As grutas de gelo dos Alpes são uma das grandes maravilhas do planeta, mas o aquecimento global ameaça este espectacular mundo oculto.

Quando era criança, Karoline Zanker tinha um sítio mágico para brincar. Saía a pé de casa na pitoresca aldeia austríaca de Sankt Martin bei Lofer, nos arredores de Salzburgo, passava por uma igreja e subia às montanhas Lofer, imediatamente abaixo do limite da floresta, onde nem os resistentes lariços cresciam. A uma altitude de 1.585 metros, sob os picos imponentes, esgueirava-se por um portal estreito na rocha e rastejava para o interior da montanha. A gruta de gelo de Prax era como um conto de fadas, diz.

O gelo escorria do tecto como uma queda de água congelada. Torres de gelo erguiam-se do solo ao longo de galerias com centenas de metros de comprimento. Cristais de gelo e sincelos reluziam como pedras preciosas. “Era simplesmente maravilhoso”, recorda Karoline, hoje com 48 anos e guia profissional de espeleologia.

Esse conto de fadas perdeu-se devido às alterações climáticas. No Outono passado, rastejei, escalei e contorci-me durante horas na gruta de gelo de Prax, apontando a lanterna do meu capacete para os recantos mais distantes, na esperança de vislumbrar pelo menos um vestígio do que cativara a pequena Karoline. No entanto, o termómetro marcava cerca de 3ºC. Nem na maior galeria de todas havia um único cristal de gelo.

“Talvez seja a hora de retirar ‘gelo’ do nome oficial da gruta”, lamenta Karoline.

As grutas formam-se com mais frequência em calcário e dolomite, rochas particularmente solúveis. Ao longo de milhares de anos, a água que se infiltra da superfície corre por poços, corredores ramificados e câmaras enormes, com tamanho suficiente para neles se ocultarem rios e lagos. Por vezes, os minerais precipitam-se a partir da água que goteja no interior das grutas, formando estalactites que ficam penduradas no tecto e estalagmites que se erguem do chão.

Em certas regiões dos Alpes, estas grutas abundam e algumas são suficientemente frias para que no interior cresça gelo em vez de rocha. Ninguém sabe ao certo quantas destas grutas de gelo existem, mas são mais numerosas aqui do que em qualquer outra região: foram encontradas cerca de 1.200 só na Áustria e várias centenas no Nordeste de Itália.

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Milhares de grutas que contêm gelo perene podem ser encontradas nas cordilheiras europeias. Nos Alpes austríacos e italianos, as entradas para as grutas de gelo encontram-se a altitudes entre 1.500 e 2.000 metros. À medida que as temperaturas aumentam nas montanhas, o volume de gelo diminui em muitas grutas. Em algumas, o gelo já não é perene: desaparece no Verão, derretido pela chuva e pelo ar quente que se infiltra nas cavernas.

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Algumas grutas são meros poços abertos, onde o ar mais frio e pesado se acumula no fundo. Noutras, as diferenças de altura entre os pontos de entrada e saída criam um poderoso efeito de chaminé: no Inverno, quando as temperaturas exteriores descem muito abaixo das interiores, o ar mais quente e leve da gruta começa a ascender e escapa-se por saídas mais acima, aspirando ar frio e puro para os pontos de entrada a menor altitude. Isso arrefece a gruta. No Verão, a corrente de ar inverte-se: o ar quente, sugado pelo topo, é arrefecido pela rocha à medida que desce, e o ar frio é soprado pela entrada inferior. O efeito chaminé costuma manter uma temperatura baixa relativamente constante nas secções inferiores da gruta, onde se pode encontrar gelo durante todo o ano.

Quando a temperatura é fria, a água escorre para o interior da gruta, gota a gota, congela e assume formas fascinantes e em constante mutação. Sincelos com vários metros de comprimento ou largura enfeitam o tecto. Placas de gelo grossas descem, em bandeira, pelas paredes. No solo, o lento gotejamento pode construir cones de gelo com vários pisos de altura ou enormes blocos que tapam poços inteiros. Em algumas grutas, o gelo mais antigo tem milhares de anos.

Antepassados supersticiosos evitavam estes locais, temendo que o ar frio que emanava deles pudesse ser o bafo do diabo. Outros tinham uma abordagem mais pragmática e utilizavam-nos como frigoríficos naturais ou até para patinar no gelo. Alguns visitavam-nos apenas para admirar a sua beleza e desenharam-nos para as primeiras revistas científicas.

Hoje, seria impossível encontrar as formações reproduzidas nesses desenhos antigos, pois já derreteu demasiado gelo. No processo, estamos a perder uma das maravilhas do planeta e uma pista para a sua história, explica Aurel Persoiu, do Instituto de Espeleologia Emil Racovita, na Roménia. “Estas grutas de gelo preservam a memória do clima passado”, afirma. Não são muito diferentes dos sedimentos do oceano profundo ou do gelo dos glaciares polares.

Na gruta de Scǎrișoara, nas montanhas Apuseni, na Roménia, Aurel desceu por um poço com 47 metros de profundidade até um bloco de gelo perene com uma superfície do tamanho de sete campos de basquetebol. A datação por carbono do guano de morcegos ou da matéria vegetal retida no gelo revela quando este aumentou ou recuou, à medida que o clima arrefecia ou aquecia. Aurel introduziu sondas ao longo de 25 metros do bloco sem atingir o fundo. As amostras de gelo mais antigas que extraiu têm mais de dez mil anos.

A análise química do gelo revelou que a maioria da precipitação da região provinha do oceano Atlântico há cerca de cinco mil anos. Desde essa altura, passou então a vir da zona oriental do mar Mediterrânico. Agora, há outra grande mudança em curso, em Scǎrișoara e noutras grutas de gelo nos Alpes: o gelo está a ser dizimado pelo ar mais quente e pelo aumento das chuvas de Verão. “É como despejar água quente sobre a superfície do gelo”, afirma Aurel Persoiu.

Numa clareira a leste do Parque Nacional de Gesäuse, o climatologista Tanguy Racine puxa o fecho éclair do seu fato resistente à abrasão e aperta a fivela do capacete. É Outono e as framboesas silvestres pendem nos arbustos em redor. Acima dele, um pica-pau bica um abeto, mas Tanguy está concentrado no buraco escuro escancarado a seus pés. Uma pequena placa assinala-o como a entrada para a gruta de gelo de Beilstein.

Há alguns anos, quando se inscreveu no primeiro ano da universidade no Imperial College de Londres, este investigador francês sentiu-se compelido a integrar uma expedição a uma gruta com cerca de trinta quilómetros de comprimento no País de Gales apenas pelos rostos amigáveis que viu num expositor promovendo o clube de espeleologia. Não tinha qualquer interesse prévio pelo tema.

Tanguy quase se perdeu na primeira campanha e foi isso que o cativou. “Podemos estar a apenas cinco metros da entrada, mas é como se estivéssemos num mundo diferente, longe da civilização”, comenta. Por brincadeira, os espeleólogos costumam argumentar que o seu passatempo favorito é a exploração espacial dos pobres.

Com as mãos segurando uma corda com firmeza, Tanguy Racine e os seus colegas da Universidade de Innsbruck (o cientista-chefe Christoph Spötl, Gabriella Koltai e Chloe Snowling) começam a descer a gruta de gelo de Beilsteinemrapel. Sigo-os cuidadosamente. O ruído do pica-pau à superfície desvanece-se neste submundo frio e isolado.

No fundo do poço, aterramos sobre solo macio e rocha coberta de líquenes e a escuridão envolve-nos à medida que avançamos quase na horizontal. Caminhamos alguns metros para o interior e os crampons das nossas botas de caminhada começam a agarrar e a esmagar algo. Chegámos ao gelo.

Uma ilustração desta gruta desenhada em 1881 representa um homem levantando uma tocha diante de uma parede de gelo semelhante à onda de um maremoto, junto de cones de gelo com muitos metros de altura. Tudo o que resta agora é o bloco de gelo que temos sob os nossos pés. Levantamentos de radar mostram que, mesmo assim, poderá ter mais de dez metros de espessura.

Na parede rochosa, Tanguy e Chloe detectam uma fenda onde o gelo em fusão se soltou da parede, criando um pequeno poço que conduz a um ponto mais próximo do fundo do bloco de gelo e mais profundo no tempo. Os dois esgueiram-se para o interior, com o peito encostado à rocha e as costas contra o gelo, e desaparecem. Uma hora mais tarde, quando se içam para fora com a ajuda de machados de gelo e cordas, têm material novo para analisar.

“Esta investigação não podia ser feita antes e não poderá ser feita daqui a dez anos quando muito do gelo tiver desaparecido”, diz Tanguy.

Entretanto, Gabriella e Christoph montaram uma broca comprida e começaram a perfurar o gelo a partir do topo. Pouco a pouco, extraem amostras do interior com o diâmetro aproximado de uma caneca. Com uma pequena serra, Gabriella corta pedaços mais pequenos para transportar para o laboratório.

Enquanto deixa cair um pedaço num saco de amostras e anota a profundidade (375 centímetros) sorri, ao ver um fragmento escuro de matéria orgânica retido no interior do gelo. É uma erva ou uma folha transportada pela água para o interior da gruta. Mais tarde, as datações de radiocarbono mostrarão que remonta pelo menos ao século XV.

Grande parte desta informação científica está condenada. Os recursos dos cientistas são limitados, existem demasiadas grutas e o ritmo do degelo é rápido. Os glaciologistas já planeiam, em último recurso, transportar núcleos dos glaciares dos Alpes para a Antárctida, onde, segundo Aurel Persoiu, pelo menos no futuro previsível, “nada poderá correr tão mal a ponto de derreter o gelo todo”. Também no que diz respeito ao gelo das grutas, os investigadores esperam armazenar as amostras num local seguro, de modo a preservá-las para estudo pelas gerações futuras.

As montanhas Tennen, subo até à maior gruta de gelo da Terra, um local chamado Eisriesenwelt, ou “mundo dos gigantes de gelo”. Situada a menos de uma hora a sul de Salzburgo, é uma atracção turística há um século. Uma porta instalada na entrada em 1920, a cerca de 1.641 metros, contribuiu provavelmente para manter a gruta fria durante o Verão, bem como um enorme efeito de chaminé: a saída da gruta encontra-se no planalto acima, tem mais de 450 metros de altura. Quando o guia Franz Reinstadler abre a porta neste dia de Outono, a rajada de vento quase me derruba.

No interior da cavidade, subimos 700 passos, passando por cones de gelo e formações semelhantes a ondas, com as camadas de gelo variando desde tons brancos aos azuis quase eléctricos. Até aqui estão a deteriorar-se. Uma figura com 5 metros de espessura conhecida como “Elefante” já não tem tromba. No Verão, por questões de segurança, Franz patrulha a gruta com uma carabina de baixo calibre, disparando… sobre os sincelos instáveis antes que estes tombem sobre os visitantes desprevenidos.

Quando os turistas lhe perguntam sobre os efeitos das alterações climáticas, ele responde de forma evasiva. “Há tanto ainda por saber sobre as grutas ou o gelo”, diz. Mas depois acrescenta: “É melhor visitá-las agora.” Por enquanto, no meio dos gigantes de gelo, o seu bafo ainda é enregelante.

fotógrafo

A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso planeta, financia a fotografia espeleológica do explorador Robbie Shone desde 2018. Ilustração de Joe Mckendry.