamento-Base, Mingma G. contraiu uma infecção das vias respiratórias superiores e teve de desistir da expedição. No entanto, não demorou muito a começar a pensar em nova tentativa.
Veio então a epidemia de COVID-19. Dezenas de milhares de guias, carregadores e cozinheiros viram-se sem trabalho nos Himalaia. Semanas depois de regressar do K2, o ano inteiro de expedições de escalada guiada foi cancelado e Mingma G. ficou sem rendimentos, com uma pequena empresa para sustentar. Tentou convencer alguns amigos a empreender outra tentativa de subida ao K2, mas ninguém quis gastar os cerca de oito mil euros exigidos por uma simples licença para alcançar o Acampamento-Base, mais outras dezenas de milhares para pôr de pé uma tentativa só com o essencial. Mingma G. pensou em abandonar a ideia, mas sentiu algo a roê-lo por dentro. Tenzing Norgay, um sherpa, fora uma das duas primeiras pessoas a alcançar o topo do Evereste e era considerado um herói nacional: a sua fotografia adornava, orgulhosamente, inúmeros lares nepaleses. Tenzing partilhou o feito com o neozelandês Edmund Hillary. Outros alpinistas nepaleses participaram em escaladas pioneiras, mas ninguém reclamara uma primeira subida verdadeiramente histórica sozinho. “Quando consultei a Wikipedia, não havia uma única bandeira do Nepal na lista de Inverno dos 8.000 metros”, diz Mingma G.. “Apercebi-me de que, se perdêssemos o K2, iríamos perder todos os picos com mais de 8.000 metros.”
Sabia que teria de gastar dinheiro, mesmo que isso significasse hipotecar o terreno que comprara em Katmandu, que representava a maior parte das suas poupanças. Conseguiu recrutar dois irmãos, Kilu Pemba e Dawa Tenjin Sherpa, ambos mais velhos do que ele, casados, com filhos adolescentes e décadas de experiência a grande altitude.
No entanto, as suas famílias manifestaram dúvidas. “Foi muito difícil convencer as mulheres de Kilu Pemba e Dawa Tenjin”, recorda Mingma G., que não é casado. “Elas disseram-me que, se os maridos morrerem, mudar-se-iam para minha casa e eu teria de as alimentar. E isso deixou-me um bocadinho maluco… e extremamente preocupado.” Havia outro problema. Após anos de expedições consecutivas e das necessidades associadas à gestão da sua própria empresa, Mingma G. fez uma constatação assustadora para um sherpa: não estava em forma. Enquanto esperava que a pandemia acalmasse em Katmandu, um parente começou a desafiá-lo para caminhadas e passeios de bicicleta.
“Perdi muito peso e voltei a sentir-me forte”, diz. Mingma G. não era o único sherpa focado no K2.
Um trio de irmãos (Mingma, Tashi Lakpa e Chhang Dawa Sherpa), sócios maioritários da empresa Seven Summit Treks, percebeu que o Paquistão era um dos poucos destinos de montanhismo ainda disponível nas altas montanhas da Ásia.
A Seven Summit Treks estabelecera-se como uma das empresas sherpas de maior sucesso e acompanhava rotineiramente um dos maiores grupos do Evereste em cada época. Em Março daquele ano, contemplando o ano desastroso de cancelamentos, a Seven Summit fez inquéritos nas redes sociais para saber se haveria clientes interessados numa expedição de Inverno ao K2. Conseguiu esgotar as inscrições para uma, com alpinistas da Rússia, Espanha, Irlanda, Turquia e Reino Unido.
No dia 21 de Dezembro de 2020, o primeiro dia de Inverno no calendário, Mingma G. e os seus dois companheiros de equipa começaram a subir o K2. Vários dias mais tarde, estavam acampados a 6.900 metros de altitude, sob uma secção conhecida como Pirâmide Negra, uma massa quase vertical de rocha desagregada, o primeiro grande desafio técnico. Seria necessário quase um dia de escalada de alta precisão, transportando cargas pesadas para alcançar o Acampamento III, a plataforma de lançamento para qualquer tentativa de conquista do cume. Havia, porém, um problema: falta de cordas.
Mingma G. sabia que várias equipas estavam a aclimatar-se nos acampamentos abaixo deles, incluindo outra equipa nepalesa liderada por um exuberante antigo soldado das forças especiais que se tornara alpinista chamado Nirmal “Nims” Purja. Mingma G. e Nims já se tinham conhecido, cruzando-se por breves instantes. “Não houve apresentações formais”, disse Mingma G.. “Apertámos a mão uma vez e eu disse: ‘Eu sou o Mingma G.’ Ele dispensava apresentações.”
Este episódio acontecera em 2019, quando Nims ia a meio de uma expedição-relâmpago que, em seis meses e seis dias, visava escalar os 14 picos da Terra com mais de 8.000 metros. A imprensa tomou conhecimento e Nims tornou-se um ícone das redes sociais.
Na verdade, os dois homens não conseguiam evitar uma certa rivalidade. Ambos eram líderes competentes, em excelente forma física, e especialistas numa das aventuras mais perigosas do mundo. Mas as suas personalidades eram muito diferentes: Mingma G. era reservado e pragmático; Nims era impetuoso e, fiel à sua essência, anunciara aos seus seguidores das redes sociais o objectivo de ser o primeiro a escalar o K2 no Inverno.
Depois de, finalmente, ultrapassarem o Gargalo, o último grande obstáculo, os membros da equipa iniciaram o esforço final, dirigindo-se para o cume. Imediatamente abaixo deste, os dez nepaleses deram os braços e subiram a encosta da coroação para concluírem juntos esta escalada histórica.
Apesar de tudo, Mingma G. achou que poderia falar com Nims através do rádio e pedir-lhe que lhe dispensasse corda. Embora a equipa de Nims tivesse acabado de chegar à montanha e os homens ainda não estivessem aclimatados, voluntariaram-se para levar corda lá acima. As duas equipas conversaram enquanto bebiam chá na manhã seguinte no acampamento imediatamente abaixo da Pirâmide Negra e descobriram que nenhuma trouxera clientes estrangeiros. Todos queriam o K2 só para si.
No dia seguinte, toda a equipa desceu ao Acampamento-Base para recuperar. O céu parecia filtrar toda a cor do glaciar e um vento persistente varria correntes de cristais de gelo entre as tendas ondulantes. Era dia 31 de Dezembro e, como havia previsões de mau tempo, era altura de descansar um pouco, se isso fosse possível num local tão inóspito. Nessa noite, Nims passou pela tenda da messe de Mingma G. para convidar a equipa rival para uma festa de Ano Novo. A princípio, Mingma G. não estava com disposição para ir, mas Nims mandou dois membros da sua equipa convencê-lo para se juntar às festividades. Despojado do seu equipamento de grande altitude, Nims tem uma figura juvenil, com as bochechas macias e os fiapos ralos de pêlo facial a desmentirem os seus 37 anos. O antigo soldado orgulha-se de estar bem preparado. “Aprendemo-lo no exército, meu”, diz, com um discurso temperado com a gíria de um pub inglês. “Tem de haver um plano B para tudo. Os meus planos B têm um plano B, meu.” Quando a equipa de Mingma G. chegou à festa, Nims abriu imediatamente uma garrafa de whisky.
“Quando acabámos aquela, começámos a sentir-nos um bocadinho tontos”, recorda Mingma G. “Depois Nims abriu outra e depois outra e depois mais outra.” Pouco depois, todos estavam a dançar e a conversar sobre o estado do tempo e o plano.
Nims não pertence à etnia sherpa, é um magar, um grupo étnico indígena dos montes de altitude média do Nepal. Cresceu em Chitwan, um distrito de baixa altitude, mais famoso pelos elefantes e pelos tigres do que por montanhas cobertas de neve. Aos 18 anos, alistou-se nos Gurkha, um regimento militar britânico de soldados nepaleses que subsiste como vestígio do Império Britânico. Além de guia de montanha, o serviço nos Gurkha é uma das melhores opções disponíveis para homens nepaleses ambiciosos: os Gurkha recebem salários equiparados aos dos soldados britânicos e têm direito a pedir nacionalidade britânica.
Após seis anos nos Gurkha, Nims juntou-se ao Special Boat Service, uma unidade semelhante aos fuzileiros. “Digamos simplesmente que fui posicionado em zonas sensíveis”, disse numa entrevista em 2019. Ele fala sobre as suas experiências militares, incluindo um tiroteio no qual foi baleado no rosto, com mais pormenores no livro que publicou recentemente.
“Nas forças especiais, sentimo-nos invencíveis”’, diz Nims. “Mas quando fui para a montanha, tornou-se muito claro que a natureza tem algo a dizer.” Em 2019, demitiu-se das forças armadas para se tornar montanhista profissional e dedicar-se ao seu projecto de sonho: escalar todas as montanhas com mais de 8.000 metros em sete meses. A ideia já fora ponderada antes, mas ninguém se atrevera a enfrentar o desafio de forma séria.
Chamando à sua iniciativa Projecto Possível, Nims recrutou uma equipa especializada de guias nepaleses para o ajudarem a preparar rotas e escalarem com ele, da mesma forma que na Volta à França há ciclistas a acompanhar o líder. Depois de alcançar o cume de uma montanha, viajava imediatamente para a seguinte, por vezes de helicóptero, o que lhe permitia conservar a aclimatação à altitude. Não era comedido na utilização do oxigénio engarrafado e, em alguns locais, usava cordas fixadas por outras equipas, algo que, na opinião dos puristas, retirava valor ao seu feito.
Agora, mais de um ano depois, a sua equipa do K2 incluía um veterano essencial daquele grupo: Mingma David Sherpa, um animado guia de 31 anos que é o braço direito de Nims. O velhote da equipa era Pem Chhiri Sherpa, um sherpa de Rolwaling de 42 anos e 20 anos de experiência no Evereste. Nims também recrutou Dawa Temba Sherpa e Mingma Tenzi Sherpa, ambos montanhistas bastante experientes. O último membro da equipa era o mais novo: Gelje Sherpa, um guia de 28 anos com um sentido de humor contagioso.
Enquanto Gelje contava piadas e punha música na festa de Ano Novo, uma ideia começou a germinar nas duas equipas: porque não juntar forças? Pem recorda que as vantagens eram evidentes: “O trabalho acelerou e começámos a trabalhar juntos. Tornou-se mais fácil porque éramos todos nepaleses.”
Os sherpas que trabalham em montanhismo têm a reputação de serem, em geral, pessoas afáveis, demonstrando uma postura budista de desapego perante os desafios da vida. No entanto, a profissão é desgastante. Além das dores físicas, todos já perderam amigos e parentes devido ao montanhismo. Os últimos anos foram particularmente cruéis. Em 2014, uma avalancha matou 16 dos sherpas mais experientes no Evereste e interrompeu a época de escalada e, em 2015, um terramoto matou 19 pessoas no Acampamento-Base do Evereste e cerca de 9.000 pessoas em todo o país. Agora a pandemia custara-lhes mais um ano de trabalho. Também conheciam a amargura que costuma acompanhar um trabalho ingrato. “Poucos clientes estrangeiros reconhecem a nossa ajuda, descrevendo-nos como meros carregadores de grande altitude anónimos ou fingindo que não existimos”, diz Mingma G. “Parece que acham que nós não lemos os artigos que publicam.”
E depois houve tensões crescentes, com as empresas nepalesas a quererem maior participação no lucrativo negócio dos guias, que era, há anos, dominado por empresas estrangeiras. “Nós somos o povo local e temos mais conhecimento do que os serviços de guias estrangeiros”, diz Mingma G. Ele reconhece que a concorrência é feroz entre as empresas nepalesas, mas “90% dos alpinistas estrangeiros só confiam nas empresas estrangeiras”.
A concretização da primeira subida de Inverno ao cume do K2 seria um aviso de que os nepaleses estavam a reivindicar o seu lugar de direito, não só como participantes, mas como líderes do mundo do montanhismo. “Queríamos ter um para nós para fazer história”, explicaria Nims mais tarde. “A junção das equipas era uma ideia óbvia.”
No dia de Ano Novo, Mingma G. acordou envolto numa névoa de ressaca. Apesar das temperaturas negativas, adormecera na tenda sem sequer rastejar para o interior do saco-cama. Não tardou a ouvir a voz de Nims pelo rádio, convidando-o para beber chá ao seu acampamento.
Tinham mais planos para discutir.
Os sherpas gostam de dizer que uma montanha deve permitir que uma equipa de montanhistas alcance o seu pico e regresse incólume. É por esta razão que todas as expedições aos Himalaia realizam uma cerimónia Puja: pedem às divindades da montanha que lhes concedam permissão e salvo-conduto para a escalar. Durante as primeiras semanas de 2021, porém, tornou-se manifestamente óbvio que o K2 não estava disposto a receber quaisquer seres humanos perto do seu cume. Ventos de 160 km/h fustigavam a montanha e levaram as temperaturas a descer muito abaixo de zero no Acampamento-Base, obrigando os montanhistas a abrigar-se nas suas tendas.
Quando os ventos acalmaram um pouco, a equipa de Nims foi rapidamente até ao Acampamento II para verificar as condições do equipamento. “Encontrámos uma situação desastrosa” escreveu Nims no Instagram. O equipamento deixado para a subida final até ao cume (sacos-cama, palmilhas aquecidas a pilhas para as botas, luvas extra e óculos) voara pelos ares.
Segundo as previsões meteorológicas, porém, os ventos acalmariam a partir de 14 de Janeiro. De regresso ao Acampamento-Base, reuniram rapidamente mais equipamento e outro nepalês, Sona Sherpa, da Seven Summit Treks, juntou-se ao grupo para ajudar a carregá-lo. Entretanto, Nims e Mingma G. reavaliaram o seu plano de conquista do cume. Em vez de passarem uma noite gélida no Acampamento IV, o acampamento de grande altitude, localizado a cerca de 7.600 metros, tradicionalmente escolhido antes das últimas etapas até ao cume, os nepaleses planeavam alcançar o topo num único dia, partindo do Acampamento III. Se tudo corresse bem, poderiam chegar ao cume no dia 15.
Mais tarde, alguns alpinistas do Acampamento-Base acusariam os nepaleses de ocultarem os seus planos de manterem uma equipa de subida ao cume exclusivamente nepalesa, acusação que Mingma G. não rejeita. “Quando há um Campeonato do Mundo de futebol, alguém quer que o seu país perca?”, explicou numa entrevista à ExplorersWeb. “Não, nunca. E a equipa e o treinador mantêm sempre a estratégia em segredo para tornar esses desejos possíveis. Aconteceu o mesmo no K2 desta vez.”
Na noite de dia 13, quando os nepaleses chegaram a cerca de 7.000 metros de altitude, o segredo foi revelado e vários grupos começaram a subir a montanha atrás deles.
Na manhã seguinte, enquanto as equipas descansavam no Acampamento II, sob um vento cortante, os nepaleses continuaram a subir até um local imediatamente abaixo do Acampamento III. “A meteorologia foi o factor decisivo”, diz Mingma.
“Abaixo do Acampamento III, o vento era forte mas acima do Acampamento III não havia vento.” No dia 15, Mingma G. e outros três saíram para fixar cordas acima do Acampamento III, junto de uma secção conhecida como O Ombro (The Shoulder). Enquanto subiam as encostas cobertas de neve aparentemente intermináveis, um labirinto de fendas bloqueou-lhes o caminho. Pouco antes de chegarem ao local tradicional para o Acampamento IV, encontraram uma fenda enorme que os obrigou a voltar para trás durante horas até encontrarem um ponto por onde a contornar. Era o tipo de contratempo desgastante e desencorajador que leva frequentemente os montanhistas a abandonarem uma expedição, mas Mingma G. e os outros seguiram em frente. Depois de encontrarem uma secção de neve dura (uma ponte de neve) sobre o campo de fendas, fixaram cordas até ao Ombro.
Regressaram ao Acampamento III e juntaram-se ao resto da equipa para algumas horas de repouso irregular. “O frio era diferente”, recorda Gelje. “Causava muita sede. Tínhamos dificuldade em digerir aquilo que comíamos.”
Depois da meia-noite de dia 16, a equipa começou a equipar-se para sair do Acampamento III. Pela primeira vez na montanha, cada homem usou uma máscara de oxigénio para a última etapa até ao cume. Todos menos um. Nims decidira responder aos críticos escalando a montanha no Inverno e sem oxigénio, um feito assinalável a acrescentar a outro feito assinalável… se conseguisse concretizá-lo. “Eu não estava completamente aclimatado. Tinha frieiras em três dedos”, diz Nims. “Se não conhecermos bem as nossas competências e as nossas capacidades, podemos estragar tudo para todos.”
Em grupos pequenos, os montanhistas começaram a subir, seguindo até ao Ombro pela rota de cordas que Mingma G. laboriosamente fixara. Os seus esforços foram recompensados. Aquilo que demorara oito horas a fazer no dia anterior demorava agora apenas três, na escuridão. Entretanto, levantara-se um vento forte.
Sentindo-se sozinho e na iminência de sofrer uma queimadura de frio, Mingma G. estava prestes a desistir da tentativa de alcançar o cume. Porém, como ninguém respondeu ao contacto, bateu raivosamente com os pés no gelo para mantê-los quentes. “Espantosamente, resultou”, diz.
Depois de concretizar a primeira subida de Inverno ao K2, a primeira equipa nepalesa a estabelecer um recorde de escalada numa montanha com mais de 8.000 metros comemora. “Fizemo-lo pelo Nepal”, diz Nims. Os alpinistas cujos nomes serão registados nos livros de recordes de montanhismo são (fila superior, da esquerda para a direita) Pem Chhiri Sherpa, Mingma David Sherpa, Gelje Sherpa, Dawa Temba Sherpa, (fila do meio, da esquerda para a direita) Dawa Tenjin Sherpa, Nirmal “Nims” Purja, Mingma Gyalje Sherpa, Sona Sherpa, Kilu Pemba Sherpa, e (à frente) Mingma Tenzi Sherpa.
Por fim, os primeiros raios da alvorada atingiram a maioria dos montanhistas que se encontravam no Ombro, aquecendo-lhes os corpos. O vento caiu e, embora as temperaturas se mantivessem árcticas, o dia estava perfeito. Acima deles pairava o último busílis da rota, o Gargalo (The Bottleneck), um corredor congelado localizado sob uma parede de gelo pendurada, conhecida como serac. Depois do corredor, os alpinistas iriam enfrentar encostas mais suaves até ao cume, mas se parte do serac colapsasse enquanto um deles estivesse no Gargalo, seria provavelmente fatal para todos os que se encontrassem por baixo. Como que a lembrar aos alpinistas o perigo que enfrentavam, um conjunto agoirento de blocos de gelo do tamanho de frigoríficos estava espalhado sob o corredor.
Mingma Tenzi e Dawa Tenjin lideraram a equipa ao longo da passagem traiçoeira, fixando cordas atrás de si para que os outros pudessem segui-los. Enquanto avançavam, pequenas rochas caíam no corredor, por vezes atingindo o capacete de um deles. Havia pouco mais a fazer do que seguir em frente.
Quando o grupo se aproximou do cume, nem Mingma G. nem Nims iam à frente. Essa tarefa fora atribuída a Mingma Tenzi, um especialista em fixação de cordas de 36 anos com um sorriso alegre e um dente de ouro. Foi ele que liderou a equipa nas últimas horas e poderia ter chegado ao topo antes dos outros, mas parou imediatamente abaixo do cume.
Um por um, os montanhistas subiram progressivamente para se juntarem a ele. Nims debatia-se arduamente com o ar gelado e rarefeito, inspirando duas ou três vezes a cada passo. Quando o sol brilhou sobre a delicada crista de neve drapeada em redor do segundo ponto mais alto do planeta, os alpinistas formaram um único grupo. Nims tivera a ideia de alcançarem o cume juntos. Quando os dez se reuniram, deram os braços e começaram a subir, lentamente. Pouco a pouco, encontraram as suas vozes e, como se fosse um sonho, as palavras do hino nacional do Nepal vieram-lhes à cabeça:
Tecido com centenas de flores…
Um xaile de riqueza natural sem fim…
Uma terra de conhecimento e paz, as planícies, montes e montanhas altas…
Incólume, esta nossa adorada terra Ó pátria, Nepal.