Numa manhã quente de Janeiro, em Manaus, cidade portuária brasileira rodeada de floresta, eu e um grupo de entomólogos entrámos num supermercado para comprar provisões para uma expedição.

Vinte minutos mais tarde, na fila da caixa de pagamento do estabelecimento, tornou-se claro que tínhamos ideias muito diferentes sobre o significado da palavra “provisões”.

Eu comprara amendoins, passas de uva e repelente contra insectos. Os entomólogos, todos eles dipterólogos, ou seja, especialistas em moscas, traziam grandes quantidades de alimentos amachucados, embalagens de frango quase fora do prazo e pedaços de um peixe chamado tucunaré embrulhados em celofane.

“Pedi os piores tomates que tivessem e as batatas e as cebolas mais podres. É destas coisas que as moscas gostam”, brincou Dalton de Souza Amorim, professor de entomologia da Universidade de São Paulo.

Dalton disse que os dipterólogos costumam usar comida podre como isco em armadilhas montadas no solo, onde se concentra a maior parte da sua investigação. Nesta viagem, porém, ele e os seus colegas (Brian Brown, curador de entomologia do Museu de História Natural da Comarca de Los Angeles, Stephen Marshall, professor emérito da Universidade de Guelph, José Albertino Rafael, do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia, e dois assistentes de investigação) tinham uma missão radicalmente nova.

Brian Brown, curador de entomologia do Museu de História Natural da Comarca de Los Angeles, fotografou todos os insectos desta reportagem usando um conjunto de máquina fotográfica e lupa originalmente concebido para examinar falhas em chips informáticos.


O destino localizava-se a duas horas de distância para noroeste: uma torre de aço com 40 metros de altura, erguendo-se numa zona de floresta húmida intacta. Construída em 1979, a torre fora, durante muito tempo, usada para acompanhar o intercâmbio de dióxido de carbono entre as árvores e a atmosfera. Mais recentemente, tornou-se palco de uma experiência pioneira de entomologia.

Durante muitos anos, os dipterólogos suspeitaram que as espécies de moscas existentes ao nível do solo da floresta húmida da Amazónia seriam diferentes das que vivem nas altíssimas árvores, mas ninguém sabia até que ponto isso acontecia. Após muitas visitas à torre, Rafael começou a ponderar o uso da torre para testar essa diferença. Em 2017, montou cinco armadilhas para insectos em diferentes níveis da torre, começando ao nível do solo, com intervalos de oito metros, até à cota de 32 metros de altura. Tinha esperanças de que elas proporcionassem informação sobre a estratificação dos insectos na floresta.

capturar insectos

Brian Brown prepara-se para sugar uma mosca Phoridae  para  dentro de um tubo, a fim de examiná-la mais tarde. Salpicou folhas com mel diluído para atrair as moscas e as abelhas que estas atacam. “Quantas pessoas seriam capazes de suar voluntariamente na floresta,  rodeadas por abelhas e vespas?”, pergunta ironicamente.

Duas semanas mais tarde, Rafael regressou com Dalton Amorim e ficou satisfeito por ver as armadilhas carregadas de insectos. Quando enviaram as amostras a colegas para análises mais aprofundadas, o seu entusiasmo aumentou. Das mais de 16 mil moscas recolhidas em duas semanas, havia milhares de espécies que nem os especialistas conseguiram identificar imediatamente.

Os insectos estão para o reino animal como as profundezas marinhas para a Terra: na sua maioria, a ciência desconhece-os. Segundo o Instituto Smithsonian, “há mais espécies de insectos que não foram descritas pela ciência do que espécies de insectos já conhecidas”. As moscas são particularmente diversificadas: foram identificadas mais de 124 mil espécies, mas os cientistas suspeitam que inúmeras outras sejam ainda desconhecidas.

A Amazónia, por seu lado, acolhe pelo menos 10% da biodiversidade conhecida do mundo e centenas de milhares de espécies de insectos. No entanto, vivemos tempos incertos para a floresta húmida e os insectos. Um estudo de 2019 sugeriu que cerca de um terço das espécies de insectos estará em risco de extinção nas próximas décadas devido à perda de habitat provocada pela agricultura intensiva, à poluição causada por pesticidas e adubos e a alterações climáticas, entre outros factores. Na Amazónia, é comum os cientistas tropeçarem em novos insectos, mas Rafael capturou nas armadilhas da torre um volume colossal de espécimes de moscas desconhecidas. “Foi como se tivessem descoberto um novo continente”, comparou Brian Brown.


Além disso, muitas espécies só apareceram em armadilhas montadas acima do nível do solo. “Foi uma surpresa descobrir uma fauna diferente nas copas”, disse mais tarde Dalton Amorim. “Quase dois terços da diversidade das moscas está presente nas armadilhas montadas entre oito e 32 metros de altura, mas não no solo. Isto significa uma grande perda quando são abatidas árvores grandes.” Grande parte das moscas desconhecidas pareciam pertencer à família Phoridae, criaturas do tamanho de meia dúzia de grãos de sal fino, algumas das quais parasitóides que depositam os ovos em abelhas e formigas, entre outros insectos.

Brian Brown, um dos maiores especialistas do mundo na família Phoridae, sabia que tinha de ver estas novas espécies em estado selvagem com a rapidez possível. “Acho sempre que estamos a um agricultor e uma machete de distância de perder um monte de espécies”, lamentou.

Assim, foi organizada uma expedição com Rafael, Dalton e Stephen Marshall, outrora seu professor quando estudou entomologia na Universidade de Guelph. As agendas alinharam-se para um encontro em Manaus, logo após o Ano Novo e mesmo antes de o coronavírus se disseminar pelo mundo, em Janeiro de 2020.

Como crianças ansiosas por entrar no parque de diversões, os dipterólogos mexiam-se, excitadamente, enquanto a carrinha de Rafael se deslocava aos solavancos pela floresta tropical. Quando ele virou para a estrada de terra batida de acesso à torre, já não conseguiam conter o entusiasmo.

Saíram a correr da carrinha, que ficou parada na berma da estrada deserta e reuniram-se em redor de um arbusto cheio de insectos. Passados poucos minutos, estavam a apanhar criaturas com as suas próprias mãos.

“Acho que isso é um Ceratopogonidae”, comentou Brian, enquanto se debruçava para observar a mosca que Rafael segurava na palma da mão. Heloísa Fernandes Flores, aluna de pós-graduação que investiga com Dalton Amorim, apressou-se a ir buscá-lo enquanto Brian apontava para uma vespa de grande porte, predadora de tarântulas, que possui uma das ferroadas  mais  dolorosas  do  reino  animal. Os dipterólogos mostraram-se maravilhados por encontrarem uma. Eu fiquei maravilhada por ela ter ficado a uma distância respeitável da minha cara.

Na manhã seguinte, os cientistas começaram a trabalhar arduamente. Com as calças enfiadas nas botas de borracha, Brian começava a maior parte das manhãs subindo a torre até aos oito metros de altura. Ali, retirava da mala, que trazia a tiracolo, uma grande garrafa com mel diluído e esguichava-o sobre as folhas para atrair abelhas e, por arrasto, as moscas Phoridae que as atacam, usando ovipositores afiados para inserir os ovos nos corpos das abelhas. Repetiu o procedimento nas cotas de 16 e 24 metros para verificar se apareceriam moscas diferentes a alturas mais elevadas. Os enxames de pequenas abelhas sem ferrão que chegaram para comer o mel revelaram-se irresistíveis para algumas moscas da família Phoridae que atacam abelhas. Estas últimas pousaram nas folhas ao seu lado.


“As moscas enrolam o abdómen sob o corpo, de modo a que a parte afiada que ataca as abelhas fique por baixo da sua cabeça”, descreveu Brian certa manhã, ao observar uma mosca a perseguir uma abelha através do ecrã da sua máquina fotográfica. “Em seguida, coloca-se na posição adequada e usa o ovipositor para inserir um ovo entre as partes rígidas da abelha.”

Agradado com os seus registos, Brian reuniu alguns espécimes com o seu aspirador, um tubo de borracha comprido ligado a uma extremidade rija e oca, com rede pelo meio. Colocava a extremidade de borracha na boca, examinava as folhas em busca de moscas e apontava a extremidade rija às moscas que queria capturar.

“Temos de chupar com força e determinação”, disse. “Aqui está uma.” Apontou o tubo para um ponto quase invisível e aspirou-o para o seu cativeiro. Apesar da humidade opressiva, Brian não queria desperdiçar um segundo na floresta húmida. Quando não estava a recolher exemplares ou a gravar vídeos, inspeccionava os seus achados à lupa ou conversava sobre moscas com os seus colegas. Ele e Stephen discutiam os contributos de outros dipterólogos como se fossem atletas famosos, referindo-se-lhes apenas pelos apelidos.

Numa das nossas últimas manhãs na floresta húmida, acordámos entorpecidos depois de uma noite de sono interrompida pelo incessante latido dos adoráveis, mas ruidosos, cães de pêlo avermelhado do posto de investigação.

“Acho que mataram um opossum”, disse Dalton, bocejando. Sem pestanejar, Brian perguntou alegremente: “E tem abelhas em cima?”

Brian tem uma paixão profunda por moscas, mas reconhece que as outras pessoas podem precisar de ser convencidas. Certa manhã, no posto de investigação, conversei com ele sobre a importância do seu trabalho e os desafios de o transmitir aos outros.

mapa

Bacia de biodiversidade. A bacia  amazónica é rica em espécies vegetais e animais, sobretudo insectos. Cada local de estudo na floresta tropical revelou espécies desconhecidas  para a ciência.

Quando faz apresentações ao público, Brian gosta de explicar que as moscas são os grandes recicladores da natureza. As larvas das moscas consomem resíduos alimentares, folhas caídas, animais mortos e fezes e transformam tudo em nutrientes que podem ser utilizados por outras criaturas. As moscas da fruta, que partilham cerca de 60% dos seus genes com os seres humanos, são fundamentais para a investigação genética. “E se as pessoas forem completamente cínicas, eu digo-lhes que as moscas polinizam o cacau. Sem moscas, não haveria chocolate.”

Perguntei-lhe que  mais  poderia  acontecer se as populações de moscas desaparecessem. Enquanto focava a lente de uma lupa para examinar uma nova espécie de Phoridae, ele perguntou-me: “Já ouviu falar na parábola dos rebites de Paul e Anne Ehrlich?”

Não, nunca ouvira falar nela.

“Imagine que está num avião e vê rebites a soltarem-se da asa. Nessa altura, fala com o passageiro a seu lado e este diz-lhe: ‘Oh, provavelmente não precisamos desses rebites todos.’ Estão todos a fazer mais ou menos a mesma coisa e se nos livrarmos de alguns, não fará diferença.”

Eu disse-lhe que a alegoria era assustadora.

“É assim que as espécies funcionam nos ecossistemas. As pessoas que não se importam, alegam que meia dúzia de moscas Phoridae não farão falta, mas, a certa altura, chegaremos a um ponto em que os ecossistemas deixarão de ser sustentáveis.” Brian fez uma pausa, deixando os guinchos, chilreios e coaxos da floresta húmida encherem o ar. Depois suspirou, levantou-se e começou a juntar o equipamento para voltar à torre.